10 de junho de 2016

As escritas de Camões...

LUÍS DE CAMÕES

O retrato pintado em Goa, 1581

Numa mão a espada na outra a pena...


Em finais dos anos oitenta, realizei uma edição crítica dum autor português seiscentista. Tive de respeitar as práticas de escrita que nesses tempos se usavam, as mesmas que Camões teria usado. O meu PC não gostou dessa forma tão bizarra de escrever e mandou-me consultar com urgência a norma oficial portuguesa de registo da língua então em vigor. A de 1945 revista em 1973.

Este episódio assalta-me a memória sempre que vem à baila a aplicação do acordo ortográfico de 1990. Dizem que se Camões o pudesse ver fugiria a sete pés e procuraria de novo refúgio no tú-mulo. Vá-se lá saber porquê. E como a ignorância é muito atrevida, aí vão duas oitavas d’Os Lusíadas, registadas tal qual como soía fazer-se em 1572, ano da editio princeps da epopeia.

OITAVAS
Eis aqui quaʃi cume da cabeça,
De Europa toda, o Reino Luʃitano,
Onde a Terra se acaba, & o mar começa,
E onde Febo repouʃa no Occeano:
Eʃte quis o Ceo juʃto que floreça
Nas armas, contra o torpe Mauritano,
Deitando o de ʃi fora, e la na ardente
Affrica estar quieto o nam o conʃente.

Esta he a ditoʃa patria minha amada,
Aa qual ʃe o Ceo me dá, que eu ʃem perigo
Torne, com eʃta empreʃa ja acabada,
Acabeʃe eʃta luz ali comigo.
Eʃta foy Luʃitania, deriuada
De Luʃo ou Lyʃa: que de Bacho antigo
Filhos forão, pareçe, ou companheiros,
e nella antam os Incolas primeiros

Impreʃʃos em Lisboa, com licença da ʃancta Inquisição, & do Ordinario:
em caʃa de Antonio Gõnçaluez Impreʃʃor. 1572
(III, 20-21, fls. 41-41v.; Pdf pp. 91 e 92)

OBS.:
A questão que se me põe neste momento é a de saber se Camões teria a mesma reação relati-vamente a todos os registos que a sua escrita foi sofrendo ao longo dos tempos. Exatamente 444 anos após a publicação da obra máxima da cultura literária portuguesa. Depois, caso os recusasse em bloco, por ferirem os seus hábitos ortográficos, começarmos a restaurar as práticas algo peculiares que teria seguido nos seus dias. Seria, no mínimo, curioso, para não dizer doloroso...

4 comentários:

  1. Que maravilha, um texto bom para ser ler neste dia! Vou até partilhar.

    ResponderEliminar
  2. Prof, sou leiga na matéria mas, para o poeta de versos grandiloquentes que originou outra importância à pátria e à língua portuguesa, conhecedor profundo da história e da língua mátria... Basta as suspesnões, creio eu.

    ResponderEliminar
  3. Também sou da mesma opinião até porque, como escrevia o poeta: «MVdaõſe os tẽpos, mudaõſe as võtades | Mudaſe o ſer, mudaſe a cõfiança | Todo o mũdo he cõpoſto de mudança | Tomando ſẽpre nouas qualidades...»

    ResponderEliminar
  4. Será que Camões ficaria mesmo zangado e fugiria de novo para o túmulo? Não creio porque, ao deparar com tamanhas transformações ocorridas no mundo, gostaria certamente que a língua portuguesa tivesse caminhado a par não ficando parada no tempo. Ao estudarmos a evolução da língua portuguesa percebemos que a língua de hoje não é a de ontem e a de amanhã será com certeza diferente da de hoje, porque é algo de dinâmico, sempre em evolução e transformação.

    ResponderEliminar