15 de junho de 2015

Maria Àngels Anglada, histórias do violino de Auschwitz

«... ja havien anunciat el nostre vol i jo ni ho havia sentit, ficat com estava en la historia del violí de la meva amiga -la història que no podré oblidar mai més.»
Maria Àngels Anglada, El violí d'Auschwitz (1994)
Li dum único folgo um relato com dimensão de conto da jornalista, en-saísta, escritora e classicista catalã Maria Àngels Anglada, O violino de Auschwitz (1994). Foi o mero acaso que mo pôs entre mãos, sem para tal ter efetuado um esforço superior ao ato de lhe pegar e de desvendar os eventuais segredos que guardava no seu interior. O dia não estava muito propício a grandes digressões pelo exterior e o percurso pela escassa centena de páginas impressas em livro enviou-me para algumas viagens reais concretizadas no passado e outras quiméricas relegadas para um futuro ainda incerto. 

Visitei o bairro judaico de Cracóvia há dois anos. Anteriormente já havia pisado os de Varsóvia e de Lodz. Só não tive coragem de me deslocar a Auschwitz. Entrar em velhas sinagogas reconstruídas, passear-me pelas ruelas de Kazimierz, parar junto à antiga fábrica e atual museu de Schindler é uma coisa, penetrar no campo de con-centração mais sangrento da Polónia é outra bem diferente. Nada que se compare aos vestígios quase apagados pelo tempo que as judiarias ibéricas deixaram entre nós. Estou a pensar, v.gr., na de Sevilha ou na de Lisboa, já que da de Faro só resta um nome. Os últimos cinco séculos de devir histórico encarregaram-se de apagar as marcas de vidas perdidas deixadas pelo genocídio peninsular perpetrado pelas inquisições católicas e pelo holocausto nazi. 

Terei assim de me contentar com as descrições mais ou menos fiéis das ficções feitas de factos acontecidos. Já o fiz através de muitos outros testemunhos fornecidos pela república das letras. Nomes sonantes a rivalizar com os anónimos. À experiência pessoal vivida na cidade dos bons músicos, onde a arte de combinar sons se manifesta em cada recanto, sobretudo na malha urbana da cidade velha, a tal que se encontra rodeada dum mar verde de árvores plantadas, terei de associar à visão literária duma autora-obra que até agora desconhecia completamente. É através do seu olhar atento que as histórias dum violino, construído em cenário de insanidade huma-na total num campo de extermínio, milimetricamente programado pela barbária instalada a ferro e fogo no poder, se farão e aqui serão recordados. Para que a memória de Daniel, o luthier impro-vável dum Stradivarius encomendado por medida, o protagonista do relato se mantenha viva para sempre, in sæcula sæculorum

O contributo é operado com palavras registadas poeticamente sobre um fundo melódico. Inicia-se com a Sonata em mi bemol de Mozart e termina com o Trio de Mitilene de Climent. O real e o virtual são depositados numa partitura preenchida em tempo de paz para celebrar as vítimas caídas em tempo de guerra. O inferno de Dante e o paraíso de Schindler são convocados ao Campo dos Três Rios, o lager da morte certa, para demonstrar que no meio de tantos führers e kapos demoníacos ainda existem alguns goyim angelicais. Ilhas minúsculas num arquipélago perdido no meio dum vasto oceano sem horizonte à vista. Assassinos, monstros, porcos, inimigos e carrascos. Assim lhes chamam os heróis sem nome convocados pela fábula. Vocábulos muito fracos para nomear/adjetivar a natureza dos atos por si cometidos. 

No final da caminhada encetada pelos meandros da escrita, por entre as notas alegóricas de La folia de Corelli, numa oscilação de tempos diegéticos ancorados nos primeiros anos da década de quarenta, encontramos uma história triste que acaba bem. Todos os atores do drama chamados a representar um papel criador de significados em Auschwitz-Plaszow sobreviveram ao HaShoá, ao Churben/Hurban, à catástrofe-destruição que ceifou a vida de seis milhões de judeus. A instância narrativa resgatou os intervenientes internos que dão voz ao discurso ao anonimato da morte e remeteu-a para um pós-guerra distante muito próximo dos nossos dias, onde o passado e o futuro dos homens e mulheres se confundem num eterno presente. A música não amansa as feras. Afirma-se nas derradeiras linhas do texto. Mas, no fim de contas, sempre tem a capacidade de gerar harmonias.

1 comentário:

  1. A música impõe-se felizmente nesta resenha, onde a magia das palavras consegue relegar para segundo plano as atrocidades cometidas num holocausto sem perdão. Que um violino nos ajude a ver com outros olhos o ser humano e a sua face de luz... Uma sugestão muito interessante a registar, Prof.!

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