7 de outubro de 2015

Catherine Clément, as histórias com história da Senhora

«Béatriz était leur Dame. Elle était devenue leur Señora. […] “Ha-Gueveret”, criaient nos frères en hébreu. La Dame. C’est à Salonique qu’on l’appela ainsi pour la première fois.»
Catherine Clément, La Señora (1992)
A escrita foi inventada pelos Sumérios cerca de 5300 anos. A literatura deve ter surgido pouco mais ou menos por essa altura. Desde então até hoje, o homem terá criado qualquer coisa como cem milhões de milhões de originais que a voragem do tempo lá foi fazendo chegar até nós. Cifra prodigiosa que nem o leitor mais aplicado logrará atingir nas suas viagens contínuas pelos livros que contam histórias fingidas ou verdadeiras. Estima-se que nenhum deles consiga ultrapassar uma escassa parcela de 0,01% dessa cifra prodigiosa. Desconheço o modo como os entendidos na matéria chegaram a tais resultados de cálculo probabilístico. Fica-se todavia com a ideia geral da grandeza da criatividade humana e da pequenez que todos nós temos de o entender na sua universalidade.

Há obras que percorremos uma única vez ao longo dos nossos trajetos empenhados pelas letras feitas de palavras portadoras de sentido. A qualidade relativa de cada uma delas é irrelevante para explicar essa singularidade. O desejo de achar outras associações de sons geradoras de prazer estético limita-nos os passos e obriga-nos a saltar de página em página até descobrir o tal poema-ficção da nossa vida. Tarefa inglória, porque todos os dias surgem títulos novos que nem teremos ocasião de conhecer pelo nome. De quando em quando, deixamo-nos de ilusões e nos lembramos dum texto que em tempos nos encheu as medidas e temos vontade de visitar de novo. A Senhora (1992), de Catherine Clément, cabe nesta categoria de livros repescados num passado recente, sem direito, ainda, a serem postos na prateleira dos clássicos imortalizados por gerações sucessivas de ledores. Nunca o saberemos.

O mais conhecido relato da autora francesa de origem judaica está centrado na mais ilustre humanista portuguesa que a centúria de quinhentos produziu. Beatriz de Luna se chamou na pia batismal (1510) e Mendes após o casamento católico (1528). Dona Grácia (Hannah) Nassi se passou a nomear por vontade própria após a fuga à Inquisição de Lisboa (1536) e posterior substituição da qualidade de conversa forçada pela de judia convicta em Ferrara (1550). Ganhou o epíteto de A Senhora em Salónica (1553/4), que manteve pela vida fora até ao ano da morte ocorrida na Terra Santa (1569), onde era tida como uma digna rainha da Palestina. A história desta mulher invulgar é também a história dum mundo em mudança. Aquele que trocou as alegadas trevas medievais pelas proclamadas luzes renascentistas. As que levaram a civilização ocidental aos quatros cantos da terra e deram origem à globalização. Época de grandes transformações culturais nas artes, filosofia e ciências, de grandes convulsões sociais na economia, política e religião. Aquela que opôs papistas e protestantes, expulsou marranos e mouriscos, promoveu a limpeza de sangue, acendeu fogueiras e espalhou o terror e a guerra um pouco por toda a parte. No velho continente, a tolerância e convívio dos três monoteísmos abrâmicos foi sentido de modo diferente nos diversos países que o compunham, com particular complacência no império otomano, local de refúgio final da comunidade sefardita ibérica, tutelada pela viúva do banqueiro Francisco Mendes / Semah Benveniste, a dominadora ou Ha-Gueveret, como também era apelidada.

A crónica das errâncias da protetora do povo hebreu na diáspora, mecenas de artistas e intelectuais no exílio, patrocinadora da Bíblia de Ferrara e das Consolações das tribulações de Israel de Samuel Usque, íntima do médico João Rodrigues de Castel-Branco, mais conhecido por Amato Lusitano, partidária do messias David Rubeni e do rabi Isaac Louria, é-nos transmitida através do ponto de vista do sobrinho e genro João Micas / Dom Josef Nassi, feito cavaleiro pelo imperador Carlos Quinto e Duque de Naxos pelo sultão Selim II. É a esta figura incontornável da primeira modernidade europeia, amigo íntimo de Maximiano II de Áustria e inimigo figadal de Filipe II de Espanha, que Catherine Clément confia o fio condutor de todas as histórias com história de Dona Grácia Nassi, a Senhora, escrita em homenagem de todas as Beatriz da dispersão de Israel. Tributo literário que a judia de Lisboa merecia, graça que todos nós ficamos a dever à judia de França. Assim o afirma no derradeiro parágrafo do romance, assim se identifica com a protagonista da efabulação, assim se evoca o exemplo duma vida que a ortodoxia católica tentou apagar e que a ficção romanesca recuperou e trouxe ao nosso convívio. Que a leitura se faça refaça então e que aproveite.

NOTA 
As movimentações migratórias que atualmente assolam a Europa levaram-me a revisitar alguns testemunhos literários ancorados nessa realidade cíclica da História. As deambulações quinhentistas de Beatriz de Luna / Grácia Nassi, traçadas por Catherine Clément em A Senhora, encontram-se nessa situação de releitura motivada. Deixo aqui as impressões de viagem publicadas há mais de três anos no Pátio de Letras,  com alguns pequeníssimos ajustes de forma, para que as histórias como lembrança e a cultura como companhia se mantenha neste espaço de memórias partilhadas. 

3 comentários:

  1. Que revisitação tão interessante!
    Adoro a literatura pelas suas infinitas variações.
    Pelas suas palavras parece-me ser uma obra muito interessante! E o tema continua muito atual...

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  2. Reitero o meu prazer ao reler a força poética das palavras inseridas nesta crítica literária. Um romance que ainda não li, infelizmente, pois as histórias sobre a dispersão judaica pelo mundo são sempre ricas e dizem-nos muito da natureza humana.

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  3. As histórias desenhadas com engenho e arte no romance conjugam-se à perfeição com a revisitação inspirada às histórias da Señora Dona Gracia Nasi que em tempos forçados dos Cristãos Novos de Lisboa, Antuérpia, Veneza e Ferrara se chamou Beatriz de Luna ou ainda Mendes. Percurso de vida marcado pelos exílios constantes ditados pelo fanatismo dos adoradores dum único deus de tolerância, amor e paz, que a visão fundamentalista de alguns seguidores transformou em três deuses únicos de violência, rancor e guerra. A natureza humana no seu pior...

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