7 de fevereiro de 2015

Lídia Jorge e os memoráveis duma fotografia de grupo

«Pensas que um dia todos serão esquecidos, mas eu partilho a opinião contrária. Um dia, todos serão lembrados.»
 Lídia Jorge, Os memoráveis (2014)
Assisti à apresentação do último romance de Lídia Jorge, Os memoráveis (2014), no Pátio de Letras, antes de ter lido os relatos nele alojados, atitude algo inédita de quem detesta saber o fim duma história antes de tempo. As sínteses preparadas pela editora e pelos mass media para o lançamento da obra levaram-me a concluir que se trataria duma reflexão ficcionada centrada nessa data paradig-mática do devir português recente, localizada cronologicamente no dia exato em que a Revolução dos Cravos saiu à rua. Fui levado ao engano, porque os eventos documentados no seu interior extravasam em muito esse instante único do nosso percurso coletivo, gerador de muitos outros que se lhe seguiram até aos nossos dias, já lá vão quarenta anos. Foi bom ouvir a arquiteta das palavras evocadas falar de viva voz das palavras convocadas que o livro mais tarde estava preparado para me revelar. Assim foi. 

O núcleo central da ação está ancorado numa fotografia de grupo, tirada pelos memoráveis de 74 no restaurante Memories da Baixa de Lisboa. Decorria então o Verão Quente de 75. No verso da fixação luminosa desse instante singular de memórias partilhadas, estão registados os epítetos de guerra transformados em código dos retratados. A tentação de identificar os nomes escondidos nos nomes revelados é grande, mas a resolução do enigma seria sempre um exercício desnecessário ou inglório. Só a verdade revelada nas páginas impressas conta. O resto só pode ser entendido como um conjunto de interpretações subjetivas de escasso ou nulo valor documental. A vantagem clara das alcunhas reside em tratar as personalidades nascidas no mundo real como meras personagens do mundo da imaginação ou, se preferirmos, exatamente o contrário. Tudo isto sem compromissos de maior, privilégio que a liberdade literária da criação poética permite realizar. 

A trama está repartida por três blocos narrativos distintos, ligados entre si pelo fio condutor lançado na urdidura de modo descontínuo pela relatora-protagonista do escrito, uma jovem jornalista portu-guesa residente em Washington, encarregada de preparar o primeiro episódio duma série intitulada A História Acordada, a transmitir pela cadeia de televisão americana CBS. O objetivo seria de revisitar os locais onde os destinos do mundo tinham sido traçados num passado recente para memoração futura, tal como o caso extraordinário que ocorrera um quarto de século atrás na pátria mais ocidental do velho continente europeu, a fim de recolher o resto da metralha de flores que o tempo ainda poupara entalada nas pedras da calçada de Lisboa. Delineados os contornos da fábula em Brookmont, na Glassy House on the Maryland side of the Potomac river, em finais de novembro de 2003, o cenário desloca-se para o coração da fábula, nos primeiros meses de 2004. O argumento da reportagem só será enviado da capital portuguesa para a estado-unidense em 15 de junho de 2010. As histórias de vida contidas nesse hiato narrativo de cinco anos não são revelados ao leitor, mas podem ser imaginados sem dificuldades de maior. Reportam-se ao reencontro há muito adiado dum pai e duma filha separados/unidos por uma geração completa, aquela que pro-movera a revolução e aquela que a tinha recebido como herança, sem a ter experimentado de corpo presente.

O método do laçador arquitetado pelo produtor americano levou a equipa portuguesa a marcar um conjunto de conversas e encontros com alguns dos atores envolvidos na cena captada em celuloide: o chefe Nunes, o Oficial de Bronze, o fotógrafo Tião Dolores, o Major Umbela, o Dr. Ernesto Salamida, o El Campeador, a viúva do Charlie 8, os poetas Francisco e Ingrid Pontais. Retrospetivas individuais de memoráveis envelhecidos, ostracizados, desencantados; testemu-nhos transformados, a posteriori, em relatos aproveitáveis/dis-pensáveis, conforme o ponto de vista mediático dos editores da peça televisiva. Os ecos distantes de Otelo, Melo Antunes ou Vasco Lourenço ressoam no tecido narrativo. A guerra das unhadas portuguesas travada entre Kissinger e Carlucci surge embuçada nos antropónimos inócuos dum Henry e dum Frank sem apelidos reconhecíveis. Os acordes da Grândola são recordados e a cor vermelha dos Cravos de Abril é recuperada do esquecimento. A revisitação encomendada ao âmago do mito termina com uma promessa de recuperação das memórias perdidas nas brumas do tempo e da decifração futura do que verdadeiramente se passou então nesse tempo tão conturbado de mudanças inadiáveis.

3 comentários:

  1. Mais um livro de Lídia Jorge que ainda não li, pelo que esta excelente recensão me aviva o interesse de mergulhar na fonte de palavras mágicas da escritora. A Revolução dos Cravos é um tema sempre quente, um facto histórico que vai sendo assim reavivado para que as gerações futuras possam aprender com a experiência. Entrevejo histórias cruzadas que me acenam momentos de prazer, como é sempre a leitura dos livros da autora.

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  2. Uma reflexão que me despertou definitivamente para a leitura desta obra. Tinha-me ficado pelas resenhas publicitadas. Obrigada Arthur.

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  3. Agora, vou ler!! Gostei!

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