19 de outubro de 2014

José Eduardo Agualusa, crónicas da rainha Ginga do Dongo e da Matamba


«Nos dias antigos, acrescentou, os africanos olhavam para o mar e o que viam era o fim. O mar era uma parede, não uma estrada. Agora, os africanos olham para o mar e veem um trilho aberto aos portugueses, mas interdito para eles. No futuro – assegurou-me – aquele será um mar africano. O caminho a partir do qual os africanos inventarão o futuro.»
José Eduardo Agualusa, A rainha Ginga. E de como os africanos inventaram o mundo (2014)
Os anais oficiais da história e os registos das chancelarias régias dizem-nos que o nome usado pelos portugueses para designar o grande país da Etiópia Ocidental se deve a Dona Ana de Sousa, aliás Ngola Ana Nzinga Mbande do Ndongo e Matamba, mais conhecida por Ginga (c. 1583-1663). José Eduardo Agualusa, vulto consagrado da lusofonia literária, apaixonou-se pelo percurso traçado pela soberana e desenhou, com a fantasia criadora que a liberdade poética permite, A rainha Ginga. E de como os africanos inventaram o mundo (2014). O fabulista branco nascido no Huambo e formado em Lisboa empresta a voz ao secretário particular da biografada, mestiço de índia e mulato, para relatar a vida da mais famosa rainha negra angolana. Uma fusão triangular de sangues desavindos a urdir, através da língua comum que os reconcilia, uma fraternidade cultural erigida em três continentes.

Por duas vezes consecutivas, a leitura levou-me até à Luanda seiscentista e aos reinos, senhorios, navegações, comércios e conquistas que a monarquia dual luso-castelhana dominava então à escala global. Com Pepetela, viajei ainda pelos trilhos traçados nas florestas tropicais até Benguela e encontrei, lá A Sul, o sombreiro, o morro que a natureza ofereceu aos habitantes do local para o converterem no símbolo maior duma cidade. Com Agualusa, sulquei as águas revoltas do mar oceano pelas rotas atlânticas nunca dantes navegadas, ao encontro das terras pernambucanas do Brasil. O real e a fantasia fundem-se numa trama comum de eventos acontecidos e imaginados. Os atores são chamados à boca da ribalta para darem visibilidade acrescida aos espetadores atuais do encontro pretérito de povos no seio dum império repartido pelas sete partidas do mundo.

João Maurício de Nassau e Luís Mendes de Vasconcelos ganham o estatuto de personagens aludidas com pretensão a um protagonismo sempre recusado e Francisco José de Santa Cruz simula o papel de figura pública na corte da rainha que exigia ser tratada por rei. A vida da própria cabeça coroada que dá nome ao romance é relegada para segundo plano, tornando-se num mero pretexto para valorizar o percurso traçado pelo seu colaborador pessoal, educado no Colégio Real de Olinda da Companhia de Jesus, inimizado com o cristianismo católico e convertido aos hábitos ancestrais e heréticos dos quimbundos que o haviam acolhido. Os sucessos centrais mais relevantes delineados pela chefe de estado africana, amiga/inimiga cíclica dos portugueses, são revelados de modo muito discreto, abafados pelos incidentes acessórios gerados por entidades mais ou menos fantasiadas ao sabor da pena das instâncias narrativas. A contracapa do romance editado em Lisboa destaca o almirante Jol, o pirata com perna de pau que conquistou Luanda para a Companhia das Índias Ocidentais, e Cipriano Gaivoto, o Mouro, o mercenário português ao serviço de Ngola Nzinga.

A rainha que se vestia de homem e tinha um serralho de mancebos vestidos de mulher é retratada como uma estratega exímia no seu relacionamento com os fazedores europeus de colónias brancas em território negro, adquirido pela força das armas e defendidas a ferro e fogo. Aliada de quem desse mais pelo domínio das terras que considerava suas de direito. Holandeses, jagas, portugueses. Coligada com os sobas e régulos indígenas ou com os governadores e capitães-gerais alienígenas, dentro ou fora dos princípios canónicos do cristianismo católico, luta com todas as forças ao dispor para manter o trono que herdara do irmão e consolidar o poder obtido, através do controlo apertado do tráfico de escravos, da borracha e do marfim. Como se diz que disse a soberana: Quanto maior um rei, menor lhe parece o mundo. Sentença de peso a dispensar comentários supérfluos. O subtítulo do romance alude ao modo como os africanos inventaram o mundo. Uma leitura atenta do relato talvez consiga decifrar os sentidos ocultos contidos na frase. Assim se entenderá melhor de como esses mesmos africanos se terão apoderado do mar, abrindo um caminho a partir do qual inventarão o mundo.

6 comentários:

  1. Tenho para ler esta obra, escrita por um autor de quem muito gosto de ler. Sendo um romance histórico, foi lido já pelo meu marido. Moçambicano, com raízes chinesas, indianas, portuguesas e inglesas, mas, não muito apreciador da cultura angolana, algo que sempre vi como rivalidades do tempo da outra senhora, porém, gostou e achou interessante o romance ora referido. Tal como outras obras do mesmo autor já lidas por nós...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ora então boas leituras. Angola está presente mas o Brasil e as histórias dentro da história do tempo da outra senhora também marcam uma presença muito forte...

      Eliminar
  2. Já o comprei. É o próximo a ser lido. Boa semana.

    ResponderEliminar
  3. Um título de José Eduardo Agualusa que ainda não li... Uma sugestão de leitura que não deixarei de seguir, pois foi o escritor africano em língua portuguesa que descobri logo a seguir ao cabo-verdiano Germano Almeida, também bom contador de histórias e cujos primeiros livros, especialmente, são estimulantes, descrevendo cenários da vida real das ilhas em comunicação aberta com as realidades da história comum com as outras nações de expressão portuguesa.
    O primeiro livro que li de Agualusa (que tive a sorte de conhecer pessoalmente e de reconhecer nele a afabilidade própria de pessoas cultas) foi "Nação crioula", seguindo-se "Um estranho em Goa", "Estação das chuvas" e "As mulheres do meu pai". De uma grande criatividade aliada a uma capacidade descritiva envolvente, rendi-me desde o início à sua escrita. A sua obra, que inclui variadíssimos romances históricos, tem aquele cheiro inconfundível de investigação histórica que me seduz
    Obrigada pela descrição mágica deste livro, impregnada de comentários oportunos sobre a realidade africana, que muito traduz a natureza humana ao longo dos séculos: o poder caracteriza-se sempre pela exploração do homem pelo homem, assumindo formas consoante o modelo económico-financeiro em vigor. Nesses tempos bárbaros, a moeda de troca era o próprio ser humano e as ricas terras onde viviam pacificamente, até alguém descobrir a sua mais-valia. Nem os nossos próprios semelhantes respeitamos, infelizmente...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O meu conhecimento da literatura angolana em particular e da africana em geral é muito escassa. Para além dos títulos mencionados na recensão poucos mais teria para acrescentar. Por aqui comecei e a estas bandas conto voltar em breve. Assim a oportunidade de leitura se proporcione.

      Eliminar