3 de outubro de 2015

Amin Maalouf, as memórias andarilhas de Leão-o-Africano

«Moi, Hassan fils de Mohamed le penseur, moi, Jean Léon de Médicis, circoncis de la main d'un barbier et baptisé de la main d'un pape, on me nomme aujourd'hui l'Africain, mais d'Afrique ne suis ni d'Europe, ni d'Arabie. On m'appelle aussi le Grenadin, Le Fassi, le Zayyati, mais je ne viens d'aucun pays, d'aucune cité, d'aucune tribu. Je suis fils de la route, ma patrie est caravane, et ma vie la plus inattendue des traversées.»
Amin Maalouf, Léon l'Africain (1986)
Quando o século passado tinha ainda uma dezena e meia de anos pela frente, viajei por um bom punhado de cidades multisseculares levantadas na tripla orla continental da bacia mediterrânica. Encetei a visita guiada na companhia do muçulmano Hassan al-Wazzan depois convertido no católico Giovanni Leone di Medici (c. 1488 c. 1554). Realizei o percurso através da magia das palavras escolhidas por Amin Maalouf, que desse modo deu corpo à autobiografia recriada de Leão, o Africano (1986), a sua estreia na área do romance histórico. Fá-lo numa linguagem encantatória, situada no seio da poesia integral feita em prosa poética, faceta que tem conseguido manter obra após obra, para proveito das letras e deleite dos leitores.

As memórias imaginadas do mouro granadino exilado em terras magrebinas, do comerciante, diplomata, pedagogo, explorador e geógrafo, do peregrino que ao regressar da cidade santa do profeta Maomé é capturado por piratas sicilianos e enviado como presente à cidade santa do papa Leão X, chegou-me às mãos pouco depois de ter sido editado em França. Foi-me oferecido por uma amiga de longa data que o trouxe diretamente daí, país onde já começava a ser alvo dos mais diversos comentários críticos, que levariam à sua tradução imediata num número crescente de idiomas, incluindo o português. A fama do autor já atravessara fronteiras algum tempo antes, logo após o sucesso da publicação e divulgação internacional d’As Cruzadas vistas pelos Árabes (1983). Do ensaio à ficção, deu um passo de gigante, ao estabelecer em ambas as modalidades discursivas um diálogo constante entre o Oriente e o Ocidente, extensão global onde os três grandes sistemas monoteístas do Livro se espalharam. Tão próximos e tão distantes uns dos outros. Uma abordagem programática algo compreensível mas pouco expectável, por ter sido encetada entre as margens dos textos por um cristão árabe franco-libanês com méritos comprovados, a ponto de se ter tornado num membro eleito da Académie française (2011).

A reconstituição do trajeto de vida do globetrotter renascentista está repartida por quatro livros com nome de cidade, ancorado cada um deles num espaço geográfico concreto, onde decorreram os primeiros 40 anos da sua existência (894-933 AH | 1488-1527 AD), também eles etiquetados segundo as peripécias mais relevantes desse período restrito de tempo medido pelos ciclos lunares-solares específicos. As memórias documentadas nesse roteiro-de-bordo foram compostas no cativeiro-exílio italiano e dedicado ao filho. Interrompe-as nos primeiros momentos da sua chegada à antiga metrópole fenícia de Cartago, derradeira etapa conhecida do seu périplo de aventuras por dois mundos antagónicos. O livro de Túnis não chegou a ser escrito. O desaparecimento misterioso e a morte não documentada do autor dum Léxico poliglota árabe-hebraico-latino (c. 1525) e da Descrição de África (c. 1526) explica parte da lacuna assumida na crónica romanesca elaborada à distância aproximada de quatro centúrias e picos. A ilusão de verosimilhança narrativa e a dimensão realista do relato são assim preservadas no auto da escrita e no átimo da leitura.

Restam-nos as impressões de viagem registadas pelo grande caminheiro retratado desde que saiu de Granada e depois experimentou os exílios de Fez, Cairo e Roma. Nessas mudanças constantes de casa, com uma passagem fugaz por Constantinopla, assiste à conquista do derradeiro reino andaluz de Boabdil pelas forças castelhano-aragonesas dos reis católicos, escapa ao grande incêndio de Tombuctu no reino africano do Mali, testemunha o castigo infligido pelo grão turco otomano ao imperador egípcio e sobrevive ao saque da cidade-eterna nos tempos de Carlos Quinto. Nos entretantos que pontuam a sua passagem pela existência humana, enriquece-empobrece, casa-descasa e garante a sobrevivência de entre os mortais com a prole que engendra e a obra que engenha. As voltas-reviravoltas dum destino fértil em momentos de altos e baixos continuam a surpreender gerações sucessivas de gentes oriundas dos quatro cantos da urbe terrestre. Devemo-lo em grande parte ao exemplo humanista que nos deixou como legado. Devemo-lo, também, ao exercício de reconstituição histórica levada a bom termo pelo estilo fascinante do romancista-ensaísta do entendimento entre povos, que um dia se viu obrigado a procurar em território europeu a paz que a guerra fratricida travada na sua pátria asiática lhe negara a si e aos seus. Lição a seguir por todos aqueles que ainda acreditam na concórdia entre todos os homens, independentemente das sua origens étnicas, quadrantes políticos e convicções religiosas.

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