30 de maio de 2016

Mario Vargas Llosa, cinco esquinas de crimes, chantagens e escândalos mediáticos

 
«Él había pensado que, después de todo, un periodista puede ser a veces útil. "Y también peligroso", concluyó. Tuvo el presentimiento de que nada bueno saldría de esta visita.»
Mario Vargas Llosa, Cinco esquinas (2016)
O mais recente romance de Mario Vargas Llosa, Cinco esquinas (2016), veio ter comigo sem que eu tivesse tido tempo de o procurar. Inesperadamente caiu-me nas mãos. Assim. Sem mais nem menos. Descobri-o exposto em grande destaque numa estante da Fnac aqui de Faro. Ainda cheirava à tinta com que tinha sido impresso na língua original. Peguei-lhe de imediato, antes que o diabo tecesse das suas e o levasse consigo num piscar de olhos, obrigando-me mais tarde a encomendá-lo ou a procurá-lo do outro lado da fronteira. Aprendi a gostar há longo tempo da escrita do mais popular prémio Nobel da literatura hispânica ainda vivo e cheio de genica para contar histórias a quem estiver disposto, como eu, a ouvi-las. Atentamente e sempre à espera de mais. Já o fiz. Já teci os meus juízos de valor. Já estou à espera dum próximo encontro.

Começa com um sonho erótico e termina com a hipótese dum happy end marcado pelo mesmo registo. Um alfa e ómega encenado muito à maneira do fabulador latino-americano nascido peruano e naturalizado espanhol. O envolvimento concretizado entre duas mulheres casadas e pertencentes à mais alta sociedade limenha acaba por se transformar num clássico ménage à trois consentido com o marido duma delas. As práticas do swing executadas pelos dois casais não chegam a ser concretizadas nas cerca de três centenas de páginas que acabei de visitar, mas nada nos impede de suspeitar que, mais tarde ou mais cedo, não os venha a envolver numa nova encenação ficcionada da vida real, documentada nos universos da escrita em que é exímio. Não seria a primeira vez que o faria, como a revisitação da obra já publicada o pode demonstrar com facilidade.

Pelo meio fica ainda um conjunto de fragmentos dispersos da história recente do seu país natal, centrados, todos eles, nas últimas semanas ou meses da ditadura do presidente Alberto Fugimori e do seu assessor Vladimiro Montesinos, mais conhecidos por el Chino e el Doctor. As fotos secretas duma orgia com prostitutas, ocorrida um par de anos antes em Chosica, cidade vizinha da capital andina, serão aproveitadas para alimentar um malogrado processo de chantagem exercido sobre um dos seus protagonistas mais destacados. A recusa manifestada pelo principal visado de manter o silêncio com o pagamento da quantia que lhe era exigida levou o caso às páginas do Destapes, um semanário de escândalos, inscrito no exercício mediático próprio dos tabloides pintados de amarelo e com circulação assegurada à escala nacional. A indiscrição criminosa do pasquim provocará consequências inesperadas, que a tessitura narrativa saberá explorar à exaustão em todas as suas potenciais capacidades.

As diversas formas de exercer os jogos do poder são convocados nos vinte e dois capítulos que dão corpo à obra. Os políticos, os sociais, os jornalísticos. Alternam entre si a um ritmo alucinante. Cruzam-se e completam-se. As técnicas do folhetim transmitido sequencialmente à distância e os labirintos enigmáticos dum filme policial de série B competem entre si. Um ambiente de thriller concebido para provocar sensações fortes no público a que se destina. O imaginário que vive no interior do livro e o que tem esse mesmo livro à sua inteira disposição. Os bastidores intriguistas do mundo do espetáculo, os meandros corruptos da alta finança, as insídias sinuosas da governação, os esquemas maquiavélicos do periodismo comprometido, a tortura, a corrupção, a máfia, o terror dum regime, assente num autoritarismo musculado e sem escrúpulos de espécie alguma, perpassam a cada momento pelo nosso olhar estupefacto perante o clima de repressão generalizado que nos é dado assistir. O mal-estar é particularmente forte, dado que o clima de repressão sofrido pelas personagens desenhadas no papel transborda para o mundo real em que nos encontramos, inquietando os seres concretos que todos os dias nascem, vivem e morrem nos quatro cantos da terra.

A dupla faceta do jornalismo sensacionalista que entre nós vestimos de cinzento acaba por nos surpreender, também, na ação concertada de exercer a chantagem a montante e de denunciar o chantagista a jusante. Dum só tiro mata dois coelhos. No final da contenta fica sempre a ganhar. Depois, as massas leitoras a que se destina ficam convencidas estarem na presença dum verdadeiro jornalismo de investigação, aquele que exerce o direito à informação isenta e nada mais. As dicas estão lançadas. As conclusões ficam por nossa conta e risco. Os críticos literários mais severos têm vindo a manifestar a sua deceção pelo testemunho prestado pelo fazedor de romances, por só tocar a superfície da questão. Esquecem-se que a ficção não substitui o factual. Alerta. Estejamos nós atentos aos sinais fornecidos e ajamos em conformidade. Saibamos ler nas entrelinhas as lições do texto, com todo aquele saber milenar que a literatura nos ajudou a intuir e tem vindo a oferecer-nos sem pedir nada em troca.

3 comentários:

  1. O universo fantástico, relatado de forma exímia por Mario Vargas Llosa, está aqui bem patente. Mais um livro a visitar, com a certeza de boas horas de leitura.

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  2. Gostei da apresentação. Parece-me um livro interessante, como de resto considero que são todos os que li de Vargas Llosa (e que não são apenas interessantes, são também, e sobretudo, muito bem escritos).

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