15 de março de 2016

Retratos pintados e contados

ARPAD SZENES, Marie-Hélène X, 1942

(Arpad Szenes pinta Vieira da Silva pintando Arpad a pintar...)
[Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva]

Je dérange ?

Lembrava-me por exemplo de partilhar a opinião bastante difundida de que Arpad era vítima da excessiva proximidade de Vieira, como o seu ar inofensivo de bicho, Ma Femme Chamada Bicho. Madame Bicho ia visitar o marido a um ateliê que ele tinha construído no jardim, para se livrar de Madame.

Ao contrário de mim ele era um homem suave, demasiado suave para impor quaisquer regras e exigir que fossem cumpridas. Não ousava enfrentá-la e impedi-la de entrar quando ela, uma vez por outra, abria a porta sem bater e perguntava:

«Je dérange?», já depois de ter entrado.

Ela tinha uma espécie de estratégia eficaz: afastava-se e deixava-o em paz por algum tempo, e quando achava que fora tempo suficiente e ele tinha a obrigação de já ter realizado algo que valesse a pena, ali estava ela à sua porta, com ar tímido e curioso de discípula admirativa, que vem visitar o mestre.

«Je dérange?» perguntava com voz humilde, cheia de doçura.

E quando ele cedia, por fraqueza, em vez de fechar a porta à chave ou de gritar com todas as forças:

«Oui, tu déranges!»

ela deitava em volta um olhar voraz, via tudo no mesmo segundo em que entrava, e já saía de novo porta fora, levando a inspiração que procurava.

Dentro de dias aí estavam as ideias dele, transformadas, ampliadas, metamorfoseadas em ideias dela. Imensamente fortes, evidentes, como se tivessem sido dela desde sempre.

Então ele deitava fora os estudos e os esboços em que timidamente experimentava algo de novo, que ela depois desenvolvia e pelo que recebia créditos e admiração do mundo.

Teolinda Gersão, A cidade de Ulisses (2011: 116-117)

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