30 de janeiro de 2015

Era uma vez um contador de histórias chamado José…


Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não…
José Saramago, O Globo (1997)
O percurso terrestre dos homens pode resumir-se à fórmula nasceu-viveu-morreu. José Saramago (1922-2010) faz parte doutra categoria. Preencheu a parte central da viagem com versos e prosas registados na lembrança de quem os leu. Fê-lo com palavras adequadas e no momento certo. O trajeto pelas letras foi-se fazendo pelos sendeiros da poesia, conto e romance, pela crónica jornalística, pelas ribaltas do teatro, pelas pequenas e grandes memórias, pelos diários, cadernos e apontamentos, com incursões virtuais pelos universos da blogosfera. Na bagagem do viajante houve lugar para todos os géneros e formatos postos à disposição dos criadores das ideias escritas e declamadas. A obra fala-nos de mitos e contramitos bíblicos e helénicos, de amores e desamores laicos e divinos, de cavernas platónicas e de homens duplicados, de manuais de pintura e caligrafia, de ensaios da cegueira e da lucidez, das vicissitudes dum povo que se levanta do chão e se põe a navegar numa jangada de pedra ou a sobrevoar um convento real numa passarola de vime movida pela vontade das gentes. Livros que falam de livros e de histórias com história dentro, poemas possíveis deste mundo e do outro, poéticas dos cinco sentidos centrados numa ilha desconhecida ou na maior flor do mundo. E entre todos os nomes chamaram-lhe Saramago. Uma alcunha transformada em nome maior, a ombrear com os inventados da ficção, como Blimunda Sete-Luas e Baltasar Sete-Sois, para dar mais brilho ao realismo mágico das histórias fingidas e sentido real às verdadeiras que as inspiraram. Alegorias quotidianas projetadas ironicamente para a eternidade, premiadas em nome de Camões (1995) e Nobel (1998). Uma viagem de Azinhaga para Lanzarote com passagem pelo mundo. In nomine Dei ou dos homens que inventaram os deuses nesta terra de pecado para ser como eles e não ter mais nada que contar…
Artur R. Gonçalves, «Nota Biográfica»
(Faro, Universidade do Algarve - Fundação José Saramago, 2012: 43-44)

27 de janeiro de 2015

John Boyne: e todos se vestiam como o rapaz do pijama às riscas

«And one final thought came into her brother’s head as he watched the hundreds of people going about their business, and that was the fact all of them – the small boys, the big boys, the fathers, and grandfathers, the uncles, the people who lived on their own on everybody's road but didn’t' seem to have any relatives at all – were wearing the same clothes as each other: a pair of grey striped pyjamas with a grey striped cap on their heads.»
John Boyne, The Boy in the Striped Pyjamas (2006)
Vi Dublin invadida de pijamas às riscas em forma de livro quando por andei em 2006. Na altura não dei grande atenção ao facto. Mais um bestseller na forja, pensei. me dei conta do exato sentido do traje referido no romance uns dias quando vi por acaso no pequeno ecrã da televisão o filme que o adaptara às telas de cinema. Espantoso. As tais histórias singulares que os livros às vezes nos contam. Assim. Sem mais nem menos. De improviso. Dentro e fora das páginas de papel que as suportam e das capas de cartão que lhe emprestam um primeiro rosto. John Boyne quis prestar homenagem a todos aqueles que nos campos de concentração, trabalho escravo ou extermínio nazi foram obrigados a vestir-se como O rapaz do pijama às riscas (2006), figura central duma ficção feita de factos acontecidos. 

As edições mais recentes da saga de Bruno e Shmuel aproveitaram-se do sucesso da película e do ar de inocência transmitido pelos jovens atores que dão corpo aos heróis da efabulação, para substituírem a imagem anterior a duas cores por uma outra mais tranquila pintada com todas as opções cromáticas do arco-íris. Os dois encontram-se sentados num chão de relva viçosa, pernas cruzadas, virados um para o outro, a partilharem confidências e a projetarem o futuro. Separa-os uma vedação de arame farpado e uma feição peculiar de vestir. Une-os um processo de amizade em construção e uma ausência de preconceitos no horizonte. O modo ingénuo de encarar a vida idealizado pelas crianças é confrontado com o modo calculista materializado pelos adultos de transmudar a vida a seu bel-prazer. O leitor coloca-se na fronteira traçada por estas duas cosmovisões e converte-se no juiz dos conflitos que lhe vão sendo postos pela escrita minuciosamente tecida pelo autor. Os contrastes discursivos acumulam-se e o produto resultante acaba por demonstrar que a literatura não tem género definido nem idade limitativa. Tem é autores-leitores à altura. Caso contrário, resume-se a um conjunto de letras dispostas em palavras e frases que não cabem nas categorias ideadas pela arte poética. 

O episódio da gesta europeia recente retratado neste romance só pode ser remetido para o universo do juvenil e varonil, por ser protagonizado por dois rapazes de nove anos de idade, nascidos no mesmo dia, mês e ano, mas em contextos étnicos diametralmente opostos, o ariano da Alemanha nacional-socialista e o judaico da Polónia ocupada pelo Terceiro Reich, um em Berlim e o outro em Cracóvia, um regido pela cruz gamada e o outro pela estrela de David. assim se entende a candura manifestada por cada um deles ao pronunciar de maneira infantil «Fúria» pelo alemão Führer e «Acho-Vil» pelo polaco Auschwitz. Tudo se passa como se o autor tivesse pudor de registar a versão original das palavras-chave dos dramas vividos e as registasse pela inócua dos diálogos travados. O ponto de vista particular dos mais novos a questionar as interpretações dos mais velhos. A conhecida técnica usada por Jonathan Swift n’ As viagens de Gulliver, por Lewis Carroll na Alice no país das maravilhas ou por Saint-Exupéry n' O Principezinho. Os livros de adultos a refletirem o mundo infanto-juvenil tratado no seu interior pelas personagens que lhes dão alma e razão de existir. 

O encontro final do real e do imaginário faz-se na esfera discursiva da tragédia, marcado pela gramática teatral do disfarce, do fingimento e da máscara, pelo predomínio do discurso dialógico, pelo número reduzidos de atores e de recintos cénicos convocados pela ação. Os erros dos pais recaem nos ombros dos filhos. À boa maneira clássica da hybris helénica ou bíblica do pecado original judaico-cristão. Édipo é punido pelos crimes de Laio. Os descendentes de Adão e Eva são condenados à morte pela desobediência dos progenitores à vontade de deus. Os heróis findos do passado são trazidos ao convívio dos espetadores do presente pelo curto espaço de tempo da leitura do livro ou do visionamento do filme. A intriga desenvolve-se à frente dos nossos olhos, no palco. A catástrofe concretiza-se fora de olhares indiscretos nos bastidores. O castigo infligido aos filhos dos homens é representado discretamente no barracão dos duches oferecidos aos deserdados do prometido império dos 1000 anos. Implacavelmente. Sem apelo nem agravo.

Por razões que o meu subconsciente saberá explicar melhor do que eu, nunca gostei de me ver dentro dum pijama às riscas, daqueles de ir para a cama quando chega a noite, com a consciência tranquila, pronto para um sono reparador e algum sonho redentor. A associação das barras do tecido às grades da prisão deu-me sempre a sensação desagradável de claustrofobia, de falta de liberdade. É provável que o uniforme imposto compulsivamente aos condenados à solução final e ao holocausto me tivesse alimentado um pouco essa aversão visceral. Felizmente para todos nós que esses tempos de barbárie humana foram há muito erradicados da superfície da terra. O próprio feitor da fábula o afirma nas derradeiras linhas da fábula feita. Queiram os fados benfazejos e o bom senso dos homens que tenha razão. Aconteceram há muito tempo e não voltarão a repetir-se nos dias de hoje nem na época em que vivemos.

NOTA 
Texto publicado há dois anos e meio no Pátio de Letras e reposto no preciso dia em que se celebra o 70.º aniversário da libertação de Auschwitz pelo exército vermelho. Lidos e relidos os livros, vistos e revistos os filmes, celebradas as efemérides oficiais com pompa e circunstância, fique a memória que o holocausto existiu e que importa a todo o custo impedir a sua repetição no porvir.

24 de janeiro de 2015

Romain Puértolas, viagens do faquir que ficou preso num armário Ikea

«Ajatashatru apprit alors que si Wiraj avait quitté son pays, ce n’était pas pour un motif aussi trivial que celui d’aller acheter un lit dans un célèbre magasin de meubles. Le Soudanais avait laissé les siens pour tenter sa chance dans les “beaux pays” comme il se plaisait à les appeler. Car sa seule faute avait été de naître du mauvais côté de la Méditerranée, là où la misère et la faim avaient germé un beau jour comme deux maladies jumelles, pourrissant et détruisant tout sur leur passage.»
Romain Puértolas, L'extraordinaire voyage du Fakir qui était resté dans une armoire IKEA (2013)
Há certos textos que vêm ter connosco sem nós chamarmos por eles. Foi o que me aconteceu com o composto por Romain Puértolas com o título quilométrico d’A incrível viagem do faquir que ficou fechado num armário Ikea (2013). Os ecos dos séculos dourados do barroco peninsular a pairarem no horizonte e a acenarem à distância. A liberdade de escolher um livro sem a ajuda de agentes estranhos a ser cutucada pela ingerência atrevida dum acaso intrometido ainda que feliz. Imperativos académicos de percurso difíceis de evitar a forçarem um encontro imediato de terceiro grau pouco espectável numa situação dita normal. Nestas ocasiões específicas, o melhor é juntar o útil ao agradável e deixarmo-nos levar tranquilamente pelo prazer da leitura. Foi isso mesmo que fiz.

Vistas bem as coisas, a ficção até começa antes de iniciarmos as aventuras de Ajatashatru Larash Patel, o faquir rajastanês metamorfoseado em escritor de sucesso inesperado, aquele que depois de ter viajado num armário Ikea de Paris para Folkestone e numa mala Vuitton de Barcelona para Roma, depois de ter feito um voo low cost da Índia para França e de ter transposto o canal da Mancha numa camioneta de mudanças da megastore sueca, depois de ter fugido de balão da Itália e de ter chegado à Líbia pós-Kadhafi de barco, acaba por ir ao encontro da bela-amada com rosto de porcelana na cidade luz, agora num normalíssimo voo em classe turística e com a carteira recheada de euros ganhos com a escrita dum mais que garantido bestseller internacional. 

Antes dessa extraordinária peregrinação rocambolesca, a badana esquerda do livro impresso já nos está a dar conta da vida fantasiosa do autor. Uma vocação de cabeleiro-trompetista gorada pela força do destino a obrigá-lo a passar sem sossego de DJ e compositor-interprete a professor de línguas e tradutor-intérprete, de se deslocar entre França-Espanha-Inglaterra como comissário de bordo ou a tentar a sorte como mágico ou cortador de mulheres num circo austríaco. Fixa-se na escrita compulsiva, confessando sem falsas modéstias ter composto 450 romances num ano, todos eles metodicamente arrumados numa estante Ikea. As fortunas e adversidades, atalaias da vida humana e exemplos de vagamundos e espelho de tacanhos, mescladas com a presença surpreendente de extraterrestres detentores duma inteligência fora do vulgar e de ter iniciado uma carreira de polícia, prosseguem a um ritmo alucinante, revelando-nos o itinerário típico dum potencial pícaro dos nossos dias, mas a negar de modo claro essa categoria genérica plena ao protagonista do relato por si congeminado. 

Livro hilariante, o mais divertido do momento, para rir às gargalhadas do princípio ao fim, um conto, uma fábula, uma pérola de humor, inigualável, uma história genial, dizem os críticos oficiais convoca-dos para tecer os juízos de valor convencionais, criteriosamente selecionados pelos editores para preencher a badana direita do bestseller traduzido para 30 línguas repartidas pelos quatro cantos da terra. Faça-se-lhes justiça neste caso particular, dado que todos eles destacam, também, tratar-se duma sátira mordaz ao mundo moderno, um autêntico conto de fadas que convida à tolerância entre os povos que vivem dos dois lados do Mediterrâneo, o certo e o errado. Referem ainda tratar-se duma reflexão sobre o destino dos imigrantes clandestinos, aqueles que se fazem ao mar para pisar o paraíso prometido dos países ricos e que depressa se revela um atalho infalível para o inferno. 

O percurso de vida seguido pelo faquir indiano que partiu à procura duma cama de pregos a preço de saldo na loja Ikea mais próxima, empurrada para a distante capital francesa, pouco difere dos percursos de vida seguidos pelos peregrinos da fome castelhanos das centúrias de quinhentos e seiscentos. Partilham uma infância infeliz, pautada pela fome e pelos maus tratos, pelo estigma do nascimento e pela vontade de vencerem as contrariedades duma existência de anti-heróis forçados. Diferem no facto de o acumular de muitos amos, nomes e manhas ter alterado inexoravelmente a ingenuidade inicial castelhana dos Lazarillos-Guzmanillos-Pablillos numa marginalidade pícara, incapazes de enveredar por uma contrição sincera, ter tido um efeito contrário no viajante coevo imaginado pelo fabulador gaulês. Na sua viagem iniciática de nove dias pelo interior de si mesmo, o especialista asiático em expedientes e truques de vão de escada envereda pela via da honestidade. Sente ao longo da sua itinerância forçada pelas rotas europeias cinco momentos cruciais que o convidaram a um arrependimento verdadeiro. Chama-lhes eletrochoques e associa-os à solidariedade que as pessoas podem sentir umas pelas outras e as podem transformar para melhor. Mais altruístas, mais desinteressadas, mais fraternas. Esta a lição a extrair deste relato realista e irónico de encarar a condição humana e de redimensionar o conceito tão maltratado de honra.

20 de janeiro de 2015

Zé Povinho, uma vida de infortúnios e adversidades...

LEVANTAR-SE-Á?

Gravura do Zé Povinho publicada pelo jornal O António Maria a 6 de janeiro de 1881
Uma das singularidades da produção trovadoresca portuguesa deve-se à sua origem matricial fortemente popular, dividida entre o amor inocente das cantigas de amigo e o humor trocista das cantigas de escárnio e maldizer. A jornada tem sido longa e árdua, os trilhos seguidos duros de pisar, mas o cunho andarilho lusitano tem-se sempre regido por essa capacidade bipolar de celebrar a vida. A vertente irónica tanto elegeu a fragilidade emotiva dos afetos para esboçar finos motejos galantes, como endereçou a chacota burlesca da caricatura para atingir alvos ideais de uma crítica mais cáustica e assertiva.

A mordacidade de Rafael Bordalo Pinheiro apostou na sátira social e política de um país que viu no Zé Povinho a sua imagem de marca mais expressiva. As páginas d’ A Lanterna Mágica abriram-se, a figura saltou para o exterior, confundiu-se com a realidade e passou a representar-nos a todos nós. Até hoje. Já lá vão 135 anos de continuadas cumplicidades e parece que tudo continua na mesma. Os Fontes Pereiras de Melos e Serpas Pimentéis serão outros, os Meninos D. Luíses e os Santo Antónios terão mudado, os chicotes dos comandantes da Guarda Municipal terão sido actualizados, só a eterna crise das finanças nacionais se mantém inalterada, de pedra e cal. Em 1875 ou em 2010, o nosso aniversariante estará sempre a abrir os cordões à bolsa e a resolver os problemas que os outros criaram. Por isso se tem mantido embasbacado, a coçar a cabeça, de fato coçado e sem prestar atenção aos últimos gritos da moda.

A personificação maior do ser coletivo nacional não possui a compleição anafada do John Bull inglês ou o perfil esbelto do Uncle Sam americano, os dois representantes por excelência duma burguesia endinheirada e bem sucedida no mundo dos negócios das duas margens atlânticas. O Zé Povinho português não partilha a aristocracia rural do Don Quijote castelhano. Quando muito, aproxima-se da lhaneza labrega do Sancho Panza, o escudeiro rústico do Cavaleiro da Triste Figura. Só que a criação bordalina não precisa da sombra de nenhum fidalgo cervantino de meia-tigela para traçar o seu próprio perfil. Apareceu esporadicamente ao lado da Maria da Paciência para logo de seguida optar pelo celibato militante ou pelo abandono deliberado da dúbia consorte.

Ao invés dos pícaros peninsulares, com quem partilha muitos infortúnios e adversidades, o ícone luso não está confinado a uma só região, aquela que lhe deu nome à falta de um apelido familiar condigno ou liberto de qualquer tipo de bastardia herdada ou de marginalidade conquistada. Não é um José, Josezinho ou Zezinho de um qualquer Tormes, Alfarache ou Segóvia portugueses. Ele é o filho legítimo da arraia-miúda que se habituou a tratá-lo por Zé & Povinho. Tout court. Uma associação única e irrepetível. A maior nobreza que uma nação pode conferir a um cidadão.

Madrid, com o habitual sentido de oportunidade, quis usufruir do prestígio que os séculos dourados do classicismo castelhano lhe outorgaram e ergueu na Plaza de España as estátuas do Don Quijote e do Sancho Panza, o par desenhado com palavras por Cervantes no universo fictício dum romance. Lisboa seria incapaz de prestar a mesma homenagem ao Zé Povinho de Bordalo. Um tal projeto seria sempre entendido como uma brincadeira de mau gosto. A alternativa, então, talvez possa consistir em desafiar as Caldas da Rainha, a cidade que tanto ajudou a criar a figura, meta mãos à obra e concretize a ideia. Criadores de talento nunca faltaram na capital da arte em Portugal...

NOTA
Texto publicado há cerca de meia década no suplemento «Zé Povinho no Pais das Maravilhas. 135 Anos», publicado na Gazeta das Caldas, a 26 de junho de 2010 (p. 9). Dou-lhe agora uma nova vida virtual com pequeníssimas atualizações de forma que não de conteúdo, numa altura em que a pertinência crítica da sua presença continua tão atual como à data do nascimento.

17 de janeiro de 2015

Um keffiyeh árabe em Malmö

KEFFIYEH

o protagonista da história 28 anos passados


A primeira vez que visitei a Suécia fi-lo a partir da Dinamarca, numa manhã radiosa do verão de 1986. Atravessei o estreito de Öresund pelo ferry que faz a ligação entre Copenhaga e Malmö. O espaço Schengen ainda estava por criar e as formalidades nas fronteiras obedeciam a uma burocracia particularmente pesada. Senti-o assim que pus os pés na terra de Ingmar Bergman. Fui empurrado sem cerimónia para um cubículo exíguo, onde uma nativa fardada de polícia me revistou de alto a baixo, sem deixar nenhum recanto por investigar. É que nesse mesmo ano, o primeiro-ministro Olof Palme tinha sido assassinado e o meu bronzeado meridional e o keffiyeh árabe que levava ao pescoço me indiciaram como o provável autor do homicídio. Escapei com a ajuda duma amiga minha iniciada nos meandros sinuosos da diplomacia escandinava.

A minha segunda visita ao país de Alfred Nobel ocorreu numa manhã chuvosa do verão de 2000. Voltei a usar um ferry para passar da Helsingør dinamarquesa à Helsingborg sueca, as duas sentinelas do estreito que liga o tranquilo mar Báltico ao agitado mar do Norte. Nada a registar na travessia. Nada a registar na fronteira. Pelo sim pelo não, deixara o keffiyeh comprometedor em casa. Fui um desconhecido entre desconhecidos. Recordo-me dum montão de garrafas repletas de cerveja à partida da cidade do Hamlet de Shakespeare e num montão de garrafas vazias à chegada à cidade dos vikings das lendas nórdicas. O to be or not to be das duas cidades vizinhas e quase gémeas pode resumir-se, tout court, à interpretação peculiar da lei-seca. Numa é ignorada e bebe-se quando se quer, na outra é respeitada e vai-se beber à terra alheia.

Os claros-escuros do ser e do parecer estão traçados em dois flashes escandinavos, unidos por um braço de mar e três lustres de permeio. Agora que tantos andam por aí a dizer Je suis Charlie, dá vontade de arrumar de vez o slogan da moda neste início de 2015 e exercer o livre-arbítrio de contrapor Je suis ce que je suis, ou, se preferirmos, I'm not perfect, but don't try to change me. Na próxima vez que visitar o país de Carolus Linnaeus, gostaria de levar comigo um keffiyeh nos ombros e uma cerveja na mão, sem ter receio de ser o que sou e nada mais. Mostrar que as aparências iludem, que nem tudo o que luz é ouro e que o hábito não faz o monge, i.e., nem todos os morenos são árabes, nem todos os árabes são muçulmanos, nem todos os muçulmanos são terroristas e muito menos homicidas de figuras públicas ou anónimas. Det är allt!

13 de janeiro de 2015

Catedrais ibéricas de servir café

«En la Antigüedad clásica, el Ágora y el Foro, al aire libre o bajo los pórticos, fueron los espacios de encuentro y sociabilidad de los habi-tantes de las ciudades griegas y romanas. Desde la Edad Media eu-ropea, las Plazas Mayores desempeãron un papel semejante. | Em la Edad Moderna y Contemporánea los Cafés ocuparon el puesto de los anteriores espacios urbanos abiertos al público en general.»
Antonio Bonet Correa, «Prólogo» (2014) 
George Steiner, com toda a mestria que lhe é reconhecida, apresenta em A ideia de Europa (2004) cinco axiomas que, a seu ver, definem o velho continente: o café, a paisagem, a toponímia, a herança greco-judaica e o sentido de fim. Refere poetas, estadistas, filósofos, cien-tistas, políticos, artistas, militares e escritores que frequentaram os espaços públicos, onde se pode tomar uma bebida quente e conver-sar com os amigos; que percorreram a pé os caminhos traçados entre cidades, aldeias ou simples lugarejos, erigidos à dimensão humana por sucessivas gerações de viajantes; que deram o nome a ruas, praças, avenidas e calçadas, preservando assim a memória futura; que inscreveram no seu destino de unidade e diversidade consentida uma matriz cultural fundada nas cidades de Atenas e Jerusalém; que desenvolveram uma consciência do seu final e dos modos de inverter esse sentido de vulnerabilidade trágica.

A ideia primeira de Europa, identificada pelo pensador anglo-franco-americano de origem judaico-vienense, é retomada explicitamente pelo investigador galego com uma profunda formação cultural lusitana Fernando Franjo e aplicada à restrita cartografia peninsular dos Cafés históricos de España y Portugal  (2014). Entre uns e outros, perpassa toda uma gama de possibilidades de tomar essa bebida divina inventada pelos homens para rivalizar com o mais delicado néctar dos deuses. Visitá-los religiosamente a todos abriu uma nova era de peregrinações pelos novos caminhos peninsulares de Santiago, sem ter de sair duma mesma cidade. Confraternizar com Bocage no Nicola do Rossio, com Saramago no Martinho da Arcada, com Pessoa na Brasileira do Chiado. Comer depois um pastel de nata em Belém ou uma fatia de bolo rei na Nacional. Tudo isto em Lisboa. A acompanhar, a bica curta, o carioca ou o abatanado.

A rede das catedrais ibéricas de beber café é extensa e não se esgota na meia centena de lugares de culto arrolada nas páginas dum livro. As descrições históricas são preciosas e as imagens substituem mil vezes o que fica por dizer com palavras. Apetece-me referir o L'Opera de Barcelona, o La Campana de Sevilha, o Magestic do Porto e o Santa Cruz de Coimbra. Conheço-os a todos muito bem e a alguns mais que não cabe aqui registar. Que se veja o guia com devoção e se preencham as lacunas inevitáveis. Convoco porém o Aliança de Faro, um dos mais antigos do país, encerrado há cinco anos pela ASAE. Guerras de alecrim e manjerona que nos impedem de conviver com a memória de Marguerite Yourcenar e Simone de Beauvoir ou de Fernando Pessoa e António Aleixo que por ali passaram. O tal fim previsto por Steiner que urge impedir de andar à solta por . Em nome dos cafés e da nossa identidade cultural.

11 de janeiro de 2015

Poema Inédito

Vieira da Silva, A poesia está na rua I & II (1975)
[Fundação Calouste Gulbenkian]


POEMA UM DIA
Um dia, os rapazes serão louvados. Hão de passar entre multidões floridas. Levarão riso na boca e os braços levantados.
Um dia os rapazes hão de ser punidos. Pelos males que hão de vir dos quatro pontos cardeais. Terão latrinas derramadas nos portais.
Um dia esses heróis serão esquecidos. Os seus nomes alinhados entre conchas e espinhas. Hão de constar de uns livros nunca lidos.
Mas um dia, este dia, será o dia do idílio. Os rapazes ainda não desistiram de soltar os braços dos escravos. E os escravos ainda não renegaram a cor dos cravos. Ainda estamos no princípio desse dia.
Lídia Jorge, Os memoráveis (2014: 283-284) 

8 de janeiro de 2015

Quem muito se abaixa...

EMILIANO ZAPATA

(1879-1919)

«Je n'ai pas de gosses, pas de femme, pas de voiture, pas de crédit. C'est peut-être un peu pompeux ce que je vais dire, mais je préfère mourir debout que vivre à genoux.» 
Stéphane Charbonnier, directeur de Charlie Hebdo (2011)
Em meados dos anos 70, quando o poder dos ditadores com pés de barro foi derrubado, escutei uma frase que me ficou a ressoar nos ouvidos por um tempo tão extenso, que chegou até hojeEs prefe-rible morir de pie que vivir de rodillasTeria sido proferida por Dolores Ibárruni nos anos amargos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Como nunca apreciei a mística purificadora de me arrastar de joelhos, achei a máxima digna duma mulher de armas com a dimensão de La Pasionara, resistente republicana ao nacionalismo totalitário do caudilho da cruzada e generalíssimo do exército.

Uma navegação recente pela virtualidade cibernética revelou-me que a sentença atribuída à revolucionária comunista basca já teria sido dita por Emilio Zapata, no quadro histórico da Revolução Mexicana (1910-1920), com ligeiras variantes de pormenor e de pouca monta. Es mejor morir de pie que vivir arrodillado. Com estas mesmas palavras ou com outras a significar o mesmo, terá Che Guevara defendido os princípios da Revolução Cubana (1953-1959). Uma locução poderosa ao serviço de três conflitos bélicos travados em nome duma mudança brusca e violenta da ordem estabelecida.

Quem também recusava andar de quatro, de gatas ou de cócoras era a protagonista dum drama espanhol de Alejandro Casona que a RTP gravou no Teatro AvenidaAs árvores morrem de  | Los árboles muerem de pié (1949), representado pela Companhia Nacional de Teatro e transmitida com grande sucesso no pequeno ecrã em 1966. Recordo-me bem da última cena em que Palmira Bastos afirmava categoricamente, batendo com a bengala no chão: «Morta por dentro, mas de pé, de pé, como as árvores». Atitudes próprias de quem não gosta de se abaixar para não mostrar o que não quer.

NOTA
Escrevi esta reflexão há já algum tempo e só agora encontrei uma oportunidade para a tornar pública. A frase dita em espanhol passou a ter um sentido acrescido quando pronunciada em francês. Aliás, nos dias que correm, ela pode | deve ser pronunciada em todas as línguas.

7 de janeiro de 2015

Michel Houellebecq, as possibilidades duma ilha e da vida eterna

«Et l’amour, où tout est facile, | Où tout est donné dans l’instant ; | Il existe au milieu du temps | La possibilité d’une île.
Michel Houellebecq, La possibilité d’une île (2005)
Faço tábua rasa das listas publicadas nos rankings da especialidade sobre os filmes que devíamos ver, os discos que devíamos ouvir, os livros que devíamos ler. Tudo isto antes de morrer, está bem de ver, porque depois desse instante capital da vida, a verificação dos Top Ten Lists se torna inviável. A menos que aceitemos a transmigração das almas ou a encarnação dos corpos ao longo dos séculos e milénios, com encontro garantido na intemporalidade. Michel Houellebecq desenvolve magistralmente a temática da imortalidade n’A possibilidade de uma ilha (2005), romance de antecipação, desenhado ao modo das distopias clássicas da ficção científica. Ignoro se foi arrolado como um dos 1001 Books tidos como imprescindíveis para atingir a cultura literária padrão, canonizada por peritos da massificação global, pouco atentos à criação artística da realidade periférica envolvente. Como ainda estou à espera de ler o livro da minha vida, também me dispenso de colocá-lo nessa categoria. Em contrapartida, foi composto por um representante daquele número restrito de autores que me sugerem a descoberta completa da sua obra romanesca. O primeiro passo já foi dado. Os próximos já foram encetados. 

A estrutura discursiva centra-se num dupla narrativa separada por 2000 anos de devir genético, o relato de vida de Daniel 1 e os comentários que lhe são feitos por Daniel 24 e Daniel 25. Pacto autobiográfico duma estirpe biológica única, ligada-continuada pelo mesmo código de ADN e repartida-unificada por incarnações sucessivas de clonagem cibernética. Ecos dos universos utópicos de Aldous Huxley e do Admirável mundo novo (1932) são audíveis em ondas sucessivas. Em ambos os textos visionários se pode detetar um cronótopo vindouro em função dos saberes científicos disponíveis no momento da escrita. Paraísos celestiais com morada terrestre. Os dois partilham um culto insano pelo mito da eterna juventude dos corpos jovens. Os dois alimentam um ódio visceral pela degradação dos corpos velhos. A presença controlada de seres superiores, modificados, perfeitos, integrados em grupos privilegiados, opõe-se a uma massa imprecisa de seres inferiores, primitivos, selvagens, nascidos em plena natureza. A felicidade conquistada pelos primeiros contrasta com a infelicidade herdada pelos segundos. As barreiras de proteção lá estão para estabelecer a fronteira imperiosa entre uns e outros. 

As analogias pautadas devem-se mais às singularidades do género do que à imperícia dos fabuladores de edificarem Futuros possíveis, de gerarem sonhos aos incautos e pesadelos aos precavidos. Divergem, sobretudo, na conceção político-social que a fábula atribui aos sobreviventes das grandes catástrofes geológicas e revoluções biológicas que dividiram os cidadãos e deram origem a outras eras. As castas comunitárias predominantes na inglesa são substituídas pelas relações interindividuais exclusivas na francesa. O desejo material é anulado e a perceção espiritual é ativada. A solidão surge e o amor desaparece. Ao conquistar a juventude perpétua, preparada pela ciência persistente dos Sept Fondateurs e pelo saber convincente da Sœur suprême, o destino dos neo-humanos rejuvenescidos acaba por igualar o destino dos selvagens envelhecidos. A existência privada das emoções que dão sentido à eternidade reduz-se ao nada absoluto. Ironia trágica da própria condição humana. 

Maria 23 supera a angústia da morte e parte à procura da vida. Daniel 25 segue-lhe o exemplo. Enceta uma viagem de prospeção pelos antigos territórios dos homens à descoberta do lado exterior do mundo. As paisagens devastadas pela Grande Seca ocupam o Grande Espaço cinzento vazio de gentes. Faz-se acompanhar de Fox. Um cão. O único ser biológico com quem interage fisicamente desde que a vida real foi substituída pela vida virtual. Os derradeiros representantes genéticos da estirpe humana que deram pelo nome de Maria e Daniel recusam a condição de isolamento insular a que a ambição de imortalidade conduziu. Recorrem ao livre-arbítrio, o modelo eutópico que Houellebecq preservou. Desco-nhecemos se se terão encontrado numa qualquer comunidade de seres sedentos de saborear o riso e o choro das origens. Mistério insondável. A possibilidade duma ilha enfrentar a sucessão de instantes existentes no meio do tempo é a única certeza visível no horizonte do estar e do deixar de estar. A ponte ontológica erigida pelos homens e mulheres de desfrutar a ciência, de conceber a arte, de entender a beleza, de preencher o vazio, de consumar o amor…

NOTA 
Texto publicado há pouco mais dum ano no Pátio de Letras, no regresso dumas férias passadas na Bretanha francesa e nas ilhas normandas do Canal. Retomo-a com pequeníssimas variantes no dia em que Michel Houellebecq volta ao ataque com um explosivo Soumission, um romance de antecipação política com polémica já perfilada no horizonte. Enquanto aguardo pela leitura do novo livro, fiquem as impressões escritas de leituras já efetuadas no tempo.

2 de janeiro de 2015

Descidas épicas aos infernos

SANDRO BOTTICELLI
La mappa dell'Inferno di Dante (c. 1480-1490)
[Bibllioteca Apostolica Vaticana]

No término da sua longa viagem de regresso a casa pelas águas mediterrânicas, Ulisses desce às profundezas subterrâneas do Hades, para consultar o adivinho Tirésias e visitar as sombras dos companheiros já embarcados na barca de Caronte (Homero, Odisseia: XI). A catábase helénica promove deste modo simbólico a ligação entre os tempos pretéritos e os vindouros, para assim enfrentar com maior clareza os desafios do dia-a-dia.

O troiano Eneias segue o exemplo heroico do seu inimigo aqueu e desce ao Infernum latino para visitar o pai Anquises, já recebido por Plutão no reino dos mortos, que lhe vaticina as glórias a realizar no porvir pela augusta família imperial romana (Virgílio, Eneida: VI). Faz-se acompanhar da sibila de Cumas, que o guia nesse labirinto soturno de tristeza plena e lhe permite uma saída segura desse espaço cavernoso normalmente sem retorno.

Uma das viragens poéticas do mundo antigo para o moderno é feita pela visão renascentista de Dante. Escolhe Virgílio para visitar o Inferno e o Purgatório e Beatriz para subir ao Paraíso. Nesta pere-grinação ao outro lado da existência humana, às esferas do trans-cendente católico do pós-morte e além-vida, o arquiteto da Divina Comédia arroga-se o direito de julgar o mundo que lhe era hostil, arrumar a casa e preparar-se para as batalhas ainda por travar.

Os fogos de artifício dedicados a Ianus, o deus latino das passagens, já se extinguiram como efémeros que eram. Iluminaram o mundo nos primeiros minutos do ano novo. Depois a noite voltou tão negra como havia sido no ano antigo. As premonições da taróloga Maya pairam indecisas no ar. A descida aos infernos da vida real regressa, enquanto a subida aos paraísos ilusórios dum ano bom esperam impacientes por mais uma final/início de ciclo redentor.