12 de agosto de 2015

Isabel Allende, os labirintos da casa dos espíritos

«Pronto Alba descubrió que el lugar más seguro era su propia casa, porque en el laberinto y en el abandono de los cuartos traseros, donde nadie entraba, podían amarse sin perturbaciones | –Si las empleadas oyen ruidos, creerán que han vuelto los fantasmas –dijo Alba, y le contó del glorioso pasado de los espíritus visitantes y mesas voladoras de la gran casa de la esquina.»
Isabel Allende, La casa de los espíritus (1982)
Resisti durante mais duma década a ler a saga que a prima em segundo grau do primeiro presidente marxista eleito do mundo transformou em bestseller internacional em menos dum nada. A suspeita que Isabel Allende tivesse transportado de modo abusivo para A casa dos espíritos (1982) os fantasmas ocorridos no Chile em setembro de 1973 esteve na origem desse boicote pessoal já experimentado noutros casos similares. Resolvi percorrê-lo de ponta a ponta no ano em que se estreou a versão filmada do romance, realizado por Bille August em 1993 e com um elenco de luxo, o que me obrigou a encetar a tarefa de imediato, não fosse a história contada com imagens matar o hipotético interesse da história contada com palavras dispostas em linha.

O prazer da descoberta dos sentidos escondidos foi imediato e acompanhou-me ao longo das vivências ficcionadas de quatro gerações de Truebas, del Valle e García, as três famílias nucleares que dão corpo à fábula. O destino coletivo do designado país de catástrofes ou mais esquecido país da terra, o último recanto da América está presente ao longo de todo o relato, distribuído por catorze capítulos e um epílogo, contidos nas cerca de quatro centenas de páginas da edição de bolso que, em boa hora, adquiri em Sevilha. Fala de tudo aquilo que nós sabemos sobre a terra de Salvador Allende (o Candidato | o Presidente) e de Pablo Neruda (o Poeta), sem se transformar num panfleto político intragável ou difícil de digerir. Remete-nos para um país sem nome, que identificamos sem grande esforço intelectual.

O fluir dos acontecimentos relatados é assegurado pelas memórias de alguns dos habitantes da grande casa da esquina. Os cadernos de anotar a vida redigidos por uma das matriarcas da família são revisitados pela neta e transformados no testemunho que nos é posto nas mãos e à frente dos olhos. Completam-no algumas reflexões do patriarca por excelência dessa mesma família. Tanto uns como outros são coadjuvados pela presença persistente dos entes já partidos do aquém para o além, os tais que teimam em habitar os labirintos arquitetónicos da casa dos espíritos. O realismo mágico das histórias impossíveis, dos duendes, das fadas e dos espetros toma conta do discurso. O realismo puro de que são feitas as coisas fora da ficção é remetido para segundo plano. O mundo da política perde o encanto, porque já sabemos de antemão o fim trágico a que conduziu os bonifrates da farsa. Depois, a vida das pessoas que leem livros é sempre mais dramática do que a vida das personagens que dão corpo aos livros.

Romance circular a vários níveis. Inicia-se e acaba com a chegada por via marítima de Barrabás, o grande cão da família. Pelo meio desenha-se os cenários dum duplo incesto. O neto da mulher violada repete o gesto com a neta do violador. Uma dupla bastardia a unir pela força o sangue dos ramos genealógicos convocados pela gesta, a terratenente e a assalariada, a citadina e a campesina, a detentora dos meios de produção e detentora da força do trabalho. Um universo com lugar ainda a séries ternárias levadas a toque de caixa do real para o imaginário. Marxistas-fugitivos-traidores, presos-desaparecidos-mortos, liberdade-justiça-sindicato, viúvas-órfãos-torturados. Palavras-chave para uma definição sucinta da condição humana. O caminho escolhido pela parente do presidente abatido para fazer a catarse possível do seu país natal. Aqueles que, por pudor, nunca são nomeados. Recurso poético próprio da literatura popular de transmissão oral para salvaguardar as potencialidades da liberdade criadora e da capacidade interpretativa convocadas pelos fados da fruição artística.

Estas férias revisitei o texto escrito para ser lido e a adaptação filmada para ser vista. Cumpriram ambas a sua função de contar uma história de modo diferente. O papel venceu o celuloide mais uma vez. A brevidade exigida pela sétima arte empobreceu drasticamente a tessitura estrutural da narrativa. A versão relatada em duas horas elimina personagens, suaviza episódios, inverte papéis. Minimaliza factos, mutila episódios, trunca eventos. Resulta uma caricatura açucarada do original. O regresso à velha técnica de juntar letras até formar sílabas, palavras, frases e sentidos impõe-se. Sem urgências do olhar registadas a contrarrelógio. A literatura é uma arte que se desfruta com toda a calma do mundo. Só assim se ouvem as mensagens que os espíritos dos heróis da imaginação têm para nos oferecer em toda a sua plenitude e beleza imorredouras.

5 comentários:

  1. Li a Casa dos Espíritos em 1994, curiosamente, também após muitos adiamentos, é que eu nunca gostei de best-sellers. Não acredito neles.
    Mas um dia, aventurei-me na escrita da Isabel Allende. E passei a ser sua fã. Tenho, li, quase todos os seus livros, amei uns, gostei de outros. A última obra que saiu, já há algum tempo, um policial, parece-me, não comprei. Virei-me para outros autores que queria muito descobrir...

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  2. Relembrar leituras é muito bom,sobretudo de autores de que gostamos!!! Boas leituras Artur!

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  3. Li quase todos os livros dela e, principalmente gostei de "O meu País inventado"... Beijinho!

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  4. Não vi o filme, É sempre melhor ler que ver a adaptação, estas nunca são muito fieis, normalmente o filme é mais "leve" e mais resumido.

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  5. Foi o primeiro livro que li de Isabel Allende, adorei.

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