24 de julho de 2015

Tempo de tragédia

John Everett Millais - Ophelia (1852) 

Liz­zie entrou na minha vida muito cedo, sem que eu a conhe­cesse pelo nome. Era Ofé­lia e, nos meus dezas­seis anos, já eu amava a quan­ti­dade de poder que se dis­farça numa morte ero­ti­zada. Parti pela mão dela para o texto, o que fez com que nunca usu­fruísse intei­ra­mente de Ham­let. Fiquei sem­pre na mar­gem do ribeiro e o fim não me dei­xava come­çar. O tempo da tra­gé­dia con­ver­gia com velo­ci­dade para aquela ima­gem e então parava, como a sui­cida. Liz­zie Sid­dal flu­tua numa tela e Ofé­lia é sus­ten­tada à super­fí­cie sem que as águas des­li­zem, sem que o resto do que do que acon­tece ao afo­gado ocorra.

Assiste-se, na Tate Gallery, a essa suspensão da narrativa. As palavras de Shakespeare: «Não tardou muito que o seu vestido, tornando-se pesado com as águas que o iam embebendo, arrastasse aquele pobre despojo para a lodosa morte», não se cumprem. É certo que as pessoas têm pressa e se acumulam junto ao quadro, como quem gosta de confirmar uma atoarda. Mas, no momento da contemplação, um novo entendimento se estabelece: uma cerimónia, aquela intimação da arte, uma bolha que envolve o visitante e o pequeno quadro. Dois corpos chegam para o ocultar e há que sentar-se no banquinho em frente, pacientemente, à espera do momento em que o espaço se mostre de novo transponível.

É um momento humilde pois deixamos tudo aquilo que sabemos para trás, como à entrada já deixámos as mochilas. Não vemos a perícia do pintor, nem a biografia do modelo, nem a massa poética de Shakespeare. O olhar dispensou o pensamento, soltou-se do devir. Podia comparar-se com o olhar de Deus, fora do tempo. Ou do animal, que não projeta e que não sabe recordar. Mas o que temos neste olhar pertence ao humano, ao que só no humano paralisa e deixa perceber o mal da carne. Millais pintou aquilo que jamais tencionou pintar: o incitamento às emoções necrófilas.

Hélia Correia, Adoecer (2010: 59-60)

3 comentários:

  1. Um texto intenso de reflexão sobre emoções humanas. Em simbiose com o quadro, lembra-me o suicídio sofrido de Virgínia Woolf...

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  2. Que belo texto e que bela e melancólica tela.

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  3. "Adoecer" é um livro fascinante, em que a autora conseguiu a proeza, nem sempre fácil, de reunir erudição e paixão.

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