30 de dezembro de 2016

Aulas de código & prioridade nas filas

O nascimento das lendas nas camisetas em T


O Plano Estratégico Nacional de Segurança Rodoviária para 2020 recomenda a formação para quem renove a carta aos 65. Como es-tou com alguma preguiça para ler em plena quadra natalícia as 83 páginas do PENSE 2020, o melhor é tratar desde já da tal atualiza-ção antes que o nascimento das lendas impressa na T-Shirt se dê.

A nova lei do atendimento prioritário não esperou pelo ano novo para entrar em vigor. Por exclusão de partes, terei de esperar ainda pela primavera que vem para usufruir das regalias dos 65. Só terei então de marchar para as longas filas de espera munido duma bengala bem vistosa para assim provar a minha limitação física evidente.

A vida começa aos 65 afirma a camiseta-em-T. Só se esqueceu de dizer que a reforma só chega aos sessenta e seis anos e três me-ses. Dura lex, sed lex. Estranhas contas com que se medem os nossos percursos existenciais. Velhos para conduzir mas novos para trabalhar. Abençoada juventude esta que tão útil é para o país.

27 de dezembro de 2016

Carlos Ruiz Zafón: histórias do prisioneiro do céu e da cidade dos malditos

«−Ay, qué bien. La verdad es que cuesta tanto encontrar hoy por hoy libros con un mensaje positivo, de esos que te hacen sentir a gusto, y sin tantos crímenes y muertes y eso tipo de cosas que no hay quien entienda… ¿No le parece?»
Carlos Ruiz Zafón, El prisionero del cielo (2011)
O universo mágico do Cemitério dos Livros Esquecidos voltou ao convívio do público leitor da aldeia global. Carlos Ruiz Zafón entra no santuário labiríntico das obras/autores votados ao ostracismo e recupera o título dum romance perdido de Julían Carax, para dar sequência à série literária que lhe deu renome internacional e parangonas registadas nos mass media dos quatro continentes. As aventuras e desventuras vividas pelos heróis e anti-heróis d’A sombra do vento (2001) e d’O jogo do anjo (2008) entram de novo em cena nas folhas impressas d’O prisioneiro do céu (2011). Encontro há muito tempo esperado de velhos amigos/inimigos dos proprietários da livraria Sempere & Filhos, estabelecimento secular fundado em 1888 na rua Santa Ana da cidade condal, local de encontros e desencontros dos agentes transformadores dos sucessos fingidos em eventos possíveis, que dão sustentabilidade ao enredo e coerência à saga.

O regresso faz-se através de David Martín, autor amaldiçoado já nosso conhecido de romances góticos e de folhetins jornalísticos, coprotagonista por excelência deste terceiro ato da sequela. Condenado a ver o seu próprio nome apagado da república das letras publicadas, ele é o verdadeiro prisioneiro do céu anunciado na capa do livro, dado que se vê coagido a escrever sucessos comerciais em nome do seu carcereiro ou deus que tudo pode. É ele também que faz a ligação narrativa entre as duas gerações de livreiros centrais da efabulação, pai e filho, entre as duas metades do século XX convocadas pelo texto, separadas entre si pelos dramas humanos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). As histórias dentro de histórias, como se de genuínas bonecas russas se tratasse ou de matrioskas ideadas com palavras, umas a remeterem para as outras, a saltarem alternadamente das décadas anteriores para as posteriores dos conflitos bélicos referidos, abonam-nos todas elas argumentos entrecruzados da história europeia recente, com um enfoque muito especial na cidade dos malditos ou das personagens-charneira das novelas em série pagas à peseta. 

Por vezes, pergunto-me como é que nestes nossos dias presentes da pós-pós-modernidade se pode continuar a gostar duma escrita feita de lugares comuns pintados de negro, que tanto se assemelha na forma e no conteúdo dos chamados romances de cordel com tramas de faca e alguidar, próprios dum ultrarromantismo novecen-tista que as estéticas naturalistas e realistas da Questão Coimbrã (1865-1866) e das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense (1871) combateram acaloradamente nos alvores da primeira modernidade. A resposta tarda sempre a chegar e vem sempre associada a uma mesma solução. O fascínio transmitido pelas intrigas, mistérios e peripécias reside, sobretudo, no ritmo vertiginoso como são apresentados ao leitor, faminto que está de mais charadas, enigmas e crimes para desvendar ou devorar. As maiores pérolas escondidas | reveladas por Zafón manifestam-se através das sonoridades conferidas ao discurso pelas palavras averbadas. Linguagem inebriante urdida com uma paixão que nos faz esquecer o banho de kitsch transmitido pelos sucessivos períodos, parágrafos e páginas que a albergam. Poesia em prosa ou prosa poética, para o caso tanto faz. Apercebemo-nos do caráter repetitivo da fábula e da limitação de recursos desenvolvidos, e ficamos à espera de mais, de muito mais, sem prestar demasiada atenção às falhas apontadas, para que o prazer da leitura se volte a concretizar, uma e outra vez, sem interrupções, sem intermissões, sem fim à vista. 

As três partes já dadas à estampa da série confrontam-nos com a história dum conjunto de personagens que atravessam a intriga à procura duma identidade perdida, por entre as sombras duma Barcelona imersa num sono repleto de cinzas e silêncios. Daniel Sempere suspeita estar também em vias de perder o nome e a alma que lhe têm dado sentido à vida. O relato termina num ambiente de incerteza que só o futuro poderá mitigar. A próxima etapa talvez ajude a clarificar a situação, dado que a história do protagonista mal acaba de começar.

NOTA
Recebi este livro como prenda do Menino Jesus no Natal de há cinco anos, por recomendação expresso das minhas filhas que sabem quanto a escrita de Zafón me tocara nas duas etapas anteriores do universo mágico do cemitério dos livros esquecidos. Aproveitei a pausa oferecida pela quadra e dediquei-me à leitura da saga e logo a seguir aos Reis dei a minha opinião escrita nas páginas do Pátio de Letras. Chamei-o agora para este espaço de modo a fazer companhia aos restantes elementos da série. Qualquer dia vou ter de mergulhar n' O labirinto dos espí-ritoso derradeiro episódio da família Sempere. A publicidade que tem acompanhado o seu lan-çamento ser garante ser tão envolvente como os precedentes. Não duvido dessa ameaça um só momento.

25 de dezembro de 2016

A noite de Natal do Mário...

 «Josefa de Óbidos e a Invenção do Barroco Português»
[MNAA - LISBOA]


Dia de natal

Tristeza vai-te embora
Tristeza
pequena morte.
Chega a noite, vai-se o dia
e assim há de desaparecer este pobre diabo 
que eu sou
com calças rotas
camisola cosida.
esperavas um milagre nesta noite de natal?
A camisola não recebeste
as calças não tas deram.
Bem feito
para não acreditares em anjos.

mário
1960
IN Maria Rosa Colaço, A criança e a vida (Lisboa: ITAU, 1960)

21 de dezembro de 2016

Invernos de recolhimento e reflexão

INVERNO

Giuseppe Arcimboldo

[Musée du Louvre - Paris - 1573]

O dia mais curto depois da noite mais longa

O inverno começa com o dia mais curto do ano e termina com o nú-mero de horas idêntico ao da noite. Equilíbrio efémero de imediato desfeito pela primavera dentro e só será recuperado na passagem meteórica do verão para o outono. Luta sem quartel entre equinócios e solstícios a marcar a roda contínua das estações.

Giuseppe Arcimboldo (1527-1583) liga-o a Thanatos. À hera, às raí-zes e aos fungos. Deu-lhe um ar carrancudo de alguém que está de mal com a vida e ganhou um esgar duradoro no olhar. A seiva dos verdes anos secou de vez e deixou um tronco morto em seu lugar. O limão usado como emblema simboliza o azedume da velhice.

A tradição milenar que o maneirismo consagrou associa-o ao final dum ciclo de vida. Aquele que se situa entre o alfa e ómega da exis-tência humana. Tempo de recolhimento e reflexão. A linearidade do homem a perder aos pontos com a circularidade da natura. Sem apelo nem agravo. Imparavelmente. Dia após dia, noite após noite...

19 de dezembro de 2016

Mia Couto: Jesusalém, a terra onde Jesus havia de descrucificar

«A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num ermo habitado apenas por cinco homens. Meu pai dera um nome ao lugarejo. Simplesmente chamado assim: “Jesusalém”. Aquela era a terra onde Jesus haveria de se descrucificar. E pronto, final.»
Mia Couto, Jesusalém (2009)
Celebra-se este ano o quinto centenário da publicação em Lovaina da obra magna de Sir Thomas More, a Utopia (1516). A data tem vindo a ser vivida com toda a pompa e circunstância que as academias das letras por esse mundo fora costumam dedicar sempre que podem a estes eventos e a que os mais comuns dos mortais costumam dar muito pouca ou nenhuma atenção. O título escolhido recaiu num termo utilizado por Platão na República (c. 347 AEC), para descrever uma sociedade perfeita a erigir num futuro mais ou menos distante, significando, por conseguinte, um não-lugar. O humanista inglês transpôs essa possibilidade para o presente, localizando-a, todavia, num espaço secreto, isolado do globo, a que só se acederia por mero acaso. Assim o fizeram os imitadores que lhe seguiram o exemplo, sem se aperceberem muito bem do caráter irónico contido no diálogo fundador. Os destaques vão regra geral para os casos paradigmáticos do italiano Fra Tommaso Campanella, na Cidade do Sol (1623), e para o do inglês Sir Francis Bacon, na Nova Atlântida (1627). Eutopias lhes chamaram os entendidos, quando os estudaram e inseriram num género literário conciso, por reunirem relatos otimistas que configuravam modelos políticos bem-sucedidos.

Razão terão tido os responsáveis pelos Livros RTP-LeYa, de se terem aproveitado da efeméride para incluírem na Coleção Essencial a reedição dum dos romances mais conhecidos de Mia Couto, o Jesusalém (2009). Pelo menos é o que dá a entender Miguel Real, que, ao prefaciá-lo, o considera uma das poucas distopias compostas em língua portuguesa. Verdade incontestável para referenciar uma categoria narrativa que se oporia às anteriormente referidas pelo seu caráter pessimista, concretizado agora num espaço-tempo antecipados que convinha evitar a todo o custo. Os modelos apontados como hipotéticas fontes seguidas pelo autor moçambicano seriam as sempre citadas comunidades ideais de cidadãos condenados a serem felizes imaginadas por Aldous Huxley, n’O admirável mundo novo (1932), e por George Orwell, no 1984 (1949). A continuidade diegética proposta é tão sedutora como falaciosa, dado que o miniestado totalitário alicerçado por Mateus Ventura, rebatizado Silvestre Vitalício, se situa numa coutada de caça abandonada e nos tempos da guerra civil que se seguiram à independência do país. No final da ficção, tudo volta à normalidade, sem o mais apagado vestígio utópico duma cidade alternativa vitoriosa, marcada pelos princípios claros-escuros da eutopia ou da distopia. Diga-se de passagem que na república das letras ninguém fica a perder com o facto. As grandes representantes do espírito criador humano não costumam pertencer a nenhum grupo genérico específico. Escapam a todas as tentativas de captura poética e recusam-se a dar origem a outras.

Jesusalém, a terra onde Jesus haveria de se descrucificar, sumiu-se tão completamente do mapa das quimeras fracassadas como surgira no espírito doente do seu mentor. Faz lembrar um pouco o destino trágico infligido à Atlântida, imergida nas águas do mar para castigo da arrogância dos homens, nessa ânsia desmedida de afirmarem a sua superioridade face aos demais mortais. Aqui, a lenda reinventada por Platão remete-nos para um passado distante que não logra atingir as fronteiras do mito, muito embora se possa situar em qualquer parte do oceano que a nossa imaginação consiga enxergar. No texto do prémio Camões 2013, a procura da terra prometida para a realização de catarses vindouras funciona, sobretudo, como um exílio voluntário para o aprendiz de ditador e um cativeiro forçado para a restante comunidade. Número exíguo esse de três homens adultos, dois jovens e uma jumenta, para construir seja o que for, sem a presença feminina a assegurar uma nova estirpe de seres superiores. Essa ilha de bem-aventurados, submetida à vontade alucinada dum fugitivo das más influências da grande cidade e abrigado no isolamento purificador dum lugar situado para além de todos os lugares, estava condenado a desaparecer. Assim aconteceu antes que os leitores tivessem chegado ao derradeiro capítulo da terceira e derradeira parte da gesta. O regresso ao Lado-de-Lá era inevitável, até porque, no cronótopo efetivo em que vivemos, tudo se passa inexoravelmente no Lado-de-Cá. No dia em que a mulher morreu, faleceu o mundo para o fabricante de fantasias. No dia em que uma mulher surgiu como visita no meio do nada africano, a vida renasceu como uma revelação para todos. O regresso à realidade quotidiana da humanidade estava assegurado.

12 de dezembro de 2016

Labirinto de palavras

Theseus und dem Minotaurus im Labyrinth
(C. 275-300 EC)
[Kunsthistorisches Museum, Vienna, Austria]

Retóricas parlamentares...


      — Não posso nem pretendo, honrados juízes e meus bons co-munais, não pretendo nem posso, nem tenho intenção ou possibili-dade de negar e de pôr em dúvida que a proposta ou proposição do benemérito orador que acaba de falar seria daquelas que, dadas as condições, e admitida a possibilidade e conveniência das circuns-tâncias, era talvez, e porventura se apresentaria de um modo, e por tal dedução de causas e efeitos, que eu poderia, e todos nós de co-mum acordo estaríamos dispostos e inclinados a que, admitidos os princípios que são a base e fundamento essencial de toda a doutri-na, consultada somente a suprema, a supina consideração das ra-zões abstratas, e tais que o entendimento, a norma, a lei geral das mais elementares regras da boa administração e da reta congruência dos elementos mais vitais — ou antes daqueles que progridem por certa e invariável marcha desde o seu ponto de partida até o mais culminante; e bem assim firmados naqueles dados estatísticos por mim colhidos e que foram elaborados pela confrontação dos factos — e os factos são tudo na ciência! — Ciência que eu posso dizer com alguma vaidade, que peço me seja permitida, tenho levado desde o caos em que a achei, até outro caos... Quero dizer até onde são os limites confinantes da racionalidade bem entendida; pois se não pode negar que entre os dois máximos perigos do ser e do não ser — como daqui a alguns séculos tem de dizer um grande poeta inglês: To be, or not to be; o que então há de significar traduzido em romance: 
Ou ser capitão-mor ou não ser nada... 
      E citando estas futuras trovas, eu homem de alta ciência que desprezo trovadores e jugulares, sacrifico às musas como Sócra-tes... O conselho sabe quem é Sócrates e quem são as musas; mas quando não soubesse, bastaria dizer-lho eu...
Almeida Garrett, O Arco de Sant'Ana (1845 & 1850: cap. xxxii)

9 de dezembro de 2016

A palavra do ano

PASSAROLA

A Geringonça do Padre Bartolomeu de Gusmão

[Bibliothèque national de France]


Os sentidos escondidos das palavras


A Porto Editora pôs à votação pela oitava vez consecutiva a Palavra do Ano. Entre o Dia Restauração e a Noite de São Silvestre, os in-teressados deverão escolher uma das dez candidatas à tão subida honra de assim enriquecer o património vivo e precioso da língua. São elas: brexit, campeão, empoderamento, gerigonça, humanista, microcefalia, parentalidade, presidente, turismo e racismo.

Diz-me uma ciência secreta vinda não sei bem de onde que a esco-lha recairá na quarta palavra da lista. Aquela que a riqueza lexical e o dinamismo criativo do português importou do occitano antigo ger-gons, através do castelhano jeririgonza. Dizem os dicionários das academias envolvidas que o vocábulo se referiria a uma linguagem vulgar e difícil de entender ou a uma ação estranha e ridícula.

Desconheço qual a utilidade de eleger a palavra-vedeta deste ano se já me esqueci qual foi a vencedora do ano passado. Atrevo-me a dizer que será a mesma das restantes palavras convocadas na produção individual e social dos sentidos nos 365/366 dias em que o ciclo solar se completa. Serem usadas conjunta e solidariamente quando são necessárias para interpretar e construir a própria vida.

Neste sufrágio mediático exercerei o meu direito de abstenção. O re-sultado parece-me óbvio. A Geringonça acaba de festejar o primeiro aniversário e encontra-se de perfeita saúde. Parabéns. Levantou voo com sucesso como a Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão. A vontade dos homens cumpriu-se pela conjugação das palavras certas que souberam atualizar no momento do diálogo. Nada mais.

5 de dezembro de 2016

Thomas Mann, os exercícios do livre-arbítrio de Mário e o Mágico…

,,Die Freiheit existiert, und auch der Wille existiert; aber die Willensfreiheit existiert nicht, denn ein Wille, der sich auf seine Freiheit richtet, stößt ins Leere.
Thomas Mann, Mario und der Zauberer – Ein tragisches Reiseerlebnis (1930)
No percurso biográfico do homem, a predestinação e o alvedrio perseguem-se passo a passo. Nenhum ser vivente foi ouvido no ato de que nasceu e ninguém lhe ouvirá dizer o dia em que morreu. Entre o alfa e o ómega da sua existência efémera de ser diferenciado, terá de gerir a herança genética duma estirpe que não escolheu e que só poderá prolongar a meio gás. A menos que o fator incesto se meta de permeio e altere os cálculos. A vontade existe, mas está limitada pelo tempo. O antes e o depois não contam. Só o presente estabelece a ponte entre o que já foi e o que ainda está para ser. Thomas Mann desenvolve o tema da liberdade que existe latente em cada um de nós em Mário e o Mágico (1930), uma escassa centena de páginas dispostas em forma de novela com um pano de fundo dramático bem visível no horizonte. 

O relacionamento conturbado dos dois antagonistas que dão título à obra é-nos transmitida a posteriori pela voz vienense dum veraneante austríaco de férias familiares em Torre di Venere, estação balnear da costa italiana do mar Tirreno, em finais dos anos 1920. Fá-lo utilizando uma primeira pessoa do singular que se dirige de modo confessional a um interlocutor desconhecido na segunda pessoa do plural. O tom empregado no relato circunstanciado de recordações desagradáveis revela um grande constrangimento, funcionando como uma verdadeira catarse dos factos testemunhados a contra-gosto numa noite quente de agosto, em que o abominável Cavalieri Cipolla, forzatore, illusionista e prestigitatore, entrou em cena no barracão de tábuas convertido em sala improvisada duma soirée de magia e se começou a desenhar a inevitável catástrofe. 

A estrutura da tragédia é detetável em toda a representação mimética narrada. Um prólogo feito com palavras carregadas de sátira amarga e dura para descrever o ambiente político-social que antecedeu o espetáculo. Um párodo preenchido com a entrada tumultuosa e impaciente do público transformado num coro coletivo de emoções a ocupar a orquestra do teatro. Um conjunto de episódios / estásimos de avanços e pausas na ação, a ser preenchido à vez pelas falas dos atores-hipócritas e pelos apartes do narrador-corifeu. O êxodo rápido de todos, após a queda do farsante ao som de duas detonações de pistola abafadas pelos aplausos e gargalhadas dos assistentes. O Mágico desafiou os limites da liberdade individual de Mário e foi punido exemplarmente como é costume acontecer nestes arremedos de vida de seres aparentados com os deuses. Híbris lhe chamavam os gregos. Arrogância lhe chamamos nós. Para o caso tanto faz. 

Na parábola inventada pelo grande mestre das letras alemãs, o hipnotizador encartado é derrotado pelo camariere, um simples empregado de mesa que recusou ser humilhado publicamente, que não quis ser tratado como um novo Ganimedes mítico trazido para a modernidade decadente degli anni ruggenti vinti, que se opôs a ser um mero boneco articulado nas mãos dum manipulador profissional de segunda ordem. Na alegoria composta pelo já então prémio Nobel da literatura, a ascensão do regime fascista mussolínico está latente em cada página da ficção moldada com dados factuais. É um alerta que o novelista lança a todos os leitores, numa altura em que o espaço cénico europeu sucumbia um pouco por todo o lado aos avanços vertiginosos dos totalitarismos de partido único e saudação romana de braço estendido. Premonição confirmada pouco depois pela implantação do regime nazi no império hitleriano, que obrigariam o expatriado Thomas Mann a procurar o refúgio suíço e a aceitar a cidadania americana. 

A literatura não tem idade e não se mede pelo número de palavras selecionadas para gizar um enredo. É intemporal e imensurável. À distância duma guerra mundial e duma guerra fria, as querelas sem quartel dos nacionalismos travadas a montante e a jusante duma cortina-de-ferro que em tempos existiu voltam a assombrar as ribaltas do velho continente e da aldeia global. Todas elas são as-sustadoras e ultrapassam em muito as fronteiras palpáveis do reino da fantasia. Os truques de cartas e de números são manejados incansavelmente pelos tiranetes despóticos de meia-tigela já alojados neste terceiro milénio. A história só não se repete, porque a musa que a rege lá vai tendo o cuidado de expor os mesmos conflitos intergeracionais com roupagens renovadas. O homem está condenado a ser livre. Que o seja em vida, antes que a morte o surpreenda e remeta para o mundo acabado da perfeição. A dignidade da raça humana passa pela coragem de exercer o sinal do querer, de resistir ao poder da sugestão, de violar os ditames da prepotência, de ser o artífice do seu próprio destino. Custe o que custar e doa a quem doer. Anche se no vuole!...

NOTA
As voltas e reviravoltas que a história dá são surpreendentes. Nos finais da década de 20 do século passado, a Europa e o mundo aproximava-se a passos de gigante da maior tragédia que a humanidade gizou.  As novas cortinas-de-ferro feitas de novíssimos muros-da-vergonha andam a proliferar perigosamente por aí como cogumelos em terra húmida e sombria. Os tiranetes já começaram a renovar as roupagens e já estão preparados para entrar em cena. Mais rapidamente do que seria de esperar há um par de anos quando publiquei este texto no Pátio de Letras. Trago-o agora para aqui para a avivar a memória se isso servir para alguma coisa... 

1 de dezembro de 2016

Fábulas Ibéricas do Galo e do Touro

Portugal & España 

Unidade na Diversidade

Revelou uma recente sondagem de opinião, realizada pelo Real Instituto Elcano de Madrid, que cerca de sete em cada dez portugueses quereriam unir-se politicamente a Espanha, com vista ao fortalecimento da sua posição conjunta no seio da UE. A informação foi-me transmitida via FB por um aluno da Universidade de Sevilha, que ali conheci numa estancia de investigación.

Esse fait-divers, elaborado um pouco em contracorrente com a tendência atual de desagregação europeia, chamou-me à memória uma conversa recente com um colega e amigo dessa mesma universidade. Estava-se nas vésperas do referendo que ditaria a independência da Catalunha do estado espanhol e a hipótese da vitória indiscutível do sim trazia-o num angústia total.

Para si, a união dos dois países enfraqueceria o ímpeto separatista das autonomias mais rebeldes. A capital seria Madrid, o idioma adotado o espanhol, o regime seguido a monarquia. Pasmei. Às dificuldades que lhe fui apontando sobre a aceitação portuguesa duma tal fusão, achou sempre argumentos de peso para me converter à ideia peregrina exposta com tanta convicção.

No Dia da Restauração, apeteceu-me brincar com o caricato da situação. Referir que o federalismo ibérico, defendido entre outros por Antero de Quental na Causa da decadência dos povos peninsulares (1871), até me seduz nos seus princípios mais gerais. Assim se erija de modo que o caráter impulsivo do Touro hispânico não esbarre com a genica telúrica do Galo lusitano.

27 de novembro de 2016

Carlos Ruiz Zafón, os jogos do anjo e os enigmas da luz eterna

«Bienvenida al Cementerio de los Libros Olvidados, Isabel [...] Este lugar es un misterio. Un santuario. Cada libro, cada tomo que ves, tiene alma. El alma de quien lo escribió, y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con él. Cada vez que un libro cambia de manos, cada vez que alguien desliza la mirada por sus páginas, su espíritu crece y se hace fuerte. En este lugar los libros que ya nadie recuerda, los libros que se han perdido en el tiempo, viven para siempre, esperando llegar a las manos de un nuevo lector, un nuevo espíritu.»
Carlos Ruiz Zafón, El juego del Ángel (2008)
Alguém disse e eu registei na memória que escrever um bestseller é tarefa fácil. Pode acontecer a qualquer um num qualquer momento de inspiração criativa. Repetir a proeza outras vezes sem cair nos perigos do déjà vue é que se torna particularmente difícil. Carlos Ruiz Zafón tem conseguido manter-se nas top-listas dos escritores com maior êxito editorial à escala planetária, apesar de andar a replicar um mesmo clichê diegético há mais dum quarto de século. Ensaiou o modelo na Trilogia da neblina (1993-1995), aplicou-o na Marina (1999) e canonizou-o nas quatro peças novelescas inseridas no Cemitério dos livros esquecidos (2001-2016). O segredo tem residido no preenchimento dum esquema narrativo estereotipado como se o tivesse acabado de inventar. A mestria utilizada neste expediente caiu no goto do público, indiferente à vulgaridade dos lugares-comuns em que está ancorado. O prazer estético de rever os heróis de histórias contadas e recontadas à exaustão só terminará quando se chegar a um ponto sem retorno. Aquele em que já não houver mais segredos dignos desse nome para revelar ou dilatar.

A saga dos livreiros sediados na rua Santa Ana da cidade condal chegou ao fim. O lançamento do derradeiro volume da tetralogia mais falada no momento acaba de ocorrer em todo o mundo hispâ-nico. Um dia destes também chegará às mãos de todos nós, vertido para os diversos idiomas da aldeia global. Provavelmente ainda antes do Natal. Entretanto, fico-me com as impressões que os títulos já publicados me proporcionaram. Depois de ter decifrado os mistérios contidos nas páginas d’A sombra do vento (2001), voltei-me para as aventuras de intriga, romance e tragédia anunciadas na contracapa d’O jogo do Anjo (2008). O fascínio e o espanto foram uma constante da visita. Demorada. Li o texto muito lentamente. Degustei-o com toda a calma, como se dispusesse de todo o tempo do mundo e ninguém me pressionasse. Queria retardar a chegada do fim. Tratava-se também duma história de livros malditos e do homem que os redigira, duma história de amor e ódio, de sonhos e pesadelos. De como idealizar uma obra de sucesso sem qualidade para ser exposto nas vitrinas das livrarias ou uma obra-prima sem leitores para ser condenada ao esquecimento. Eis o dilema a que o protagonista da fábula e fabricante de contos é obrigado a enfrentar. Atuar na dependência/independência das imagens refletidas na infinita galeria de espelhos que dão corpo e sentido aos enigmas da Lux Æterna. Um labirinto a que só alguns têm acesso. E mais não digo, que as palavras registadas nos livros do livro serão sempre melhores do que as minhas.

No processo de descoberta dos fios condutores do relato de relatos, repartidos por três atos e um epílogo, em vão procurei o rasto de Julián Carax ou logrei seguir as pisadas de Daniel Sempere. A linha cronológica urdida na trama tinha recuado uma geração inteira de vidas ficcionadas e só me dei verdadeiramente conta do facto já bem entrado na intriga das intrigas. A tapeçaria resultante deste entrelaçar constante de fadários autónomos, separados/ligados estruturalmente entre si pela alternância incansável de espaços-tempos, apresenta-nos um aspeto de inacabada execução, que só os episódios vindouros ainda por compor poderão resolver. O destino de David Martín, o autor-fantasma da novela de don Pedro Vidal e do panfleto religioso de Andreas Corelli, o autor consagrado de duas séries folhetinescas góticas compiladas n’Os mistérios de Barcelona e n’A cidade dos malditos, fica suspenso até melhor oportunidade. Talvez então tenhamos acesso ao mais profundo âmago da sua existência, Aos abismos insondáveis próprios dum ser habituado a lidar com o transcendente e com os segredos da imortalidade, dum ser semelhante ao Dorian Gray retratado por Oscar Wilde, impedido de envelhecer um só dia da sua vida. A hesitação fantástica situada entre as dimensões naturais do estranho e as sobrenaturais do maravilhoso ficam no ar. A curiosidade de clarificar a dúvida é adiada até uma nova etapa da sequela. Assim se faz render a fruta nesta arte de preparar os triunfos literários à distância dos anos. E parece que está tudo dito.

23 de novembro de 2016

As titânides e os exercícios do poder

J. Howard Miller, We can do it! (1943)
[Westinghouse Electric Corporation]

A fortuna de querer pouco e poder muito...

Dilma Rousseff queria ser a Angela Merkel da América. Os planos saíram-lhe furados. A presidente brasileira que também queria ser conhecida por presidenta já não é nem uma coisa nem outra. O impeachment vitorioso afastou-a das ribaltas do poder nos tempos mais próximos enquanto a chanceler alemã lá continua de pedra e cal a ditar ordens a uma Europa submissa. Diz-se por aí que foi um golpe orquestrado por Michel Temer que agora lhe sucedeu no palácio do Planalto. Calúnia/verdade, vá-se lá saber...

Hillary Clinton queria ser a primeira mulher-presidente dos EUA. Os projetos foram-se por água abaixo. A ex First Lady que também queria converter o marido no primeiro First Gentleman do país falhou nas duas direções. O déjà vu democrata da candidata saiu derrotado no confronto com o jamais vu republicano do opositor. Dizem algumas línguas viperinas que os eleitores preferiram a demagogia dos novos senhores da Casa Branca à arrogância dos seus antigos inquilinos. Visto deste prisma, se calhar até têm razão...

Theresa May queria manter os domínios do RU na UE. O resultado do Brexit trocou-lhe as voltas. A militante da oposição deu o dito por não dito quando assumiu a chefia do governo. Terá de medir o seu talento retórico de primeira-ministra inglesa com o da sua homóloga escocesa. É que nesta guerra de titânides, Nicola Sturgeon até pode alcançar uma dupla façanha, manter-se unida a Bruxelas e separada da tutela da Londres. Isabel II que se cuide. Um dia destes ainda acorda rainha da Mini-Bretanha. Quem viver verá...

20 de novembro de 2016

As memórias do convento

COMEMORAÇÕES DO TERCEIRO CENTENÁRIO DO LANÇAMENTO DA 1ª PEDRA DA BASÍLICA DO PALÁCIO NACIONAL DE MAFRA

JOSÉ SARAMAGO
Memorial do Convento
(1982)
«Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez...»
(Contracapa da Editorial Caminho)

  1. «El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há de ser levantado o convento. Ficará neste alto a que chamam da Vela, daqui se vê o mar, correm águas abundantes e dulcíssimas para o futuro pomar e horta, que não hão de os franciscanos de cá ser menos que os cistercienses de Alcobaça em primores de cultivo, a S. Francisco de Assis lhe bastaria um ermo, mas esse era santo e está morto. Oremos.» (J.S, MdC. 1982: 86 )
  2. «...começou a constar em Mafra, e foi confirmado pelo vigário no sermão, que vinha el-rei a inaugurar a obra de raiz dos caboucos para cima, colocando com as suas reais mãos a primeira pedra. Primeiro se anunciou que seria aos tantos de outubro, mas não houve tempo para cavar os alicerces até à sua conveniência fundura, apesar de serem seiscentos os homens, apesar dos muitos tiros de pólvora que a todas as horas do dia vão atroando os ares, será então em novembro, meados dele, depois não pode ser, que já seria como de inverno, andar aí el-rei enterrado na lama até às ligas das pernas.» (J.S, MdC1982: 130 )
  3. «Ai o dia seguinte, passado que foi aquele novo susto de repetir-se a rajada do vento do mar, que sacudiu toda a geringonça, mas enfim, soprou e passou, ai o dia seguinte, retome-se a exclamação, dezassete de novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se multiplicaram as pompas e as cerimónias no terreiro, logo às sete da manhã, frio de rachar, se achavam reunidos os párocos de todas as freguesias em redor, com os seus clérigos e muito povo, é forte presunção que tenha vindo desta ocasião o dizer, para uso dos séculos e das gazetas.»  (J.S, MdC1982: 134 )
  4. «Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em procissão, de andor, dentro da urna os dinheiros do tempo, ouro, prata e cobre, umas medalhas, ouro, prata e cobre, e o pergaminho onde se lavrara o voto, deu a procissão uma volta inteira para mostrar-se ao povo que ajoelhava à passagem, e, tendo constantemente motivos para ajoelhar-se, ora a cruz, ora o patriarca, ora el-rei, ora os frades, ora os cónegos, já nem se levantava, bem poderemos escrever que estava muito povo de joelhos...»  (J.S, MdC1982: 135 ) 

17 de novembro de 2016

O camaroeiro da Princesa Perfeitíssima

CAMAROEIRO REAL

Dalmática oferecida por D. Leonor à igreja do Pópulo
[Museu e Arquivo Histórico do Hospital Termal de Caldas da Rainha] 
Depois de el-rei D. João falecer, fazendo uma dama, que fora sua, queixume à rainha que um fidalgo, com quem a casara, era mau caseiro por ser sobejamente inclinado à caça, disse-lhe a rainha: 
―  Calai-vos, Fuão, que se não pode levar a carga do matrimónio sem alguma recreação. O que as outras mulheres sentem eu o não sei; mas de mim vos afirmo que todas as vezes que el-rei meu senhor, que está em glória, vinha de fora, me parecia que tornava a casar de novo.
ANÓNIMO, Ditos portugueses dignos de memória  (séc. xvi)
Desconhece-se se de facto D. Leonor de Lencastre (1458-1525), viúva de D. João II (1455-1495) e irmã de D. Manuel I (1469-1421), terá dito o que o compilador anónimo disse que disse no Ditos acima transcrito em jeito de epígrafe. A ser verdade, deve situar-se entre 1470 e 1481, período de tempo em que usufruiu do título de Princesa de Portugal, por estar casada com o herdeiro do trono. O estado de graça conjugal terá começado a vacilar nesse preciso momento, dando início ao processo de rotura que culminará com o desaparecimento trágico do filho em 1491.

Presumo que a Princesa Perfeitíssima terá começado a usar o camaroeiro real como corpo da sua divisa na mesma altura em que o Príncipe Perfeito terá adotado pelo pelicano eucarístico. O sangue mandado derramar pelo herdeiro de D. Afonso V ao assumir as rédeas do poder terá pesado na dupla escolha. O novo soberano, para simbolizar a consolidação do poder absoluto que passou a exercer em todos os reinos e senhorios de aquém e além-mar em África; a real consorte, para simbolizar o luto pela morte matada do irmão e do cunhado por motivos políticos.

A rede simboliza, assim, o reino dos céus, por se assemelhar à ma-lha lançada às águas para pescar todo o tipo de peixes. A salvação da alma seria, a seu ver, a mais preciosa das riquezas alcançada em vida: Preciosior est cumctis opibus. Citação bíblica (Provérbios: 3, 15) incluída no emblema régio da fundadora das misericórdias e do hospital termal das caldas que levam o seu nome. Com estas pala-vras, quereria a rainha dizer que o poder temporal alcançado nos reinos da terra de pouco ou nada valeriam depois de transpostas as fronteiras inexoráveis da existência humana.

NOTA:
Apeteceu-me contar esta história no dia em que a Princesa Perfeitíssima foi ao encontro do Príncipe Perfeito e estarão os dois em grande glória a celebrarem eternamente as folias matrimoniais dos reencontros... 

14 de novembro de 2016

Lídia Jorge: a noite das mulheres cantoras ou o reino do império minuto

«Mas nós rodopiávamos indiferentes aos brilhos projetados sobre as nossas roupas, porque sabíamos que estávamos a celebrar um encontro no interior do império minuto, e havia vinte e um anos que na realidade não nos encontrávamos.»
Lídia Jorge, A noite das mulheres cantoras (2011)
A sede desmedida de sucesso instantâneo é uma realidade incontornável nos nossos dias, fantasiada por uma multidão sempre crescente de potenciais candidatos aos cumes olímpicos da fama e campos elísios da imortalidade. Deitarem-se obscuros e levantarem-se famosos nos quatro cantos da terra. Eis a grande sonho acalentado por todos. Custe o que custar e doa a quem doer. Entre um momento e o outro, bastaria uma simples aparição fulgurante num qualquer concurso mediático, norma geral patrocinado pela variante televisiva, para atingir o resultado merecido, o triunfo repentino e irrefutável. Nestes desígnios de idolatria galopante, o sonho nunca prevê o pesadelo. A glória da vitória nunca admite a vanglória da derrota. Cada pretendente crê poder alcançar por mérito próprio o rótulo de Top Model dos trapos, Master Chef dos tachos ou Super Idol dos palcos. Tudo em inglês, para que a ilusão do troféu conquistado adquira um relevo de magnitude planetária e deixe todos de boca aberta e a salivar de inveja.

Lídia Jorge centra-se nesse fenómeno mediático atual do reino do império minuto n'A noite das mulheres cantoras (2011), onde nos relata a saga de cinco candidatas a estrelas cintilantes das canções pop-swing erigidas em português e com passaporte garantido para o mundo. Fá-lo através de duas versões de dimensão diferente, a oficial e a real, separadas por um intervalo de vinte e um anos de lembranças adormecidas e de esquecimentos avivados. À mais recente e breve, dá o nome de «O Conto de Solange» e situa-a numa noite perfeita do verão de 2009. À mais antiga e longa, dá um ar de exame de consciência dos acontecimentos vividos em 87-88 e reparte-a por vinte capítulos numerados e um epílogo sintetizador de todos os fragmentos convocados pela intriga. Amor e ódio, riso e choro, vida e morte, são ingredientes omnipresentes na ação que dá corpo à fábula e alma ao texto.

Lisboa é o palco central do drama e África o lateral das tragédias. Os ecos de histórias antigas são frequentes. Prodígios duma escrita sem limites a que a autora há muito nos habituou. As costas índicas dos murmúrios e atlânticas das saudades, as cidades silvestres das amizades forjadas e das inimizades forçadas, as notícias de ventos assobiando nas gruas do devir coletivo dum povo, são atualizados pela memória da voz feminina que conta e reconta a história dum bando de cinco mulheres cantoras, descendentes dum velho império perdido à procura de novos horizontes globais a subjugar que possam combater sem tréguas as sombras multisseculares dos fantasmas de antanho. Os aromas do chá moçambicano do Monte Namúli no Gurué e do café angolano do Paralelo Dez no Cuanza-Sul chegam-nos através das rotas de Joanesburgo e do Lobito com umas pitadas das rotas americanas alternativas dos EUA e Canadá. Há ainda um pão com diamantes expressamente preparado para as merendas futuras num cais de muitas chegadas e partidas, de muitas debandadas e retornos, de escassas permanências e demasiadas ausências. A janela da imaginação abre-se de par em par em cada página dum romance composto com palavras musicais a soar a jazz com cadência perfumada de blues, requebros dissonantes de ópera italiana rejeitada e um tudo ou nada de fado lusitano mal digerido a deixar um travo amargo na língua.

O protagonismo imediato recai nas cinco jovens que dão título à obra e mediato na corte de fabricantes de êxito certo e seguro, gravado em vinil e consagrado em cena. A fazer-lhes companhia silenciosa, encontramo-nos nós, leitores-espetadores privilegiados dum reality show especial, urdido com utopias quotidianas tecidas para deleite e proveito de todos aqueles que queiram assistir à representação sempre renovada da comédia humana. O teatro da vida é oferecido a quem o quiser observar no interior dum livro tradicional feito de papel e letras a cheirar a tinta e pautas musicais invisíveis à espera duma partitura inspirada. Então, poderemos idear a melodia mais ajustada para trautear com as mulheres cantoras as lyrics avisadas da «Canção Afortunada», aquela que nos fala de alguém que tem tudo e não quer nada, ironia trágica quando aplicada a um grupo que nada tem e tudo quer. Amor, morada, valor, fama e tudo o mais que vier.

NOTA
Os reinos do império minuto continuam tão vivos hoje como à data da publicação dum dos mais marcantes romances de Lídia Jorge. Os reality show serão outros, mas o espírito é o mesmo. As mulheres cantoras até podem ser homens cantores, mas as cantorias pouco terão variado. Recupero para este espaço um texto que então tornei público no Pátio de Letras, possibilidade de visitar um livro que na altura gostei de percorrer, palavra a palavra, frase a frase, página a página.

9 de novembro de 2016

Fábulas doutros tempos

REPUBLICANS VS DEMOCRATS 

O elefante e o burro


No tempo, em que inda fallavão
Os animaes como a gente,
He tradição que tiverão
Conferencia em caso urgente

O burro, que, não sei como,
Se introduzio no conselho,
Quiz, fingindo-se estadista,
Também meter seu bedelho.

Eu n’um tom, que differia
Bem pouco do que hoje he zurro,
Foi revolvendo a questão,
Discretou como hum burro.

Depois de lhe ter ouvido
Alguns conceitos de arromba,
O carrancudo elefante
Lhe disse, torcendo a tromba:

“Esse tempo, que tens gasto
“Inutilmente em clamar,
“Insensato, não podias
“Aproveitallo em pastar?

“Vens affectar eloquencia,
“Animal servil, e adjecto!
“Hum tolo nunca he mais tolo,
“Que quando quer ser discreto.

Bocage, Rimas (1799) 

Obs.: 
Como diz a sabedoria popular, vozes de burro nem sempre chegam ao Olimpo...

7 de novembro de 2016

Carlos Ruiz Zafón, a sombra do vento e o cemitério dos livros esquecidos

«Pues bien, ésta es una historia de libros […] de libros malditos, del hombre que los escribió, de un personaje que se escapó de las páginas de una novela para quemarla, de una traición y de una amistad perdida. Es una historia de amor, de odio y de los sueños que viven en la sombra del viento.»
Carlos Ruiz Zafón, La sombra del viento (2001)
Quando me foi recomendada A sombra do vento (2001) de Carlos Ruiz Zafón, fiquei com vontade de a visitar de imediato. A sugestão partira duma amiga de longa data que tem uma relação de grande cumplicidade com a cultura e teima em manter acesa uma paixão incondicional pelos livros e pelas leituras. Manias. Soube depois que já estava traduzido numa trintena de idiomas e publicado numa quarentena de países. Obtivera inúmeros prémios internacionais e as mais espantosas críticas da imprensa planetária. O romance transformara-se num grande êxito de vendas à escala global e o autor numa celebridade no universo das letras hispânicas atuais na viragem de século e de milénio. Subconscientemente, pousei o volume que tinha entre mãos no expositor da livraria e parti à procura de títulos mais discretos. Pretexto esfarrapado para afastar os fantasmas dos preconceitos que os fenómenos editoriais de sucesso massivo sempre me provocaram. Não consegui resistir a uma segunda investida e trouxe-o para casa sete anos volvidos. Resolvi testar a poeticidade da obra-prima que fazia correr tanta tinta em toda a parte e lancei-me à tarefa de desvendar os seus mistérios há tanto tempo escondidos. Fi-lo no idioma em que fora concebido para que o efeito saísse reforçado. Rendi-me ao poder inebriante das palavras que me fizeram companhia enquanto durou a visita. Incondicionalmente.

Voltei ao seu convívio noutras ocasiões. Sempre que um novo pilar se vai acrescentando ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Um par de vezes. A sensação de maravilhamento é invariável. A viagem pelo seu interior flui como água cristalina que vai da nascente à foz sem escolhos indesejados a espreitar em cada reentrância de trajeto. Retomei-o agora que o quarto e derradeiro acaba de ser anunciado. Ao que as entidades promotoras da edição lá vão avançando, virá carregado de surpresas que esclarecerão todos os segredos acumulados ao longo das múltiplas histórias que dão corpo à saga. Publicidades à parte, cá fico a aguardar que a Livraria Semper prossiga de portas abertas no coração da cidade condal de Barcelona, para que os livros nela postos à disposição dos clientes nos continuem a contar os destinos guardados no seu interior e lhes voltem a dar a visibilidade que merecem. Que nos revelem outros autores malditos ou amaldiçoados pelas vicissitudes dos destinos malfazejos com que se foram cruzando. Que nos permitam seguir os itinerários dos seus heróis, anti-heróis ou uns e outros em simultâneo e sem preconceitos de espécie alguma. Que nos confiem as suas fortunas e adversidades arremedadas como se de facto tivessem acontecido. Plausíveis ou pouco prováveis. Verosímeis ou pouco fiáveis. Para o caso tanto dá. Que nesta esfera do faz-de-conta a imaginação é que conta.

História dum enigma contido no próprio título do relato. Uma ficção dentro duma ficção. Um livro dentro dum livro. O composto por Julián Carax e o aproveitado por Carlos Ruiz Zafón. O autor imaginado de antibestsellers condenados ao fracasso e autor real de bestsellers destinados ao sucesso. O primeiro preocupado em apagar do mundo a memória da sua existência o segundo empenhado em espalhar aos quatro ventos a força da sua presença. Um a destruir os exemplares restantes dos poucos que conseguira vender. O outro a espalhar aos sete ventos os assombros da sua escrita publicado os quatro cantos da terra aos milhares de milhares ou milhões. Curiosos espelhismos estes ou simetrias criadoras com que a literatura se vai fazendo-desfazendo-refazendo sem fim à vista. Réplicas de réplicas a mediar as paixões confrontadas. É também uma história paralela de amor e morte entre os dois coprotagonistas dum duplo relato com título comum, o autor do romance maldito encontrado num refúgio de livros e trevas situado nas entranhas mais profundas das Ramblas da capital catalã e o do seu guardião oficial nas páginas do livro que temos entre mãos. Daniel Sempere recupera-o do esquecimento a que estava votado e com ele traça uma via pessoal de aprendizagem moldada pelos percursos de vida que já haviam sido trilhados pelo seu mentor, à distância de duas guerras mundiais e duma outra civil de permeio. Possibilita ao indivíduo sem rosto renascer de entre os finados com uma nova identidade. Resgata-lhe a memória das cinzas a que as chamas purificadoras o haviam votado. Dá-lhe ânimo para recomeçar a desenhar histórias de vida contadas com a magia das palavras perseguidas/encontradas-semeadas na sombra do vento.

4 de novembro de 2016

Estante de livros

A saga efémera das top listas 


A Fnac convidou um júri de 5 fazedores mediáticos de opinião para eleger os 12 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos.

O resultado do conclave literário foi publicado na Estante tendo sido alvo generalizado das mais diversificadas críticas nas redes sociais.

Não resisti ao impulso de marcar a minha posição e afirmei ter lido 10 dos 12 arrolados sem dizer se seriam ou não os meus favoritos.

Avanço agora que só teria pensado num deles caso me resolvesse a preencher um top dúzia em-linha das minhas leituras preferidas.

Seria uma tarefa por demais escusada e que em nada divergiria das N-listas alternativas que entretanto se foram perfilando no horizonte.

O melhor talvez seja deixar essas tais listas de autores/obras em branco para que todas elas acedam a uma celebridade merecida.

1 de novembro de 2016

Para grandes males grandes remédios

CANDIDE OU L'OPTIMISTE - VOLTAIRE

[Expositions virtuelles de la BnF - Galerie des écrivains et conteurs]


Le tremblement de terre...

À peine ont-ils mis le pied dans la ville [de Lisbonne] en pleurant la mort de leur bienfaiteur, qu’ils sentent la terre trembler sous leurs pas; la mer s’élève en bouillonnant dans le port, et brise les vais-seaux qui sont à l’ancre. Des tourbillons de flamme et de cendres couvrent les rues et les places publiques ; les maisons s’écroulent, les toits sont renversés sur les fondements, et les fondements se dispersent ; trente mille habitants de tout âge et de tout sexe sont écrasés sous les ruines...

Un bel autodafé...

Après le tremblement de terre qui avait détruit les trois quarts de Lisbonne, les sages du pays n’avaient pas trouvé un moyen plus efficace pour prévenir une ruine totale, que de donner au peuple un bel autodafé ; il était décidé par l’université de Coïmbre que le spectacle de quelques personnes brûlées à petit feu en grande cérémonie, est un secret infaillible pour empêcher la terre de trembler.

27 de outubro de 2016

Mario Vargas Llosa, os folhetins da tia Júlia & do escrevedor

«En ese tiempo remoto, yo era muy joven y vivía con mis abuelos en una quinta de paredes blancas de la calle Ocharán, en Miraflores. Estudiaba en San Marcos, Derecho, creo, resignado a ganarme más tarde la vida con una profesión liberal, aunque, en el fondo, me hubiera gustado más llegar a ser un escritor.»
Mario Vargas Llosa, La tía Julia y el escribidor (1977)
Uma das imagens mais vivas que guardo da infância é a de obser-var a minha avó materna encostada à telefonia a ouvir a Simples-mente Maria patrocinada pelo Rádio Teatro Tide, a história mirabo-lante e interminável da Coxinha, folhetim radiodifundido pelas ondas hertzianas já não sei se da Rádio Renascença se do Rádio Clube Português. Pouco importa. Lembro-me de a ver chorar, gritar, bara-fustar e interpelar as personagens à espera de uma resposta que, naturalmente, nunca lhe era dada. Com o meu avô as coisas passa-vam-se de modo mais calmo. Para além das partidas de hóquei em patins em que Portugal ainda ia ganhando títulos à Espanha, limita-va-se a seguir muito tranquilamente os folhetins que O Século ou o Diário de Notícias publicavam regularmente em tiras destacáveis, que depois recortava e coligia metodicamente para memória futura. Passados esses instantes mágicos, gostaria de saber a forma como reagiriam às versões atualizadas das telenovelas transmitidas em doses industriais e sotaques variados pelos canais abertos da RTP, TVI ou SIC. As circunstâncias obrigam-me e ficar pelas meras conjeturas que até nem são muito difíceis de gizar.

Mario Vargas Llosa não nos descreve nas páginas d’A tia Júlia e o escrevedor (1977) nenhuma cena semelhante à que presenciei nos meus tempos de menino e moço em período de férias estivais. Limita-se a recuar até essa já longínqua década de 50 (em que as radionovelas eram rainhas também na outra margem do Atlântico e competiam renhidamente pela liderança na guerra das audiências) ao encontro de um jovem peruano de 18 anos de idade, estudante universitário de direito, diretor de informação na Radio Panamerica-na, biscateiro coercivo de muitos mesteres e contista praticante nos escassos momentos livres que lhe restavam. Os amigos e familia-res tratam-no por Marito ou Varguitas e os colegas por don Mario, mas nenhum deles por Llosita, diminutivo que nós, leitores, gostaríamos de ver averbado no papel, para lobrigarmos o autor convertido no protagonista e narrador do romance que temos entre mãos a revelar-nos, de viva voz, os primeiros passos que traçara nos meandros da escrita e do amor. As nossas suspeitas converter-se-iam em certezas, mas a ficção literária seria lamentavelmente traída pela biografia factual.

A urdidura deste relato das aprendizagens do herói reparte-se por dois eixos narrativos paralelos já anunciados no título: a tia Júlia e o escrevedor. Dois bolivianos de nascimento que os acidentes da vida colocaram em terras peruanas. Com a primeira, irmã de uma tia por afinidade, divorciada, à procura de marido e com 32 anos de idade, estabelecerá um complexo relacionamento sentimental, marcado pelo enamoramento dissimulado, casamento proibido e separação consentida. Com Pedro Camacho, o escriba de folhetins radiofóni-cos de maior sucesso em todo o espaço sul-americano, na casa dos 50 anos, erigirá uma ténue camaradagem profissional, própria de quem é obrigado a privar quotidianamente em locais contíguos de trabalho. Afastado o labéu do incesto do primeiro caso, sobram-nos as peripécias novelescas do segundo. Surpreendentes, espantosas e inconclusas todas elas, como convém ao género. Nos nove libretos esboçados, predominam as alusões a tragédias, dramas, parábolas e desventuras mil, a dar corpo a outros tantos radioteatros transmitidos simultaneamente ao longo do dia pela Rádio Central. O cansaço provocado pela criação em série leva o criador a confundir os episódios, a misturar os textos, a trocar as personagens, a baralhar os ouvintes. O recurso providencial a incêndios, terramotos e naufrágios catastróficos para reparar as barafundas criadas não é bem aceite pelos produtores que o internam por insanidade mental.

A tia Júlia e o escrevedor não é o primeiro nem o último romance de Mario Vargas Llosa. Nem pouco mais ou menos. É aquele em que se traça a história de alguém que deseja a todo o custo singrar nos universos da escrita, que se inspira nas histórias reais de vida para compor uma série de contos que um olhar crítico mais atento acon-selha a remeter para o caixote do lixo. Conhecemos o argumento de seis deles. Ignoro se algum terá sido recuperado e publicado em livro. A obra do autor é vasta e as minhas leituras diminutas. Com-posto 33 anos antes de ter sido galardoado com o prémio Nobel da Literatura, o relato autobiográfico do mestre dos sete ofícios acaba por ser uma premonição do próprio percurso do romancista. A arte de criar enredos está toda presente nas formas narrativas convoca-das: a novela de aprendizagem, o folhetim radiofónico e o conto realista. A academia sueca apercebeu-se desse percurso ímpar e agiu em conformidade. O nosso aplauso e está tudo dito…

NOTA
Compus este texto há meia dúzia de anos para o Pátio de Letras. Trago-o para aqui agora, porque está centrado num autor que aprendi a gostar muito antes dos académicos suecos se terem lembrado dele e porque este é um dos meus livros preferidos.