28 de novembro de 2014

George Steiner, erros, provas & parábolas

«All errata is a falsehood final.»
George Steiner, Proofs And Three Parables (1992)
A forma peculiar como George Steiner aborda a questão da nossa identidade cultural, em A ideia de Europa (2005), convidou-me a mergulhar na restante obra do autor que até então ignorava. O prazer tem vindo a crescer à medida que os títulos se sucedem. Mesmo quando o universo do ensaio deu lugar ao da ficção. Comecei com Provas e três parábolas (2008). Voltei a render-me ao fascínio do mestre. Incondicionalmente.Trata-se dum grupo de quatro textos que já haviam conhecido uma publicação autónoma: Provas (1991), Desert Island Discs (1986), Noël, Noël (1989) e Excerto de uma conversa (1985).

O relato inicial apresenta-nos um revisor de provas italiano, cujo rigor profissional, de mais de trinta e cinco anos, convertera num mestre do ofício. Ignoramos o seu nome ou a cidade onde vive. Só sabemos que a militância comunista de décadas lhe granjeara o título de Professore. A história fictícia da personagem acaba por se demudar na história verdadeira de pessoas reais, de carne e osso, que a memória dos homens esqueceu. A queda do Muro de Berlim, difundida pela televisão, vai gerar um longo diálogo entre protagonista e um sacerdote católico sobre os erros e mentiras do marxismo e do cristianismo, cometidos pelas leis dos homens e de Deus. O resultado do debate é inconclusivo. Terá de ser o leitor a exercer o privilégio de decidir quais os atores mais adequados para promover uma eficaz revisão de provas da história.

A primeira parábola deve o título ao programa homónimo da BBC, que desde 1941 pede a figuras conhecidos sugestões de livros e discos a levar para uma ilha deserta. A entidade convocada pela ficção solicita seis registos, a que o arquivo sonoro da estação de rádio consegue responder. O arroto de Fortimbras (Shakespeare, Hamlet); o relincho do cavalo do rei de Tebas ao ver o amo morto (Sófocles, Rei Édipo); o rangido do aparo de Clausius ao concluir a equação da entropia; o riso da amada ao ser beijada; o Trio em Fá Maior para trompa, contrabaixo e conchas de Samatra, de Sigbert Weimerschlund, gravado por Zeppo, Harpo e Chico (Marx Brothers); e o assobio do jovem pintado pelo mestre da Paixão de Chambéry. E é tudo. Mais uma vez, cabe-nos a nós proceder às pesquisas necessárias para determinar até que ponto esses pedidos podiam ter sido guardados na memória de alguém.

A parábola seguinte expande-se em torno dos sons e cheiros que tornam o Natal uma época tão especial. O assunto acabaria aqui se não se desse o caso de ser contado por um pedaço de bicho tristonho, o Caça-Ratos / Pé Ligeiro, o cão de estimação daquela família feliz formada pelo pai, pela mãe e pela filha Penny. Trata-se, afinal, duma inesperada fábula.

A série termina com o excerto de uma conversa travada entre dois estudiosos do Talmude. Mestre e discípulo discutem o problema do livre-arbítrio do Homem face à presciência de Deus, focado no drama de Abraão de sacrificar Isaac ou na vanidade do Todo Poderoso testar a fé do seu humilde servo. A diferença fulcral entre os crentes da Torah e dos Evangelhos reside, talvez, no facto do Deus de Moisés não se ter coibido de matar todos os primogénitos do Egito para garantir o êxodo do povo eleito para a terra santa, ao invés do Deus do Nazareno que ofereceu a vida do filho unigénito em sacrifício à cruz romana para salvar a humanidade.

Ancorados em esferas aparentemente distintas, os quatro pilares da coletânea acabam por conectar as matrizes culturais que enformaram a ideia de Europa. Duas frases escritas numa paragem de autocarro atraem a atenção do corretor de provas: Deus não acredita em Deus e Deus não acredita no nosso Deus. Sinais dos tempos. Diremos nós. Na última parábola, uma mulher, pesarosa com o silêncio a que os livros sagrados votaram o drama de Sara, interroga os cabalistas sobre as sílabas que revelam o nome secreto de Deus e nos farão a todos livres. Boa questão à espera de resposta. Todavia, o nome dos nomes encontra-se guardado desde sempre no livro dos livros. Na nossa imaginação divinamente humana ou humanamente divina. É tudo uma questão de perspetiva ou de sensibilidade pessoal.

NOTA 
Tornei público este texto no Pátio de Letras já lá vão mais de cinco anos, sem ter suscitado então qualquer reação nos inúmeros visitantes do blogue. Volto a dar-lhe visibilidade neste espaço de histórias contadas em tom coloquial, porque continuo a considerar George Steiner um dos grandes mestres da nossa cultura contemporânea. Segue com uma ou outra alteração de pormenor para tornar a forma mais atual...

26 de novembro de 2014

Perspetivas do olhar

CATEDRAL DE BURGOS, 2010

Modesto Herrera


A catedral de Burgos tem trinta metros de altura 
E as pupilas dos meus olhos dois milímetros de abertura.

Olha a catedral de Burgos com trinta metros de altura!


23 de novembro de 2014

Amin Maalouf e os desorientados do círculo estudantil dos bizantinos

«Je porte dans mon prénom l’humanité naissante, mais j’appartiens à une humanité qui s’éteint […] A long terme, tous les fils d’Adam et d’Éve sont des enfants perdus.»
Amin Maalouf, Les desorientés (2012)
Conheço Amin Maalouf há tantos anos quantos aqueles que nos se-param da sua estreia na ficção. Foi um verdadeiro coup de foudre, um amor à primeira vista. A vida do diplomata e geógrafo magrebino de Granada, Hassan-al-Wazzan ou Giovanni Leone de Medici, dito Leone l'Africano (1488-1548), despertou-me a atenção para a leitura continuada e cronológica de toda a sua obra romanesca e ensaística. Sem exceção e com um prazer sempre renovado. Entrei em contacto com os percursos atribulados de vida de Omar Khayyām (1048-1131), poeta persa do vinho, filósofo, matemático e astrónomo, autor dos versos sarcásticos do Rubaiyat. Acompanhei a trajetória profética de Manes (214-276), pintor, médico e teólogo, criador sassânida do Maniqueísmo, religião gnóstica baseada na luz. Percorri com uma curiosidade ávida de entender a visão alternativa da invasão da Terra Santa pelos cristãos, explanada nas páginas alucinantes de Les croisades vues par les Arabes (1983). Uma experiência única que um dia talvez conte em pormenor.

A última viagem que encetei pelo universo literário por si arquitetado durante três décadas levou-me aos meandros duma juventude conturbada, traçada no país de origem, quando o país de exílio ainda estava muito longe do seu horizonte de eventos ou local de não-retorno. Convoca os sobreviventes do antigo círculo estudantil dos Bizantinos e retrata-os com a mestria que lhe conhecemos. Fá-lo nas páginas iluminadas dum romance de cariz documental e de reflexão autobiográfica, que intitula Les désorientés (2012). As personalidades históricas com direito a registo destacado nos manuais da especialidade são abandonadas, substituídas por personagens romanescas modeladas numa realidade contemporânea, que os mass media costumam visitar com uma frequência inquietante e banalizadora. Os olhos seguem as imagens, os ouvidos escutam as palavras, os sentidos adormecem com o déjà vu mil vezes repetido e desligam-se das notícias que prosseguem a sua caminhada inglória nos aparelhos de transmitir à distância as desgraças dos outros, heróis anónimos duma epopeia atual, pautada por muitas guerras sem vencedores nem vencidos.

A ação decorre alternadamente em dois tempos diferentes, o que se inicia em 1971 e se dirige, com o fluir da pena, até ao que termina em 2001. De permeio fica a Guerra Civil Libanesa (1975-1990), conflito sangrento que os separou a todos enquanto jovens e reuniu os sobreviventes depois de adultos. Reencontro que corresponderá, também, a uma última separação, a uma derradeira dispersão. Um drama de vida e morte documentado ao pormenor no carnet de notas do relator-protagonista, dezasseis dias precisos, datados criteriosamente de 20 de abril a 5 de maio desse ano inaugural do terceiro milénio. A cidade anfitriã dos encontros-desencontros mantém-se incógnita ao longo de todo o processo narrativo, envolvida num discreto secretismo que a leitura atenta dos testemunhos documentados ajudam a desvendar. Equacionadas as pistas, chegamos com alguma certeza a Beirute, a pérola do oriente, lugar-comum caído em desuso depois das desavenças bélicas causadas pelos conflitos políticos e acordos firmados após o termo da administração otomana na região, agudizados por rivalidades ancestrais alimentadas pelos sequazes dos profetas do deus único revelado em três livros sagrados. Ecos distantes que a memória coletiva dos povos teima em propagar.

Os atores dos factos contados simbolizam essa imensa manta de retalhos em que o Levante mediterrânico se tornou. Seguidores das leis ditadas por judeus, cristãos e muçulmanos. Exilados, desterrados, resistentes. Milicianos de muitas convicções pessoais inconciliáveis entre si. Fiéis ou opositores do regime do momento. Rendidos ao bem-estar do mundo exterior. Estrangeiros na sua terra e nas alheias. Vencidos pelos contextos adversos criados pela vontade caótica dos homens. Culpados e sem direito a desculpas esfarrapadas, gastas todas elas à força de serem repisadas sem descanso de geração em geração. Humilhados, apoucados, desorientados. O confronto da obra completa de Amin Maalouf ajuda-nos a compreender as mensagens contidas neste texto a que os editores portugueses ainda não concederam uma tradução há muito merecida. As guerras santas só conduzem a guerras e mais guerras. A solução está no debate de ideias, no diálogo entre culturas, na aceitação do diferente. O retorno às origens ajudará a anular as identidades assassinas que andam por aí à solta e a dar ordem neste mundo sem regras em que vivemos. As palavras estão ditas, escritas, reveladas. Os atos só esperam o momento exato de serem concretizados.

20 de novembro de 2014

O peso das palavras...

Edmund Dulac, The Rubaiyat of Omar Khayyam

Huit Quatrains | Oito Quadras

Quel homme n’a jamais transgressé Ta Loi, dis ?
Une vie sans péché, quel goût a-t-elle, dis ?
Si Tu punis le mal que j’ai fait par le mal,
Quelle est la différence entre Toi et moi, dis ?

Tu viens de briser ma cruche de vin, Seigneur.
Tu m’as barré la route du plaisir, Seigneur.
Sur le sol Tu as répandu mon vin grenat.
Dieu me pardonne, serais-Tu ivre, Seigneur ?

Rien, ils ne savent rien, ne veulent rien savoir.
Vois-tu ces ignorants, ils dominent le monde.
Si tu n’es pas des leurs, ils t’appellent incroyant.
Néglige-les, Khayyam, suis ton propre chemin.

Est-ce la pauvreté qui m’a conduit vers toi ?
Nul n’est pauvre s’il sait garder ses désirs simples.
Je n’attends rien de toi, sinon d’être honoré,
Si tu sais honorer un homme droit et libre.

De temps à autre un homme se dresse en ce monde,
Etale sa fortune et proclame : c’est moi !
Sa gloire vit l’espace d’un rêve fêlé,
Déjà la mort se dresse et proclame : c’est moi !

Passe le temps béni de ma jeunesse,
Pour oublier je me sers du vin.
Il est amer ? C’est ainsi qu’il me plaît,
Cette amertume est le goût de ma vie.

Goutte d’eau qui tombe et se perd dans la mer,
Grain de poussière qui se fond dans la terre,
Que signifie notre passage en ce monde ?
Un vil insecte a paru, puis disparu.

Tu demandes d’où viens notre souffle de vie.
S’il fallait résumer une trop longue histoire,
Je dirais qu’il surgit du fond de l’océan,
Puis soudain l’océan l’engloutit à nouveau.

Omar Khayyam (1048-1131), Rubayat
[Adaptação de Amin Maalouf, IN Samarcande (1988)]

18 de novembro de 2014

Tocata e fuga do organista...

«No princípio era a música. Tenho a ideia de que o início das coisas é a beleza absoluta. E aí era o instrumento da beleza absoluta. A música é a arte evanescente, a que está no cimo da pirâmide»
No princípio era o Caos. Depois Gea entrou em cena e fez o resto. Assim concebia Hesíodo o nascimento ordenado de tudo aquilo que existe a que dá o nome de Cosmos. Fê-lo em grego arcaico, na Teogonia (750-650 AEC), provavelmente influenciado pela tradição multissecular de fenícios, babilónios, hurritas e hititas, habituados a viajar pelo insondável à procura da harmonia.

Para os hebreus, herdeiros da cultura dos povos mesopotâmicos, no princípio era o vazio. Depois Yahvé acordou do seu marasmo intem-poral e iniciou a tarefa de criar o mundo em seis dias, reservando o sétimo para um descanso merecido. Tudo isto aparece registado no Génesis (900-800 AEC), o livro bíblico das origens, seguido pela convicção monoteísta de judeus, cristãos e muçulmanos.

As mais antigas cosmogonias devem-se aos sumérios, os inven-tores da escrita, história e civilização. Para eles, no princípio havia o mar primordial que produziu a montanha cósmica, composta pelo céu e pela terra. Da união destes dois, nasceria o nosso mundo. Assim se diz nas lendas épicas de Gilgamesh (2330-2200 AEC), o rei de Uruk que queria conhecer os mistérios da morte.

Lídia Jorge pega nestas visões milenares das origens do espaço e do tempo que nos envolve - ou faz tábua rasa de todas elas - e afirma-nos que no princípio havia um órgão, com quatro mil tubos de metal e quatro fileiras de teclas, com que acabou com a monotonia abissal em que o vazio vivia, por não possuir coisa nenhuma dentro de si. Assim inicia o conto a que chamou O Organista (2014).

A fábula da criação continua. Depois do vazio e do órgão, vieram o homem, a mulher, o canto e a música. Em sétimo lugar surgiu o Criador, o pai do nada e do tudo. O primeiro elemento, bem vistas as coisas. Atraído pelo som, o senhor da invenção e da revelação apoderou-se do instrumento e compôs a partitura de tudo quanto existe, tal qual nós o conhecemos nos nossos dias.

«Quando os deuses ainda eram homens» (Atramhasis, 1800 AEC), reservaram aos mortais o trabalho, separando-os assim do destino dos imortais. O organista da fábula age doutro modo. Imita a melodia celestial ideada pelos homens e põe-se a escutar Tocata e Fuga à luz das estrelas, em louvor da União do sublime universal. O toque musical que faz a diferença e dá sentido à criação.

16 de novembro de 2014

Uma laranja no fundo do cesto

Vicent Van Gogh, Cesto com seis laranjas (1888)























FALEMOS DE LARANJAS...

Às vezes pergunto-me se a primeira culpa do desastre a que este planeta chegou não terá sido nossa, disse, Nossa, de quem, minha, sua, perguntou Tertuliano Máximo Afonso, fazendo-se interessado, mas confiando que a conversa, mesmo com um início tão afastado das suas preocupações, acabasse por levá-los ao âmago do caso, Imagine um cesto de laranjas, disse o outro, imagine que uma delas, lá no fundo, começa a apodrecer, imagine que, uma após outra, vão todas apodrecendo, quem é que poderá, nessa altura, pergunto eu, dizer onde a podridão principiou, Essas laranjas a que está a referir-se são países, ou são pessoas, quis saber Tertuliano Máximo Afonso, Dentro de um país, são as pessoas, no mundo são os países, e como não há países sem pessoas, por elas é que o apodrecimento começa, inevitavelmente, E por que teríamos tido de ser nós, eu, você, os culpados, Alguém foi, Observo-lhe que não está a tomar em consideração o fator sociedade, A sociedade, meu querido amigo, tal como a humanidade, é uma abstração, Como a matemática, Muito mais do que a matemática, ao pé delas a matemática é tão concreta como a madeira desta mesa.

José Saramago, O homem duplicado (2002)

13 de novembro de 2014

Alexandre Homem Dual, viagens do olhar pelo pélago estelar

«Pelagus – latim para pélago. Substantivo singular; masculino. Mar alto; grande profundidade; abismo, voragem.» 
Alexandre Homem Dual, Pelagus (2013)
Dizem que Portugal é um país de poetas. Dispenso-me de nomear meia dúzia deles, porque seriam conhecidos de toda a gente. Também me recuso a registar uns tantos mais ainda no ativo, porque teria de excluir outros tantos tão importantes como os destacados. Limito-me a convocar o nome dum jovem poeta que, apesar de já ter alguma obra publicada, ainda não caiu nem nas bocas do mundo nem nas páginas das revistas especializadas na matéria. Sorte sua dirão alguns. Azar seu dirão outros. Se calhar, têm todos razão. 

Cruzei-me por acaso com Alexandre Homem Dual e com o Pelagus (2013), e é sobre um e outro que irei falar. É verdade que, a meu ver, a poesia não se comenta. Lê-se, vive-se, sente-se. Recorro à tal exceção para confirmar a regra e destacarei alguns tópicos que encontrei na minha expedição silenciosa dos sentidos pelas linhas e entrelinhas versificadas do texto. Divulgado numa edição quase de autor e colocada à disposição dos interessados na versão em-linha. Moderna e eficiente para quem perdeu o hábito de visitar as livrarias cheias de livros a cheirar a tinta. 

Trata-se duma viagem pelo universo em expansão contínua, imaginada pelo novo argonauta de palavras à descoberta de novos mundos e rotas espaciais. Os mistérios da criação contidos na teoria do Big Bang levaram-no a imaginar um barco de papel e navegar no pélago estelar para além do lado lôbrego da lua. Adota o nome de Lucas Nefelibata, inspirado no Luke Skywalker (ou George Lucas) do Star Wars (1977-2005), um sonhador a percorrer com o olhar os confins do cosmos nunca dantes enxergados. Uma nova Alexandria em vista que já cartografaram a Índia a que chamaram América. 

O diário de bordo encontra-se repartido por cinco cantos épicos, trinta e três estrofes e trezentos e setenta e três versos. Espero não me ter enganado nas contas. Fluem todos pela galáxia das afeições, dúvidas e receios experimentados no momento da partida. Tripulantes duma peregrinação pelo espaço sideral à procura dum porto seguro. Etapas registadas em latim. Frases feitas e ligadas a gestas vindas do já feito à procura de novos feitos. Leiamo-las no nosso idioma mátrio e desenharemos uma estância suplementar. De mar a mar | até às estrelas | flutua e não se afunda | lembra-te que és mortal | depois das trevas a luz. 

Um exercício complementar, poderá residir na leitura seguida das palavras-chave únicas de cada conjunto de poemas ou flashes de ideias. O resultado é surpreendente e dispensa-nos grandes leituras pessoais da descrição de subjetividades alheias. O mesmo se diga para os clíticos de ligação. Cada um encontre os que entender. Navegadores, universo, mar, viagem, matéria, cosmo, estrela. Navio, espaço, luz, sombra, teodiceia, terra, fronteira, céu, amor, olho, caminho, nuvem, abraço. Esperança, noite, confissão, fogo, paraíso. Ondas, porto, maré, vida. Deus, horizonte, conhecimento. 

A poesia integral composta em verso dá as mãos à prosa poética distribuída pelo Prefácio e pelo Posfácio, textos enquadradores da jornada pela galáxia da imaginação, dessa odisseia do futuro traçada por uma nova raça de navegantes, através de computadores, na busca consonântica da incompletude infinita, a olhar o vazio para atingir a plenitude do ignoto. Aí se revela o projeto de atravessar o âmago, abismo e voragem do imenso oceano estelar. Aí se divulga o resultado da expedição pelo imenso pélago sideral. O romântico fatalista, que crê mais na força da caneta do que na força da espada, admite ter perdido o rumo no trajeto com as emoções do percurso. Reconhece, porém, que ao perder-se se havia encontrado. Não viajara para fora do espaço-tempo desconhecido. Viajara par o interior de si mesmo. 

Os segredos do universo ficaram por explicar. Talvez tenha sido a melhor remate da expedição. Ao atingir a perfeição do acabado, a ambição humana perde o sentido de existir. Ao permanecer na imperfeição, a vontade humana ganha estimulo para continuar a pesquisa. Em liberdade. As regras do linguajar quotidiano e académico são deixadas esquecidas no tinteiro da criação da utopia. A noite, a sombra e a morte são adiadas e o dia, a luz e a vida do destino humano perfilam-se no horizonte. Tão longe quanto o olhar possa alcançar, nas grandes profundidades do mar alto celestial, onde o conhecimento habita desde o momento primordial da criação da realidade material de que somos feitos, herdeiros cósmicos da poeira caótica das estrelas.

11 de novembro de 2014

O toque alado de Thánatos

Eufrónios, Morte de Sarpédon (c. 515 AEC)

[Museu romano de Villa Giulia]

O recurso às etimologias antigas para a construção de neologismos científicos é uma prática comum aceite por todos. Alguns acabam mesmo por ser introduzidos na linguagem quotidiana, sem que a sonoridade erudita dos elementos utilizados na formação do vocábulo nos incomode os ouvidos. Outros são totalmente banidos ou evitados de todo o tipo de discurso. Tornaram-se malditos. Como se o simples ato de os pronunciar comprometesse para sempre o locutor temerário ou desprevenido que os chamou à colação.

Dispenso-me de arrolar um número de exemplos ilustrativos do afirmado e centro-me em dois únicos casos. Simétricos e comple-mentares. Distanásia e eutanásia. Palavras derivadas de Thánatos, o ser alado com que o panteão helénico personificou a Morte. A lenta e dolorosa e a rápida e indolor. Verdadeiros barbarismos para quem desconhece o seu real significado e autêntico tabu para quem o interpreta à luz dum preconceito militante. Ao homem não cabe determinar o dia exato do seu próprio nascimento-falecimento.

Pessoalmente sou favorável à morte clinicamente assistida. Ignoro se mais tarde ou mais cedo sentirei ou não a necessidade de inter-romper voluntariamente a minha existência. Espero que quando Thá-natos surgir no horizonte possa escolher o tipo de trespasse a apli-car. Que me deixe lobrigar o perfil alado do seu irmão gémeo Hypnos, a personificação grega do Sono. Depois que me levem para onde quiserem, que o livre-arbítrio acaba quando a predestinação come-ça e o destino da vida é a morte. Invisível, infalível, inexorável.

9 de novembro de 2014

De queda em queda

Fragmento do muro de Berlim

Portland Maine, EUA

De queda em queda se tem feito a história do mundo ocidental, o tal que já deu pelos nomes mais ou menos convencionais de Hélada, România, Cristandade e Europa. Atualmente abrange toda a península da Eurásia e prolonga-se à escala planetária por todos os locais onde o modelo democrático inventado pelos gregos se foi impondo ao longo dos tempos.

Depois da queda de Troia (c. 1250 AEC), o poderio de Micenas impôs-se no mar Egeu, no de Mármara e no Negro. Com a queda de Cartago (146 AEC), Roma torna-se senhora do mundo antigo, erigido em torno do Mediterrâneo ou Mare Nostrum. O princípio da hegemonia duma cidade-estado sobre as outras nações e povos estava inventado.

Como não bem que sempre dure, depois da queda de Roma (476) e da queda de Constantinopla (1453), os impérios romanos do ocidente e do oriente são apagados do mapa. A antiguidade clássica e a medievalidade feudal desaparecem entre um evento e o outro. Deixam atrás de si uma herança multissecular que as gerações herdeiras geriram à sua maneira.

Os deuses olímpicos são remetidos para o universo da criatividade artística e literária. A cidade imperial transforma-se na cidade papal. A Respublica Christiana  instala-se nos reinos bárbaros europeus e tenta reconquistar os territórios islâmicos africanos. A aventura das Cruzadas à Terra Santa termina com a queda de Acre (1291). O caminho para os estados-nação estava aberto.

Os tempos modernos inauguram-se com a queda da Bastilha (1789). A Revolução Francesa invade o mundo com os ideais programáticos da Liberté-Égalité-Fraternité. As monarquias absolutas do Ancien Régime tremem e convertem-se gradualmente em monarquias cons-titucionais, cada vez mais abertas às filosofias políticas do Liberalis-mo, baseadas nos ideias políticos da democracia.

Entre as duas guerras mundiais, os impérios centrais ruíram. A Guerra Fria criou uma Cortina de Ferro em torno do setor ocidental da capital do Terceiro Reich. A queda do Muro de Berlim (1989) ocorreu há 25 anos. Celebremos. Uma geração volvida, muitos outros muros da vergonha continuam de . De queda em queda a história se vai traçando. Inexoravelmente. Até onde a vista alcança.

7 de novembro de 2014

Soedade, suidade, saudade...

D. Duarte, Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta

«E a ssuydade he hũu sentido do coraçom que vem da sensualidade, e nom da rrazom, e faz sentir aas vezes os sentidos da tristeza e do nojo.»
Dom Eduarte, Leal Consselheiro (c. 1438: cap. xxv, fl. 2 27 r)
Dizem que a palavra saudade é a mais portuguesa das palavras portuguesas. Até pode ser verdade para quem passe o tempo a olhar para trás e se esqueça de olhar em frente. O nojo, o pesar, o desprazer e o aborrecimento referidos por el-rei Dom Duarte tomam conta de nós e conduzem-nos à tão indesejada soedade, soidade e suidade de saudar a solidão.

Outro lugar comum é afirmar que a palavra saudade só existe em português. Verdade insofismável, já que cada idioma é senhor dos seus próprios vocábulos. Esquecemo-nos que a vontade de se estar com quem não se está e de se estar onde não se está se pode expressar em todos as línguas, utilizando, obviamente, outras palavras ou conjunto de palavras.

Tu me manques, te echo de menos, I miss youAvoir le mal du pays, sentir añoranza del hogar, missing the hometown. Nostalgia, anhelo, morriña. Envie, désir, souvenir. Longing, yearning, Homesickness & tutti quanti. Saudade. Bem-vistas as coisas, a originalidade não está certamente na palavra em si, mas sim na economia de meios de dizer tanto com tão pouco.

O Eloquente passou por alto a definição de saudosismo. Tal palavrão seria descabido no Leal Conselheiro, tratado humanista destinado a ilustrar uma cultura de corte. Aquela que promoveu a salto da cosmo-visão medieval para a renascentista e abriu as portas à modernidade. Saudade do futuro, pois ao passado tira-se o chapéu, sacode-se o capote e a andar se faz caminho.

5 de novembro de 2014

No princípio era a música...

Foto: Dan Kitwood/Reuters

TOCATA E FUGA | TOCCATA AND FUGUE

Como a própria definição o diz, o vazio é um lugar onde não existe nada mas no interior do qual se espera que venha a acontecer tudo. Não admira, pois, que o vazio, cansado da monotonia abissal de não possuir coisa alguma dentro de si, um dia tenha chamado o órgão. E o órgão veio, com seus quatro mil tubos de metal e as suas quatro fileiras de teclas, e ficou a dançar no vazio, oscilando de um lado para o outro...

As the definition itself states, the void is a place where nothing exists but inside of which everything can be expected to happen. It is not therefore surprising that the void, tired of the abyssal monotony of not possessing anything at all in itself, should one day have summoned the organ. And the organ came, with its four thousand metal tubes and its four rows of keys, and stayed dancing in the void, floating from one side to the other...

Lídia Jorge,  O organista |  The organist
Lisboa -  2014: 10-11 (edição bilingue)  

3 de novembro de 2014

Maria Teresa Horta, As luzes de Leonor, uma sedutora de anjos, poetas & heróis

«Habituei-me a ser criticada | por ler livros, | por falar de ciência, de política e de filosofia, | por saber inglês e latim, | por ter demasiadas Luzes para uma mulher. | Alguns homens mais cultos chegaram a invocar Molière para me ridicularizarem...»
Maria Teresa Horta, As luzes de Leonor (2011)
Quando no início da década de 70, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa publicaram as Novas cartas portuguesas (1972), a polémica instalou-se no reino cadaveroso ou oásis de mediocridade consentida em que o país dos brandos costumes e jardim à beira-mar plantado se havia transformado. As autoras foram levadas à barra dos tribunais, o livro foi proibido pela censura e o processo das Três-Marias foi convertido num caso singular de mediatismo nacional e internacional. As traduções nos mais diversos idiomas proliferaram e as escassas reedições efetuadas após a queda do regime ditatorial têm teimado em manter a obra sistematicamente esgotada. A questão da condição feminina, equacionada nesse texto composto de fragmentos narrativos, parece continuar a amedrontar a política editorial seguida entre nós, afastando o público leitor dum contacto mais estreito com essa réplica coetânea dos amores marginais revelados nas cinco Lettres portugaises (1669). As tais que Mariana Alcoforado, a religiosa do convento da Conceição de Beja, terá composto e endereçado ao Chevalier de Chamilly, o amante francês que a seduzira e abandonara.

O efeito caleidoscópico de testemunhos convocados pela arte de efabular o universo feminino da criação estética volta à ribalta da república das letras, cerca de quarenta anos volvidos, pelas mãos de Maria Teresa Horta em As luzes de Leonor (2011), longo mosaico ficcionado de prosa poética e poesia integral, em que cada frase é um verso e cada parágrafo uma estrofe. A quinta neta da marquesa de Alorna esboça, neste relato polifónico, uma viagem de revisitação à mulher, poetisa, política, sábia e sonhadora que também foi sua avó, personagem multifacetada, imaginada em forma de papel e tinta, para dar corpo a uma personalidade controversa, recriada através de depoimentos autênticos pronunciados a muitas vozes e sentires. As Marianas epistolares, moldadas pelo barroquismo seiscentista vigente durante as guerras de restauração da monarquia lusitana, saem de cena e dão lugar às Leonores novelescas, forjadas por um iluminismo combativo ainda em construção nas antevésperas das guerras peninsulares movidas pelo império napoleónico. 

Os diálogos | monólogos travados à distância de sete gerações são gizados com o recurso constante a documentos oficiais e particulares, feitos e refeitos, repartidos por mil e tantas páginas bem contadas, vinte e cinco capítulos enquadrados por um prólogo e um epílogo, contextualizados por meio século de histórias dentro da história portuguesa e europeia, a promover a passagem do despotismo aristocrático para o liberalismo constitucional. As cartas, diários, cadernos, citações e poemas entrelaçados no romance outorgam um protagonismo estrutural às Raízes | Memórias discursivas, evocadoras de Leonor de Távora, a marquesa executada por ordem do Marquês de Pombal em Belém, ministro plenipotenciário do rei D. José, e de Leonor de Almeida, a condessa expulsa do país por ordem de Pina Manique, intendente-geral da polícia do príncipe-regente D. João. Pelo meio desta escrita neorromântica, tecida de subjetividades dispersas, ficam os lamentos líricos dum misterioso Angelus, ser alado seduzido pela luminosidade etérea de Alcipe, a sedutora de anjos, poetas e heróis. 

A reconstituição-reconstrução da vida de Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre, encetada ao longo de treze anos de escrita por Maria Teresa Horta está incompleta. A moldura escolhida para pintar o retrato impressionista da defensora das Luzes está balizada pelos tempos conturbados que marcaram o Processo dos Távoras e antecederam o Bloqueio Continental. Efemérides datadas com repercussões duradouras dentro e fora das fronteiras nacionais. Desconhecemos se a neta da Condessa de Oeynhausen-Granvensburgo, valida da rainha-louca D. Maria e dama de honor da princesa-regente D. Carlota Joaquina, frequentadora das cortes de Maria Antonieta de França e Maria Teresa de Áustria, animadora dos salões cultos de Viena, Paris, Madrid e Lisboa, retomará a tarefa hercúlea de traçar os passos da avó nos derradeiros tempos da sua existência de exílio forçado em terras estranhas e de retiro escolhido na terra natal. Nada nos impede porém de acreditar que a mão sem peso da poetisa iluminista aflore de novo o cimo do ombro da poetisa iluminada e que as confidências das duas se voltem a ouvir apesar dos dois séculos de silêncios que as separam.

NOTA
Publiquei este texto no Pátio de Letras em março de 2013, depois de me ter feito companhia de leituras durante quase um ano. Dou-lhe uma nova visibilidade neste espaço de histórias com histórias dentro porque nunca é de mais falar-se do que se gosta. Lidos os livros, fiquem os roteiros da viagem à espera de novas etapas de percurso.

1 de novembro de 2014

Os arrepios da terra

João Glama Stroberle, Alegoria ao Terramoto de 1755

Bruxas & terramotos

A bruxa tem os cristais guardados nos bolsos fundos da saia, deles sentindo na carne a brasa gelada e a cintilação cega, que lhe chameja o corpo. Inspira com precaução o ar, toma-lhe o gosto a salitre, fareja-o, nele detetando o enxofre, o húmus contaminado pelo revolvimento que em breve há de vir das entranhas das terras, das águas sulfurosas e das pedras que ali já fez secar as fontes.

Depois de se ter debatido noites seguidas com os próprios poderes e presságios, delirando com a febre alta que provoca convulsões e lhe repuxa as feições, a bruxa nas suas alucinações viu ruir Lisboa, escutou o urro imenso subida das entranhas da terra, os gritos aterrados das pessoas em fuga pelas ruas em chamas, ouviu os estertores das que ficaram estendidas, esmagadas debaixo do estuque e das lajes, dos mármores dos palácios, dos altares e santos das igrejas, deu conta do pavor daqueles que eram tragados pelas fendas enormes que se abriam no chão a engolir tudo, casas e carros, e também aqueles que tombavam, tropeçando nos escombros.

Sentiu o estômago revoltado pelo intenso cheiro a vulcão recolhido que andava no ar espesso de fumo acre, a fundo lodoso de rio, a chuva envenenada, ao sal ácidos das ondas de um mar revoltoso. Procurou em vão defender-se das queimaduras das cinzas que tombavam do alto, como se fossem neve parda, escaldante. E quando finalmente voltou a si, aterrada, reuniu os poucos haveres numa trouxa, guardou dentro dela, também, as cartas de adivinhar futuros, os cristais nos bolsos da saia imunda, embrulhou-se na manta de lã cardada, abandonou a cabana de terra batida e saiu da cidade, entregando-se ao destino que a guiou, ainda cambaleante, pelos caminhos do Campo Pequeno…

Maria Teresa Horta, As luzes de Leonor (2011: 32-33)