25 de janeiro de 2016

David Ebershoff, as metamorfoses identitárias da rapariga dinamarquesa

«From downstairs, the silence implied a forgiving kiss. Then there was even louder laughter from Greta and Anna, and just as Einar was about to beg them to leave the studio, to let him change out of the dress in peace, Greta said, her voice soft and careful and unfamiliar, “Why don’t we call you Lili?”»
David Ebershoff, The Danish Girl (2000)
As viagens são um excelente meio de promover as aprendizagens. Confirmo o lugar-comum e exemplifico-o com um facto concreto ocorrido há menos dum mês. O acaso dum convite recebido na altura exata levou-me a visitar o Arken, um museu de arte moderna situado nas imediações de Copenhaga. O arquiteto Søren Robert Lund concebeu-o com o aspeto de barco abandonado no cais duma pequena ilha báltica da baía de Køge, elemento cénico já de si significativo a assinalar o processo pessoal de enriquecimento de saberes. O interior reservar-me-ia ainda outras possibilidades de os ampliar à luz das criações estéticas atuais. Fixar-me-ei na exposição retrospetiva de Gerda Wegner (1885-1940), uma pintora cuja existência efetiva me passara totalmente despercebida até então. Admirei os quadros exibidos e prestei atenção aos porme-nores detetados. A representação constante dum mesmo rosto e corpo de mulher moldados ao gosto da Art Déco despertou-me um reparo especial. Regressei ao início da mostra e clarifiquei as ideias. Uma foto legendada da modelo disse-me tratar-se de Einar Wegener (1882-1931), o marido da artista, metamorfoseado em Lili Elbe, por vontade própria e força das circunstâncias. Sem querer, encontrara-me no centro dum caso de transgeneridade mediática ocorrido na passagem dos anos vinte para os trinta. A singularidade vivida pelo casal levaria David Ebershoff a redigir A rapariga dinamarquesa (2000), romance recentemente adaptado ao cinema por Tom Hooper. Lembrei-me nesse instante de ter deixado em casa o livro para ler quando voltasse ao país e de ter planeado ver o filme entretanto estreado a nível mundial.

Cumprida a missão programada de entrar nos meandros do fait-divers por duas vias distintas, apraz-me afirmar que a versão contada em celuloide é bastante fiel à contada por escrito. Impulso de quem visualiza no papel impresso as imagens projetadas no grande ecrã. Convergem no núcleo central dos eventos factuais narrados. Divergem no tratamento dado aos episódios laterais pela ficção. Revi tanto numa narrativa como noutra alguns dos espaços pisados pelos dois protagonistas do drama, transformados em atores involuntários duma peça da vida real. Cenários expressamente compostos, de modo verosímil e convincente, para interpretar as ambiguidades identitárias com que a vida os juntou/afastou. Tablados teatrais onde foram obrigados a representar uma duplicidade de papéis que lhes granjearia junto do público sedento de insólito uma celebridade inesperada para além da própria morte. Desci na Estação Central de Copenhaga, passei junto ao Tivoli, atravessei a Rådhuspladsen e dirigi-me à Casa da Viúva, localizada nas imediações do Nyhavnskanalen e do Kongens Nytorv, paredes-meias com os palácios de Amalienborg e Rosenborg Slot. Revi-me em Paris a percorrer os Marais, a passear-me pelos jardins do Luxembourg e das Tuileries, a cruzar os quarteirões do Boulevar Sebastopol a norte de Les Halles Centrales e a dirigir-me para o refúgio da Casinha dos heróis/anti-heróis da fábula. Até me imaginei na Schloßplatz e no Brühlsche de Dresden, a observar o Elba através da Varanda da Europa e a vislumbrar, uma derradeira vez, as figuras de Henrick, Anna, Carlislie, Hans, Greta e Einar-Lili, enquanto degustava, muito lentamente, um chocolate alemão comprado na Under den Linden de Berlim. Miragens virtuais com que os textos se tecem e entrelaçam.

Descidas as cortinas da boca de cena e apagadas as luzes da ribalta, o romancista americano traz para o proscénio uma nota de autor, onde afirma ter composto uma obra de imaginação livremente idealizada a partir de dados efetivamente ocorridos. Rastreou os artigos publicados no Politiken e noutros jornais, consultou os diários e cartas de Lili Elbe, editados e publicados por Niels Hover no Man Into Woman (1933). Depois disfarçou nomes, inventou personalidades e deslocou a narrativa para Pasadena, a cidade californiana que o viu nascer. O realizador britânico não enveredou por aí. Centrou-se no essencial e omitiu o acessório. Urdiu a trama sem recorrer à digressão gratuita de intercalar episódios secundários com direito a um happy ending romântico. David Ebershoff remata o relato com o espírito da rapariga dinamarquesa a ser levado nas asas dum papagaio de papel. Tom Hooper oferece-lhe um trespasse tranquilo na Clínica Municipal para Mulheres da capital do estado germânico da Saxónia. Com uma maior ou menor dose de fantasia cor-de-rosa, exigida pelos interesses comerciais envolvidos na conversão dos livros em best-sellers e dos filmes em candidatos a Oscars, a ironia trágica da figura charneira que os inspirou e lhes deu forma entra em cena. No final das deambulações, o pintor-modelo que nasceu homem com uma mulher dentro de si vê a morte arrebatar-lhe a liberdade que a vida lhe dera por momentos. Capricho do destino que nos faz esquecer da história verdadeira das pessoas reais que deram corpo às personagens idealizados na tela, no celuloide e no papel. Segredo insondável que os deuses terão ciosamente guardado para si e que um dia destes talvez resolvam revelar para satisfação dos mais curiosos ou ávidos de sensações fortes a roçar o escândalo.

3 comentários:

  1. Muito, muito bom, Artur. Gostei imenso de ler.

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  2. Também gostei muito e muito interessante achei a coincidência da visita ao museo, com a publicação do livro e o estrear da película.

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