31 de julho de 2015

Náuseas do tudo e do nada


«C'est ça donc la Nausée: cette aveuglante evidence? Me suis-je creusé la tête! En ai-je écrit! Maintenant je sais: J'existe - le monde existe - et je sais que le monde existe. C'est tout. Mais ça m'est égal. C'est étrange que tout me soit aussi égal: ça m'effraie.»
Jean-Paul Sartre, La Nausée (1938)
Na viragem dos anos 60 para os 70, cruzei-me com um clássico da filosofia ficcionada que durante algum tempo se candidatou àquela lista do livro da minha vida. As leituras que se seguiram desde então têm vindo a selecionar outros pretendentes ao podium e sido sucessivamente descartados um a um, deixando atrás de si uma marca indelével tão forte como a provocada por aquele a que agora me refiro, A Náusea (1938) de Jean-Paul Sartre, composta pelo grande teórico francês do existencialismo ateu nas vésperas da Segunda Guerra Mundial.

A fixação no texto deveu-se ao modo como o jovem leitor que eu então era se identificou com as reflexões que o protagonista-narrador lá foi tecendo nas páginas dum diário pessoal. O ser e o nada, a consciência e a contingências, a existência e a essência. A busca dos momentos perfeitos para superar a sensação de vazio, de abismo, de náusea. Durante algum tempo fui existencialista. Depois passou-me. No meio de tanta solidão, silêncio e angústia, achei por bem virar a página desses tempos vestidos de negro e passar à descoberta da vida.

O contacto com outras visões alternativas de explicar o absurdo da existência humana ajudaram-me a tomar essa decisão. A frequência dum curso livre levou-me a considerar esta corrente do pensamento contemporâneo como uma verdadeira filosofia de desocupados, cultivada por quem não tem nada que fazer nem faça ideia do que isso seja ou possa ser. Desliguei. Durante anos tentei ocupar o tempo a preencher os espaços situados entre o ócio e o negócio. Evitar a todo o custo a tendência de cair num abismo de tédio feito de coisa nenhuma.

Triplicada a idade que tinha na altura, a náusea voltou. Diferente. O vómito vem agora de mão dada com o excesso de trabalho. A con-versa da treta, a banha da cobra, as guerras de alecrim e manjerona imperam. Abyssus abyssum invocat. A vertigem instala-se. O dolce far niente acena-me. Já retirei o velho romance de Sartre da prateleira. Já lhe limpei o pó. Já comecei a viajar pelas linhas e entrelinhas que lhe dão forma. Quem sabe se no final do percurso me revele os mistérios insondáveis da condição humana, as tais que habitam o tudo e o nada.

27 de julho de 2015

Catherine Clément, dez mil guitarras & um bada

«Les dix mille Portugais avaient perdu leur roi. Mais étaient-ce vraiment lui ? Qui pouvait l’attester ? Des officiers captifs reconnaissaient un corps défiguré, dépouillé de ses insignes royaux ? Allons ! Ce n’était pas vrai. Il avait survécu, il s’était échappé, il allait revenir, il ne pouvait pas mourir. Le roi du Portugal, Sébastien le Désiré, désespoir de son peuple. Quand le soleil se leva sur le champ de bataille, dix mille guitares restèrent sur le sable, abandonnées à Alkacer-Kébir.»
Catherine Clément, Dix mille guitares (2010)
O sebastianismo continua a mover céus e terra por onde passa e toca. Decorridos mais de quatrocentos anos sobre o desapa-recimento do desejado em Alcácer-Quibir, há ainda quem acredite piamente no regresso do encoberto duma ilha encantada, numa manhã de nevoeiro, montado num cavalo branco, espada em riste, pronto a salvar o reino perdido e a conquistar um Quinto Império global. O padre António Vieira terá sido o primeiro visionário a dar corpo ao mito messiânico do último cruzado europeu a terras da moirama, Fernando Pessoa um dos derradeiros a conceder-lhe um sentido profético e a aplicá-lo ao devir histórico do país. O fascínio engendrado pelo destino trágico do rei das mil quimeras também tem agregado uma legião de ardentes seguidores dentro e fora dos palcos teatrais onde os diversos atos do drama se representaram.

Catherine Clément deixou-se cativar pelo enredo da peça e deu-lhe uma interpretação muito especial nas páginas das Dez mil guitar-ras (2010), as tais que os desditosos soldados portugueses terão abandonado no campo da batalha que viu morrer três reis, produzir lendas em duas línguas e fantasias em muitas outras. Para fugir ao déjà vu, optou por uma forma original de recordar uma gesta tan-tas vezes contada e recontada a gerações sucessivas de ouvintes atentos e interessados. Elegeu o rinoceronte indiano do monarca lusitano como contador de memórias desses tempos conturbados, em que a cosmovisão oriental era dado a conhecer à ocidental atra-vés dos animais exóticos de grande porte, convertidos para o efeito em embaixadores privilegiados dos novos impérios em formação. De repente, vem-nos à memória A viagem do elefante (2008), com que José Saramago nos relata as peregrinações de Salomão, o pa-quiderme oferecido por D. João III de Portugal ao sobrinho Maximi-liano da Áustria. Lidos os livros, apercebemo-nos que as analogias discursivas são escassas e acabam por se diluir nos meandros familiares das personalidades/personagens envolvidas na intriga. Os planos da romancista francesa vão mais além do que os tecidos pelo romancista português. Aproveita-se da história do bada asiático para traçar em linhas muito precisas a história dos seus proprietários europeus: o rei D. Sebastião de Portugal, o imperador Rodolfo II da Alemanha e a rainha Cristina da Suécia.

Através dum eficaz esquema de narrativas cruzadas, as instâncias enunciativas convocam ao relato as particularidades de cada um dos retratados e dos espaços cénicos pisados nos seus percursos de vida. As rivalidades religiosas e dissidências internas entre cristãos, muçulmanos e judeus por um deus único e verdadeiro; os conflitos políticos e familiares gizados pelas casas de Avis, Habsburgo e Vasa pelo domínio hegemónico dos povos; as loucuras duns e doutros a justificar as razões e sem-razões das suas ações. O contraponto cultural é-nos transmitido por um Luís de Camões envelhecido, um Giuseppe Arcimboldo cansado e um René Descartes acabado. Arautos da decadência dum mundo em mudança. O real e o imaginário a alternarem entre si soluções de continuidade ficcional para colmatarem as lacunas do nosso conhecimento factual. Os animais e os objetos ganham alma e analisam a vida dos humanos que os rodeiam, o espírito dum brâmane hindu transmigra para o corpo do bada-cronista, Filipe II fala com o fantasma de Juana de Áustria transmudada em libelinha. A fábula encadeada com o apólogo a dar sentido à alegoria ao longo de todos os registos fragmentários. O desejado sobrevive à carnificina africana, opta pelo estatuto de encoberto numa ermida marroquina, ganha o epíteto de enfermo e o dom de curar as maleitas alheias à sombra da Bíblia e do Alcorão. Casa-se com a órfã do sultão derrotado, constitui uma família numerosa e resiste à tentação de reclamar o trono a que tinha direito e a que outros menos credenciados se habilitaram sem medir os riscos que essa temeridade acarretava.

A recreação biográfica das três cabeças coroadas que unificam a crónica tem o condão de nos revelar facetas de vida possível que as lendas negras se encarregaram de inviabilizar. O rei-cruzado português desfaz os sonhos de guerra no convívio com o xeique muçulmano Tidjane Abdallah, o imperador-alquimista austríaco cimenta o sonho de paz nos encontros com o grande rabino Maharal de Praga, a rainha-bárbara sueca abdica de um trono luterano para aceder ao livre arbítrio católico. Três aprendizagens desenhadas nos universos da tolerância e do diálogo entre credos. Mensagem de esperança nesta nossa aldeia global tão pouco habituada a enxergar a alteridade. Eco longínquo desse campo de batalha perdida pelo rei desejado onde os trinados das dez mil guitarras abandonadas continuam a soar o triste fado sebástico de um destino ainda por cumprir.

NOTA
O prazer que a leitura de Catherine Clément teima em produzir em mim sempre que a revisito leva-me a trazer para este espaço o texto publicado há cerca de cinco anos no Pátio de Letras, versão resumida composta em português duma outra mais longa concebida em francês e tornada pública noutro espaço em forma de Ata Universitária, para que as duas se façam companhia e confrontem se assim o entenderem.

24 de julho de 2015

Tempo de tragédia

John Everett Millais - Ophelia (1852) 

Liz­zie entrou na minha vida muito cedo, sem que eu a conhe­cesse pelo nome. Era Ofé­lia e, nos meus dezas­seis anos, já eu amava a quan­ti­dade de poder que se dis­farça numa morte ero­ti­zada. Parti pela mão dela para o texto, o que fez com que nunca usu­fruísse intei­ra­mente de Ham­let. Fiquei sem­pre na mar­gem do ribeiro e o fim não me dei­xava come­çar. O tempo da tra­gé­dia con­ver­gia com velo­ci­dade para aquela ima­gem e então parava, como a sui­cida. Liz­zie Sid­dal flu­tua numa tela e Ofé­lia é sus­ten­tada à super­fí­cie sem que as águas des­li­zem, sem que o resto do que do que acon­tece ao afo­gado ocorra.

Assiste-se, na Tate Gallery, a essa suspensão da narrativa. As palavras de Shakespeare: «Não tardou muito que o seu vestido, tornando-se pesado com as águas que o iam embebendo, arrastasse aquele pobre despojo para a lodosa morte», não se cumprem. É certo que as pessoas têm pressa e se acumulam junto ao quadro, como quem gosta de confirmar uma atoarda. Mas, no momento da contemplação, um novo entendimento se estabelece: uma cerimónia, aquela intimação da arte, uma bolha que envolve o visitante e o pequeno quadro. Dois corpos chegam para o ocultar e há que sentar-se no banquinho em frente, pacientemente, à espera do momento em que o espaço se mostre de novo transponível.

É um momento humilde pois deixamos tudo aquilo que sabemos para trás, como à entrada já deixámos as mochilas. Não vemos a perícia do pintor, nem a biografia do modelo, nem a massa poética de Shakespeare. O olhar dispensou o pensamento, soltou-se do devir. Podia comparar-se com o olhar de Deus, fora do tempo. Ou do animal, que não projeta e que não sabe recordar. Mas o que temos neste olhar pertence ao humano, ao que só no humano paralisa e deixa perceber o mal da carne. Millais pintou aquilo que jamais tencionou pintar: o incitamento às emoções necrófilas.

Hélia Correia, Adoecer (2010: 59-60)

20 de julho de 2015

Os rankings do cicerone de Coimbra

DIPLOMA DA FUNDAÇÃO DO ESTUDO GERAL DE LISBOA
Leiria, 1 de março de 1290 - Dom Dinis
[Arquivo da Universidade de Coimbra]
Nos meus tempos de menino e moço, participei numa visita de estudo a Coimbra. O cicerone de serviço no Paço das Escolas forneceu-nos então um conjunto de dados estatísticos que me deixaram embasbacado durante toda a adolescência. Entre outros pormenores de menor monta, afirmou estarmos na mais antiga universidade do país e na quinta a nível mundial, logo a seguir às sediadas em Bolonha, Paris, Oxford e Salamanca.

Deixada a ingenuidade dos verdes anos, a que a gíria anglo-saxónica remete para a categoria dos teenagers, apercebi-me que o ranking então apresentado carecia de algum rigor histórico, sobretudo no que à realidade nacional se refere. O Estudo Geral de Lisboa foi criado por iniciativa d'el-rei D. Dinis, lavrada na carta Scientiæ thesaurus mirabili, assinada em Leiria a 1 de março de 1290 e ocupando a 16.ª posição nas suas congéneres europeias.

A certidão de nascimento do Estudo Geral de Coimbra remonta a 26 de fevereiro de 1308. Iniciava-se nessa data uma série de seis transferências/regressos dos Studium Generale entre as cidades do Tejo e do Mondego que só terminará na Lusa Atenas em 1537, já no reinado de D. João III. Durante dois séculos e meio, a corporação medieval portuguesa de estudantes comportou-se como uma verdadeira universidade vagabunda sem paralelo conhecido.

Decorridos 725 anos sobre a efeméride, o aniversário da fundação régia da primeira universidade portuguesa é celebrada com toda a pompa e circunstância pela segunda como se fosse a mais antiga do país. Faz-se tábua rasa dos documentos guardados nos arquivos nacionais e dá-se livre trânsito ao faz de conta que dá jeito a quem os segue e sanciona. Afinal o cicerone de Coimbra é que tinha razão de espalhar aos sete ventos a fantasia do seu ranking académico.

17 de julho de 2015

Umberto Eco, as ameaças jornalísticas dum número zero inventado

«Non lo nego, ma mio padre mi ha abituato a non prendere le notizie per oro colato. I giornali mentono, gli storici mentono, la televisione oggi mente.»
Umberto Eco, Numero zero (2015)
O sétimo romance de Umberto Eco já está à disposição do leitor nas livrarias da aldeia global e dá pelo nome de Número zero (2015). Tão polémico como os anteriores. Andar pelos labirintos duma biblioteca abacial à procura do mais cobiçado dos livros perdidos de Aristóteles, percorrer à sombra de Foucault os santuários exotéricos da cabala para desvendar os segredos dos templários, naufragar nas águas exóticas dos mares do sul na pista do ponto fixo onde os dias mudam de data, seguir o rasto do Prestes João das Índias para tomar posse dum reino de fantasia utópica prometido por uma epístola imaginária, vasculhar os baús da casa de campo da infância no encalço duma memória perdida, penetrar nos meandros da teoria da conspiração gizada pelos falsos protocolos sionistas de dominação do mundo ocidental, atravessar com uma lupa de inspetor de polícia os mistérios mais recônditos da nossa identidade europeia multissecular. Depois de tudo isto, não contente, o filósofo, medievalista e semiólogo italiano, ensaísta, académico e romancista fabricante de bestsellers garantidos envereda pelos universos atuais da informação manipulada, aquela que nos impede de diferenciar as histórias efetivamente acontecidas das inventadas ao sabor dos interesses mediáticos do momento.

O argumento encontra-se todo sintetizado na contracapa da obra, a toda a largura e comprimento, ocupando vinte e sete linhas bem contadas de texto quase corrido. Está lá tudo. Literalmente o branco no preto. Às vezes pergunto-me, na presença destas práticas editoriais para vender livros, se merece a pena, logo a seguir, ler o que ficou no interior, se já ficou tão pouco por dizer. Os tópicos arrolados remetem-nos para uma frágil história de amor protagonizada por um ghost writer falhado e uma gossip girl inquietante, para as sombras do Gladio, da P2 e da CIA, para o assassínio do Papa Luciani, para os massacres dos terroristas vermelhos e manobras dos serviços secretos, para as chantagens, intrigas e fantasias ignóbeis que fornecem os ingredientes indispensáveis num manual perfeito para promover a venda de jornais. Fiquemo-nos por aqui e entremos no episódio central que serve de pano de fundo à fábula, o fadário do fundador do fascismo após a queda do regime político por si fundado e da libertação subsequente do país.

O tema do sósia é aqui desenvolvido por Umberto Eco do mesmo modo como George Steiner o havia feito n’O transporte para San Cristóbal de A. H. (1979). Adolfo Hitler e Benedito Mussolini não teriam morrido no final da Segunda Guerra Mundial. Teriam sido substituídos por duplos treinados a criar a ilusão de que o führer germânico e o duce italiano continuavam vivos num qualquer local recôndito do mundo, à espera da ocasião adequada para regressarem ao palco das hostilidades e reconstruirem o reich-impero de braço estendido à maneira romana. Reminiscências desse velho mito arturiano do regresso do salvador da lei e da grei num momento de crise nacional profunda, o mesmo que entre nós se transformou no contramito messiânico do sebastianismo. Os pormenores discursivos seguidos por estes dois ficcionistas ficam a cargo dos eventuais interessados em desvendá-los nos originais, sem terem para tal de recorrer aos resumos desmotivantes de conveniência. Digamos que a técnica literária da ucronia* definida pelo obreiro do relato mais recente funciona às mil-maravilhas, permitindo-nos imaginar o hipotético destino do nosso mundo presente se aquilo que de facto aconteceu tivesse acontecido de maneira diferente.

Vivos ou mortos tanto faz. O papel efetivo de mover destinos no eixo europeu duma nova ordem mundial findou nos derradeiros dias de abril de 1945. A memória dos seus líderes foi sendo apagado pelos sobreviventes. Compulsivamente. A catarse à tragédia representada nesses anos está ainda por fazer. As feridas então abertas estão ainda por sarar. A ameaça de futuras catástrofes paira no ar nos dias que correm. As histórias contadas pelos criadores da palavra escrita tentam a todo o custo proceder a essa purificação exigida por todos como necessária. As histórias contadas pelas pessoas sem direito a protagonismo literário recusam-na. Um dia a ablução acontecerá e o sol voltará a brilhar no horizonte com todo o fulgor há tanto tempo almejada pelas gentes. Miragem dum ver para crer que um porvir incerto mais tarde ou mais cedo materializará.

NOTA
* Umberto ECO, «Os mundos da ficção científica», in Sobre os Espelhos e outros ensaios. [1985]. Lisboa: Difel, 1989, p. 202. 

15 de julho de 2015

Significados da Europa hoje

Clara CastagnéEnlèvement d'Europe

HISTÓRIAS DA ALMA HUMANA & DO ESPÍRITO DO MUNDO

Interrogarmo-nos sobre a Europa significa, hoje, interrogarmo-nos sobre a nossa relação com a Alemanha.

Fomos, todos nós, ensinados a ver o Espírito do Mundo em grandes batalhões de soldados, e deveríamos aprender com Herder a surpreendê-lo também onde ele se encontra - ou parece - ainda dormente ou acabado de entrar na infância; talvez não estejamos verdadeiramente a salvo enquanto não aprendermos a sentir, com uma concretude quase física, que cada nação está destinada a ter a sua hora e que não há, em sentido absoluto, civilizações maiores ou menores, mas antes um suceder sazonal e de florações. Viver e ler significa pensar essa «história da alma humana» em todos os tempos e em todos os países que Herder queria traçar através das realizações da literatura mundial, sem sacrificar a ideia de uma universalidade perene dessa alma, mas também sem sacrificar a um único modelo nenhuma das formas, tão diferentes e várias, que a encarnarem; o amor pela perfeição da forma grega não levava Herder a desvalorizar os cânticos das festas populares da Letónia...

Claudio Magris, Danúbio (1986 | 2010: 37)

13 de julho de 2015

A César o que é de César

Rubens, Júlio César

Faz hoje anos que Caio Julius Cesar (13.07.100-15.03.44) veio ao mundo. Por cesariana. Diz a tradição. A realidade da história desmen-te, todavia, a imaginação da lenda. O mais famoso político patrício, militar e ditador romano, o divino pater patriæ que deu o nome ao mês de julho, não nasceu de cesariana, não foi imperador e não terá dito nenhuma das frases célebres que lhe são atribuídas.

O construtor da România na sua máxima extensão, com um território que já antevia as atuais fronteiras da UE, nunca terá associado os três verbos veni, vidi, vici, para anunciar ao Senado a sua vitória relâmpago na batalha de Zela. Também é pouco provável que tenha proferido a sentença alea jacta est junto ao Rubicão, ou tenha dito Tu quoque, Brute, filii mei! como últimas palavras.

A César o que é de César, terá dito Jesus sobre a legitimidade dos impostos de Roma. Os senhores da terra, que quiseram tornar-se reis de reis com um título à altura, apropriaram-se do nome do fundador da Dinastia Juliana e transformaram-se em Césares imperiais. Kaiser na Alemanha, Czar na Rússia e na Pérsia. Imperadores de impérios caídos. Ave Cæsar, felix dies natalis!

9 de julho de 2015

Patrick Modiano, trilogia da ocupação: teatro de sombras em tempo de guerra

« Au mois de juin 1942, un officier allemand s'avance vers un jeune homme et lui dit : "Pardon, monsieur, où se trouve la place de l'Étoile? " | Le jeune homme désigne le côté gauche de sa poitrine. || (histoire juive) »
Patrick Modiano, La place de l'étoile (1968)
Patrick Modiano estreia-se no universo da escrita com a publicação dum retábulo de textos com três painéis, a que a uma certa tradição, não caucionada pelo autor ou veiculada pela editora, se habituou a designar de «trilogia da ocupação»: La place de l'étoile (1968), La ronde de nuit (1969) e Les boulevards de ceinture (1972). Obras matriciais que abririam caminho ao grande prémio do romance da Academia Francesa e ao prémio Nobel da literatura da Academia Sueca. Estão ligadas por uma viagem de descoberta alucinada às assombrações multisseculares da identidade europeia, na altura em que o território gaulês se viu invadido pelas forças germânicas, entre maio de 1940 e dezembro de 1944. Quezílias antigas geradas aquando do desmembramento do império carolíngio em 888 e da formação das duas grandes nações erigidas no coração do velho continente, eternas rivais dum espaço comum perdido. 

A tela inaugural do tríptico está ancorada num duplo ponto de fuga anunciado no título e confirmado na epígrafe inicial. É que place tanto nos remete para uma praça parisiense em forma de estrela, como para o local onde se cozia no peito a estrela amarela de David. A questão judaica toma conta do relato. O jovem narrador assume o papel de todos os judeus do mundo e de todos os tempos, do militarista ao colaboracionista, do miserabilista ao sionista, do tímido ao despudurado. Fá-lo num desdobramento caleidoscópico de personalidades contraditórias, num acumular de autobiografias caricaturais e num discurso delirante, modelado num caso clínico de mitomania masoquista ou de nevrose identitária, que só a psiquiatria poderá explicar de modo convincente. Todorov insere este tipo de ficção na categoria genérica do fantástico-estranho, definida em termos duma explicação natural do insólito pelo binómio real-imaginário*. Loucura assumida para reduzir ao absurdo os paradoxos dos nossos dias, assentes na ideia de que todos nós somos homens no meio de homens e nada mais, independentemente da nacionalidade ou convicções religiosas a que pertençamos ou julguemos pertencer, sejam elas franco-alemãs, hebraico-israelitas ou judaico-cristãs.

A tábua central pintada com palavras questiona as dimensões subjacentes à qualidade dos traidores, situando-se na fronteira labiríntica traçada entre a lealdade e a perfídia. O narrador de serviço, tão novo e alucinado como o anterior, opta por um jogo duplo de anti-herói bufo que o põe ao serviço da Rede de Cavaleiros da Sombra e da Sociedade Intercomercial de Paris–Berlim–Monte-Carlo. Por outras palavras: a Resistência e a Gestapo. Realiza-o num vaivém vertiginoso de carrocel rodopiante, de ciranda gigante a rodar sobre si mesma em direção a um abismo existencial inexorável, a uma ronda noturna implacável, título de opereta esquecida/inventada ou de mero guarda das noites urbanas. O resultado caótico de tal paranoia é previsível. Conduz ao martírio implícito do protagonista, aquele que assume a identidade cifrada de Swing Troubadour e Princesse de Lamballe, o mesmo que, por detestar a companhia dos seres humanos, imagina dois seres surdos-mudos indefesos com quem pode conversar sem se arriscar a ouvir uma resposta indesejada. 

O registo cromático do derradeiro quadro da série introduz-nos nos meandros dum ato falhado de homicídio. Episódio doloroso, lhe chama a verve juvenil do narrador, alvo do delito tresloucado cometido pelo pai, uma figura enigmática de judeu apátrida que o filho tenta a todo o custo desvendar. Ingloriamente. A recordação dos momentos em que os dois se deslocavam pela velha linha circular de caminho-de-ferro, rodeada pelas avenidas periféricas da capital francesa com nomes de marechais napoleónicos, inspiram o relator a inventar a história misteriosa do progenitor. O sonho e o pesadelo revezam-se, dando voz aos fantasmas, sombras, espetros, miragens e dúvidas dum passado anterior a essa época conturbada de guerra. Romance de ambiente ou de demanda duma humanidade perdida nas brumas da memória pelas vicissitudes da vida ou caprichos da morte. 

Lidos os livros, duma assentada, para não deixar assentar a poeira, encontramos com facilidade alguns elementos biográficos do autor, que as três instâncias novelescas convocadas repartem entre si. O ambiente familiar agitado, as origens étnicas e as práticas pouco ortodoxas dos seus membros são trazidas à ribalta. A obsessão é a palavra-chave que melhor define a situação. Uma forma, quiçá, de catarse. Uma purificação existencial das personagens novelescas modeladas nos seres concretos do dia-a-dia que as inspiraram.

NOTA
* Tzvetan Todorov, Introdução à literatura fantástica. Lisboa: Moraes Editores, 1977, caps. 2 e 3, pp. 25-54.

7 de julho de 2015

The five o'clock tea ou chá das cinco

The World of Samuel Pepys
in Paper Dolls by David Claudon


RAINHA VEM, RAINHA VAI


Diz quem sabe que o Tratado de Aliança Anglo-Português, assinado em 1373 por Eduardo III de Inglaterra e D. Fernando de Portugal, com os seus 743 anos de existência, é o mais antigo do mundo. Como se tal não bastasse, foi renovado-formalizado por D. João I de Portugal e Ricardo II de Inglaterra, em 1386, e dá pelo nome de Tratado de Windsor. Desde então muito se tem dito sobre esta «perpétua amizade, sindicato [e] aliança». Fiquemo-nos pela troca de duas princesas em períodos de conflito armado aceso luso-castelhano, situados na passagem da dinastia de Borgonha para a de Avis (1383-1385) e na de Habsburgo para a de Bragança (1640). Fez-se através de dois casamentos reais muito em voga na altura e agora um pouco caídos em desuso.

D. Filipa de Lencastre (1360-1415) tornou-se rainha consorte de Portugal e Algarve em 1387, após o seu casamento no Porto com o rei D. João I de Avis. Trouxe consigo um modelo multicultural anglo-francês pouco comum no âmbito ibérico das monarquias hispânicas medievais. Foi nesse espírito de renovação de mentalidades que participou na educação dos filhos, a quem Camões designa de Ínclita Geração. O rei-filósofo D. Duarte, o infante-regente das sete-partidas D. Pedro, o infante-navegador D. Henrique, a duquesa de Borgonha D. Isabel, o condestável D. João e o infante-santo D. Fernando. À sua maneira, contribuiu decididamente para tornar o país que a recebera de braços abertos num dos mais prestigiados da Europa medieval a caminho da modernidade.

D. Catarina de Bragança (1638-1705) tornou-se rainha consorte de Inglaterra e Escócia em 1662, após o seu casamento em Portsmouth com o rei Carlos II Stuart. Levou consigo um dote de dois milhões de cruzados e as cidades de Tânger e Bombaim. Fez-se acompanhar ainda dum conjunto de práticas culturais lusitanas que se tornariam numa das mais conhecidas tradições britânicas, o five o'clock tea, o chá preparado em chávenas de porcelana acompanhado de bolos em forma de coroa que tomava pelas cinco da tarde. Aos cakes chamámos nós queques, à marmelada chamaram eles marmalade. Uma permuta de receitas que ainda hoje dão que falar, à margem dos tratados de amizade que, nos nossos dias, se fazem com outros ingredientes bem distintos.

3 de julho de 2015

Os hóspedes da casa dos deuses

IGREJA DE SANTA ENGRÁCIA - PANTEÃO NACIONAL
[Ricardo Jorge Fidalgo]
E aqueles que por obras valorosas | Se vão da lei da morte libertando...
CAMÕES, Os Lusíadas (I, 22: 5-6)
Quando os homens criaram os deuses imortais à sua imagem e semelhança, transpuseram para esses seres superiores tudo aquilo que ansiavam possuir e não possuíam.

Tentaram depois iludir a sua condição humana e imaginaram os heróis, filhos dos deuses e dos homens, libertos da lei inexorável da morte pelas obras valorosas efetuadas em vida.

Construíram também grandes templos na terra para alojar os deuses celestiais, sempre que estes decidiam fazer-lhes uma visita inesperada de duração mais ou menos prolongada.

Edificaram mais tarde um templo único, destinado a juntar todos os deuses olímpicos num espaço digno da sua omnipotência, omnisciência e omnipresença a que chamaram panteão.

Nos nossos dias os filhos dos homens que morrendo ficaram na memória dos descendentes passaram, também eles, a ter direito a honras idênticas como se fossem os filhos dos deuses.

Os deuses do amor e da guerra, da vida e da morte, do tudo e do nada são substituídos pelos heróis dos versos e prosas, das fitas e fados, das leis e artes dignas da imortalidade.

Os deuses abandonam a casa que foi sua, na esperança vã de alcançar um dia a mortalidade divina dos homens, coroa de louros que há tanto anseiam possuir e não possuem.

1 de julho de 2015

Lições da história...

La Cité de Dieu / Augustinus - ms. 216, f. 185 - Amiens - BM . C. 1420


RODA DA FORTUNA

«Quem se encontre fascinado em excesso pelo “grande mundo” da política é amiúde levado a esquecer que também o grande foi pequeno, que para todos e cada um chega a hora da ascensão e da queda, e que até para o mais pequeno chega o momento de levantar a cabeça.»
Cláudio Magris, Danúbio (Quetzal 2010: 293)