2 de maio de 2015

Patrick Modiano e os mistérios, enigmas e segredos da Villa Triste

« Il y a des êtres mystérieux ‒ toujours les mêmes ‒ qui se tiennent en sentinelles a chaque carrefour de votre vie. »
Patrick Modiano, Villa Triste (1975)
É sempre com surpresa que tomo conhecimento do ganhador cíclico do Prémio Nobel da Literatura. Este ano não constituiu uma exceção. Com a agravante de nunca ter ouvido falar de Patrick Modiano. Culpa minha, por certo, que os académicos suecos lá terão as suas razões bem delineadas quando elegem o novo laureado. E, todavia, prezo-me de ser um leitor assíduo das letras francesas, tentando, sempre que possível, fazê-lo na versão original. Sem as pequenas adaptações exigidas pela passagem dum idioma a outro. Traduttore, traditore, como reza a expressão italiana utilizada nestas ocasiões. Traições consentidas na maior parte dos casos. A formatação anglo-saxónica a que estamos submetidos à escala global lá vai impondo os seus limites ao livre-arbítrio da diversificação cultural só travada por uma resiliência pessoal militante.

Iniciei a minha viagem exploratória pelos campos semeados de palavras do mais recente galardoado com Villa Triste (1975), o primeiro título duma coletânea de dez romances. Assim os classifica o autor, que também os considera como fazendo parte duma obra única, a espinha dorsal de todos os restantes que não cabem no volume que tenho entre mãos. Pode ser que tenha razão. Para já, só posso afirmar tratar-se dum relato breve, situado entre dois tempos separados por doze anos de eventos deixados por revelar. O protagonista-narrador regressa a um espaço de juventude à procura de memórias perdidas e que teima embalde recuperar. Pairava então no ar do cenário único dos dois momentos diegéticos os ecos distantes dos derradeiros episódios da Guerra da Argélia (1954-1962). Os mistérios, enigmas e segredos acompanham o leitor da primeira à derradeira cena da peça. A imaginação terá de ser convocada mais duma vez, se quisermos penetrar no cosmos pessoal das personagens centrais e da estação balnear A..., perdida nas margens francesas do Lac d’Annecy, departamento da Haute-Savoie-Rhône-Alpes. Apercebemo-nos que a proximidade da Suíça, no outro lado do lago, representa uma certa segurança para todos os intervenientes dos factos narrados.

O império da descrição toma conta do discurso e ocupa as lacunas que a narração semeia a torto e a direito. Os catálogos de sabor épico pululam a cada passo. Hotéis, filmes, fotógrafos, livros, ruas, nomes, pessoas. Faits divers recuperados dum universo decadente onde predomina a superficialidade snobe duma burguesia extravagante com veleidades aristocratas. A frivolidade estival retratada é em parte justificada pela pouca idade dos veraneantes. Todos eles na fronteira dos vinte anos. Um pouco aquém e nunca além. E a história tem pouco mais para contar. A verdadeira visita da Villa Triste, a moradia onde os encontros e desencontros dos amigos dum momento leitura-escrita têm lugar, terá de ser feita no original e não nos resumos de circunstância. Só assim o sentido de ridículo e de artificialidade de atitudes documentadas pode ser entendido e colmatado. Essa a função da verdadeira literatura. Aquela que, por vezes, também merece o reconhecimento internacional da crítica especializada e do público em geral.

A obra global de Patrick Modiano é vasta. Os textos breves. A vontade de a conhecer na totalidade é grande. A disponibilidade para a concretizar escassa. Problema pouco relevante para quem gosta de o fazer. Por todas estas razões, vou intervalar os textos que me falta visitar com o de outros arquitetos da palavra. Vou até esquecer-me que a linguagem do cinema muitas vezes se apodera da linguagem dos livros. Nem sempre bem, às vezes melhor. A história do jovem conde russo de origem judia que imagina chamar-se Victor Chmara, o tal que acabei de conhecer plasmadas nas páginas impressas dum romance, já passou ao grande ecrã com o título alternativo de Le parfum d’Yvonne (1994), realizado e adaptado por Patrice Leconte com a supervisão do romancista. O visionamento da sétima arte francesa nas nossas salas de espetáculo é uma tarefa identicamente difícil de concretizar. Nada que não se possa resolver com a ajuda dum CD. Assim me apareça ele no horizonte imediato das minhas visitas frequentes os antros de perdição altamente contagiantes da cultura em formato de levar para casa. Déjà lu, déjà vu? Talvez sim, talvez não…

2 comentários:

  1. O meu comentário perdeu-se no néon cibernético, mas repito: foi o que pensei também, quando soube da entrega do Nobel da Literatura de 2014. Mais um autor que nao conheço, apesar de ter uma obra já significativa. Fica o apontamento, que agradeço, para um dia em que numa livraria tropeçar nele. Mais um para a imensa lista que aguarda que tenha tempo de lhe dar atenção...

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  2. Catorze nobel da literatura para um só país-língua dá que pensar. Ou a França é uma geradora compulsiva de génios ou a cultura literária lusófona com um único laureado em mais de cem anos um caso perdido de poetas, romancistas e demais artes compostas com letras. A Academia Sueca, de facto, não deixa de me surpreender. E viva Modiano que até me parece um escritor de primeiro plano...

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