2 de março de 2015

Michel Houellebecq e as extensões dos domínios da luta dum jovem informático

«Le libéralisme économique, c’est l’extension du domaine de la lutte, son extension à tous les âges de la vie et à toutes les classes de la société. De même, le libéralisme sexuel, c’est l’extension du domaine de la lutte, son extension à tous les âges de la vie et à toutes les classes de la société.»
Michel Houellebecq, Extension du domaine de la lutte (1994)
Tenho vindo a substituir pouco a pouco a compra compulsiva de livros que deixaram de me caber nas estantes depois de lidos pela revisitação de todos aqueles que em tempos me ofereceram visitas guiadas únicas pelo universo mágico da imaginação poética. O caso que aqui trago acompanhou-me numa outra viagem complementar. Aquela que me trouxe de Rennes a Faro, com passagens rápidas por Paris e Lisboa, no regresso dumas férias de verão bretão com amigos de longa data. Entre as etapas percorridas de TGV e Alfa Pendular, em trânsito pelos aeroportos de Roissy e da Portela, pedaços de espaço-tempo intervalados com muitas horas paradas nas gares ferroviárias e aéreas, Michel Houellebecq pôs-me a par das peripécias autobiográficas dum jovem informático de 30 anos, na Extensão do domínio da luta (1994), o romance com que o mais controverso escritor vivo das letras francesas se projetou nas bocas do mundo. Quando cheguei a casa, os dois percursos pelas geografias do real e da fantasia encontraram-se num final feliz, levando-me a idealizar outras peregrinações conjuntas que a força do destino, condicionada pelo livre-arbítrio sempre presente nestas circunstâncias, lá me tem permitido concretizar.

A contracapa da edição de bolso que me serviu de testemunho refere tratar-se da odisseia desencantada do protagonista, situado entre duas idades, a representar o papel dum observador dos movimentos humanos e das banalidades desenvolvidas à beira das máquinas de café. Definição feliz, muito embora o conceito de heroísmo subjacente ao género épico tenha de ser adaptada a uma realidade urbana, atual, situada na derradeira década do século passado. Desde então até aos nossos dias pouco terá mudado. Se as vidas reveladas das personagens da ficção se prolongassem no real quotidiano que nos rodeia, se a mimeses literária se fundisse com as existências traçadas fora do universo diegético dos contos, novelas e romances, se por via deste entrecruzar de planos voltássemos a encontrar o jovem quadro que dá forma à fábula, amadurecido de 10 ou 20 anos, aperceber-nos-íamos que pouco se teria alterado na sua forma de ser e de estar neste mundo globalizado em torno da revolução tecnológica das modernas sociedades da informação computorizada. Estaria provavelmente rendido ao sistema que nos verdes anos associara ao liberalismo económico e ao sexual. As tais extensões do domínio da luta que dão título à obra. O absurdo, a solidão, a tristeza, a desilusão, a angústia e a amargura teriam tomado conta do seu destino pessoal e confirmado um estado de depressão ininterrupta, anunciada desde o início das confissões partilhadas no texto.

No final das deslocações forçadas/escolhidas de navegador solitário pelas rotas hexagonais do país natal, o analista-programador, em conflito com o statu quo a que chegara, opta por uma peregrinação purificadora ao cume duma montanha, rodeada de florestas e de natureza a perder de vista, sentindo com impressionante violência no seu íntimo a possibilidade de experimentar a alegria, o que, num ser até então obcecado com a morte, não deixa de constituir uma mensagem a reter por todos os leitores. Em Houellebecq, a possibilidade de contrariar a predestinação alheia à nossa vontade existe e o direito à liberdade pessoal da escolha é reclamado a cada momento, ainda que, para tal, tenha de recorrer ao tratamento de choque da provocação militante, que tantos engulhos tem causado aos espíritos menos preparados para encarar o diferente.

Durante o voo encetado entre as duas capitais referidas, um parceiro de jornada questionou-me, num francês de invejar, cultivado na cidade luz que deixáramos para trás, se apreciava o estilo do autor da obra que me via ler avidamente. Respondi-lhe que estava a gostar, mas precisava de conhecer os restantes títulos que levava comigo e só depois poderia ter uma opinião global bem formada. Olhou-me incrédulo e continuou a folhear o jornal com as notícias frescas do dia sem voltar a dirigir-me palavra. Agradeci a deferência e continuei a leitura da centena e meia de páginas que tinha entre mãos. Neste momento já estou em condições de o fazer, mas vou aguardar por outras ocasiões para revelar o veredicto final, para abrir o balanço e dizer de que modo geri as contas do deve e haver identificadas depois de lidos e relidos os livros.

1 comentário:

  1. Uma mensagem de sinal positivo bem forte! Se o autor defende a "possibilidade de contrariar a predestinação alheia à nossa vontade" "e o direito à liberdade pessoal da escolha", já me conquistou antes de eu ler um livro dele. É uma sugestão que bem agradeço, Prof. e que vou seguir em breve. Obrigada por mais esta recensão pedagógica que muito apreciei, Prof.!

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