17 de outubro de 2014

In illo tempore

 Medalhão em cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro
(Coleção da Sociedade Martins Sarmento)

Pedi emprestado ao Trindade Coelho o título duma das obras mais paradigmáticas gizadas pela sua verve satírico-literária, In illo tempore: estudantes, lentes e futricas (1901). Com essa estranha frase latina no título engastada, situava-se o autor naquele tempo glorioso em que pertencera à velha academia coimbrã, erguida na mais tradicional universidade portuguesa e a única a funcionar nessa altura no reino. Dispenso-me de resumir as memórias boémias aí evocadas. Os meus propósitos são outros. Estão ligados a um meio estudantil bem mais restrito e recente. O estabelecimento do ensino secundário que frequentei nas Caldas da Rainha nessa época pretérita de 1964, já lá vai meio século.

Fiz ato de presença na inauguração da Escola Nova. Pouco recordo dos festejos então efetuados. Sei que estiveram nomes sonantes do Estado Novo. Creio que o velho almirante e o velho cardeal. Cor-taram-se fitas e deram-se vivas. Meninas de um lado, meninos do outro. Elas de branco, eles de pardo. A minha visão algo daltónica confunde um pouco as cores. Imagino que predominasse o cinzento muito em moda na altura. Os senhores professores estariam de fato completo, gravata e sapatos engraxados. As senhoras professoras estariam de saia-casaco, mala de pôr no braço e sapatos de salto alto. Tenho uma vaga ideia que havia uma placa comemorativa que os vindouros terão preservado para memória futura.

A década que antecedeu a abertura solene do edifício está mais presente na minha lembrança de menino e moço. O espaço ocupado pelo Escola Nova pertencia então à chamada Escola Agrícola. Local privilegiado da minha infância. A sorte de ser filho dum funcionário dessa instituição pública de formação prática de trabalhadores rurais abriu-me as portas para um mundo mágico do campo na cidade. Uma arcádia paradisíaca ao virar da esquina. A construção duma complexa estrutura pedagógica feita de cimento armado e sem arborização à vista alterou-me por completo o modo pessoal de olhar a vida. A cidade recuperara o espaço que tinha partilhado com o campo.

A Escola Industrial e Comercial | Escola Secundária Rafael Bordalo Pinheiro não é a minha alma mater. Se tivesse de eleger uma, voltava-me para a escola primária que frequentei no bairro da ponte. Foi aí que me iniciei nas artes de ler, escrever e contar. A formação técnica que me foi ministrada ao longo da década de 60 foi ficando para trás. Os livros de contas do deve e haver ficaram arrumados na prateleira dos universos esquecidos. Outros livros e escritas surgiram no horizonte. Os verdes anos foram-se e os maduros chegaram. Vieram acompanhados duma paleta muito colorida com a qual passei a pintar o mundo. Algumas dessas tonalidades provêm desses tempos. Outras nem por isso.

4 comentários:

  1. Eu sou uma das meninas de branco e com uma bandeirinha verde e vermelha na mão abanando como se fosse um dia quente de verão. Gostei do que li e principalmente em poucas palavras descreveste o dia da inauguração tal e qual como eu o vi com os meus 13 anos de idade! Felicidades para ti e família! Beijinho da Mª de Lurdes Ribeiro

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    1. Esqueci-me do pormenor das bandeirolas verde e vermelhas, provavelmente porque não tive direito a nenhuma, mas fica o apontamento interessante para dar um pouco mais de colorido ao cinzento desses tempos.

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  2. Illo tempore onde se inscrevem reminiscências que nos fazem aquilo que somos hoje...
    Interessante teres começado numa escola industrial e teres antes regado as tuas sementes literárias... Um dom inato que se impôs com empenho e prazer e que nós, mesmo próximos apenas virtualmente, temos a sorte de desfrutar!
    Não assisti à inauguração da minha escola primária, nem do liceu da minha ilha, o primeiro em África, conquistado com denodo pelos naturais que cedo aprenderam a semear também a sua cultura. Mas ainda me lembro das bandeirinhas de outras inaugurações, agitadas alegre e inocentemente pelas crianças desses tempos...

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    1. Já vão longe esses tempos em que as bandeirinhas se agitaram no ar enquanto se cortava a fita da inauguração duma escola a cheirar a novo e inacreditavelmente grande. Mais tarde apercebi-me que essa enormidade descomunal era só para alguns. Meninas num andar, meninos noutros. Nada de misturas nos corredores, nas salas de aula ou estudo, no ginásio, refeitório ou recreios. A entrada para os rapazes fazia-se por uma porta lateral. A dos docentes e alunas pela porta principal. Vistas bem as coisas, a dimensão da escola nova reduziu-se a metade ou talvez mais. In illo tempore as coisas funcionavam assim e a inocência dos tenros anos levava-nos a pensar que éramos felizes, batíamos palmas e dávamos vivas aos ilustres visitantes. Reminiscências antigas que o decorrer dos dias ajudam a interpretar…

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