18 de junho de 2016

O evangelho de Jesus Cristo segundo José Saramago

«Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde que nasce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali, e ele vai, dizem-lhe que pare e ele para, ordenam-lhe que volte para trás, e ele recua, o homem, tanto na paz como na guerra, falando em termos gerais, é a melhor coisa que podia ter sucedido aos deuses.» 
José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo (1991)
Quando as leituras que fizemos no passado nos exigem releituras no presente, isso significa terem os diálogos travados em tempos idos com o autor permanecido inconclusos e abertos a novas conversas de atualização dos sentidos encobertos das palavras. Ajuste de contas das ideias feitas com as refeitas. As polémicas geradas em torno duma obra perturbam, por vezes, o prazer do texto e das escritas que lhes deram origem. As interpretações extremadas acabam por desviar a atenção do leitor e desvirtuar os significados implícitos/explícitos das mensagens, de trocar as linhas e as entrelinhas, lacunas que só uma revisitação efetuada no momento certo poderá esclarecer ou colmatar.

No caso concreto de José Saramago e d’O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), os fundamentalistas ortodoxos e políticos de pacotilha centraram-se em blasfémias anacrónicas e impiedades bafientas alegadamente lesivas da matriz religiosa do país, os críticos encartados mais exigentes deram-se conjuntamente as mãos e acusaram o escritor de ter sido pouco ousado no ato criativo e de ter trocado o maravilhoso cristão dos evangelhos canónicos pelo maravilhoso herege dos evangelhos apócrifos. Sem entrar em extremismos exegético-literários, fiquei então um pouco dececionado com o romancista, com a forma pouco realista como abordara o tema e deixei ficar o romance a repousar até hoje. Vinte e um anos de intervalo para arrumar as ideias e deixá-las atingir uma maioridade absoluta e desejada.

Queria ver o natural onde havia o sobrenatural. Topar o imanente onde achava o transcendente. Agora, contento-me em testemunhar o realismo mágico onde a alegoria assentou arraiais. A presença do insólito no relato acaba por acentuar ainda mais a profunda humanidade de Jesus. Facto singular que a vontade dos homens, perante a grandeza exemplar da sua conduta na vida, deificou com o decorrer dos séculos, confundindo a natureza mortal do filho de Maria e José com a natureza imortal de Jeová. O retratado, em contrapartida, prescinde da dignidade divina outorgada pelo senhor todo-poderoso criador de todas as coisas e escolhe a paternidade dum simples carpinteiro galileu desconhecido criador de meros objetos de uso quotidiano. O livre arbítrio terreno é chamado à colação e derrota sem ponto de retorno a predestinação celestial.

O evangelho de Jesus Cristo segundo José Saramago equaciona as fontes que o devir histórico nos legou e reescreve, com toda a minúcia permitida pela ficção, a biografia do filho do homem que recusou ser filho de deus. Efetua uma interpretação atenta dos mitos fundadores do monoteísmo cristão que estiveram na origem da moderna civilização ocidental e dá-lhe uma dimensão alternativa. Recupera o nome de Judas duma traição inexistente, dá a possibilidade a Madalena de amar e ser amada, permite a Maria e José a liberdade de constituir uma verdadeira família e devolve ao mentor involuntário duma religião ancorada no sacrifício e martírio do calvário o direito à mortalidade, o tal que os deuses sempre invejaram e os discípulos lhe roubaram para proveito próprio. As coordenadas maniqueístas do bem e do mal são alteradas, apenas para que a infabilidade dos dogmas seja questionada. É que as mãos que compuseram as versões escritas do sagrado são em tudo idênticas àquelas que produziram as profanas.

No ano em que José Saramago completaria o seu nonagésimo aniversário, a sua presença continua mais viva do que nunca entre nós. As incursões que façamos ao universo romanesco por si gizado serão sempre premiadas com novas e renovadas descobertas, com fartas e variadas pistas de leituras, com múltiplas e incontáveis formas de olhar o mundo real e imaginário que nos rodeia e nos define. Apanágio muito raro só alcançado por alguns, como será o caso dos inventores inatos dos heróis da imaginação, com os quais acabam por se confundir e fundir. Aqueles que desde os tempos imemoriais da criação artística vão dando sentido pleno à imortalidade, ao privilégio de viverem em espírito na memória coletiva dos povos.

NOTA
Texto trazido do Pátio de Letras no 6.º aniversário da morte de Saramago, onde o tenho depositado há quase dois pares de anos. Faço-o porque a leitura dos clássicos está constantemente a exigir novas leituras... 

2 comentários:

  1. Uma recensão brilhante, que deu prazer (re)ler, sobre um livro de muito me agradou, por mim uma das obras-primas de Saramago. Uma feliz homenagem ao, até agora, único Prémio Nobel de Literatura português!

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  2. José Manuel Moreira Cláudio21 de junho de 2016 às 16:54

    Muito interessante este seu texto que me vai obrigar, daqui a muito ou a pouco tempo, a reler o original. Na altura achei a temática interessante, e depois a polémica ridícula a que deu lugar, chamou-me mais a atenção que a obra em si...

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