12 de julho de 2016

George Orwell, a quinta dos animais e o triunfo dos porcos

«"My sight is failing," she said finally. "Even when I was young I could not have read what was written there. But it appears to me that that wall looks different. Are the Seven Commandments the same as they used to be, Benjamin?" | For once Benjamin consented to break his rule, and he read out to her what was written on the wall. There was nothing there now except a single Commandment. It ran: ALL ANIMALS ARE EQUAL | BUT SOME ARE MORE EQUAL THAN OTHERS»
George Orwell, Animal farm. A fairy story  (1945)
Há alturas em que os livros que temos entre mãos nos remetem para situações reais vividas fora da ficção, que se assemelham, imitam e rivalizam entre si. A tal sensação do déja vu. Outros momentos há, todavia, em que acontece exatamente o contrário. São os sucessos do mundo exterior às páginas cobertas de palavras impressas com letra de forma que vemos atualizados todos as horas, minutos e segundos do dia pelos mass media da aldeia global descrita por Marchal McLuhan há cerca de meio século na The Gutenberg Galaxy (1962). O passado e o presente misturam-se para nos atormentar o futuro. O apelo de leituras antigas reclamadas pela memória direcionou-me para o já clássico Animal farm. A fary story (1945), que George Orwell compôs em forma de fábula política contemporânea, o tal locus mirabilis simbólico onde os animais voltaram recuperar a capacidade de falar para hipotético deleite e proveito dos leitores. Apresenta-lhes uma utopia exemplar que rapidamente passa do registo de eutopia prometida à categoria de distopia concretizada. A vontade imperiosa de revisitar essa história da carochinha para adultos invadiu-me. Procurei-a incansavelmente nas estantes que tenho repartidas aqui e além, insisti na descoberta do seu paradeiro e encontrei-a no final da refrega. Li-o num ápice. As peripécias da revolta dos bichos travada na Quinta Manor do Sr. Jones voltou a desfilar perante os meus olhos repletos de insólito.

Era uma vez um velho e premiado porco Middle White chamado Major que teve um sonho. Garantia-lhe essa visão onírica que num tempo vindouro todos os animais se uniriam para derrotar o poder absoluto dos homens sobre os restantes seres vivos, as únicas criaturas da natureza que, a seu ver, consumiam sem produzir. Na ânsia de ver concretizado uma sociedade perfeita sem amos nem servos, sem a intervenção despótica dos humanos, transmite esse seus anseios aos camaradas de cativeiro forçado numa assembleia plenária de oprimidos. O projeto é bem aceite pelo coletivo e a revolução efetiva-se com sucesso. As peripécias dessa movimen-tação de massas e da sua evolução ao longo dos anos seguintes é descrita pormenorizadamente em dez capítulos da novela-romance alegórica. Elegem o Animais da Inglaterra como hino, desenham numa bandeira de fundo verde um casco e um chifre, estabelecem o Animalismo como sistema de pensamento, redigem os Sete Man-damentos da nova sociedade ideal e preparam-se para trabalhar todos segundo as suas possibilidades. A quimérica Montanha de Açúcar é substituído pela pragmática República dos Animais. O fluir dos eventos narrados na alotopia metafórica dos nossos dias rapidamente transformam o cenário de paraíso celestial na terra. É que se todos os animais são iguais perante a lei há uns que são mais iguais do que outros. Os que continuaram a andar sobre quatro patas acabaram por ser submetidos por aqueles que entretanto aprenderam a andar sobre dois pés. O fado, a fortuna, a sina, a sorte, a ventura e o porvir dos primeiros passou a estar sobre a alçada do poder autocrático dos segundos. Assiste-se no final do relato ao verdadeiro triunfo dos porcos. Estes reverteram a situação revolucionária a seu favor com a ajuda dos cães de fila que, entretanto, tinham aprendido a caminhar como os homens a quem estrategicamente se haviam aliado.

Lida e relida a sátira impiedosa aos paraísos terráqueos com preten-sões celestiais, apercebemo-nos que o absurdo traçado pelo nove-lista, jornalista e político inglês nascido na Índia Britânica, continua vivo nos dias que correm. Os totalitarismos ativos em meados do sé-culo passado foram substituídos, mutatis mutandis, por outros tota-litarismos identicamente falaciosos nos seus princípios estatutários ancorados no entendimento entre todos os povos do mundo. Os cinco elementos permanentes não eleitos das Nações Unidas (ONU) a zelar com o seu poder de veto pela manutenção da paz e da segurança internacional dos 193 países que representam. Os seis fundadores da Comunidade Económica Europeia (CEE) a sancionar onde começa e termina a tal unidade na diversidade da União Europeia (UE) dos 28 estados-membros que ainda a com-põem. Duas organizações intergovernamentais criadas após a Segunda Guerra Mundial para promover a cooperação internacional baseada na paridade mas em que uns são mais pares do que outros. Com papas e bolos se enganam os tolos. É tudo uma questão de hábito. Albarde-se o burro à vontade do dono. Quem cala consente. Tal como reza a fairy story chamada à colação nas suas últimas linhas, os animais excluídos do núcleo duro deliberativo olhavam várias vezes dos porcos para os homens e dos homens para os porcos, mas já não era possível dizer quem era quem. E era uma vez uma vaquinha chamada Vitória, morreu a vaquinha e acabou-se a história. Que o pano desça sobre a boca de cena…

3 comentários:

  1. Uma poderosa alegoria, esta resenha crítica, que bem salienta a verdade da afirmação "O homem é o lobo do homem", de Plauto na sua obra Asinaria e popularizada por Thomas Hobbes...

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  2. Gostei muito da sua critica a um livro que li há tanto tempo e devia voltar a ler. A respeito do que diz dos contínuos erros em que caímos, das velhas esparrelas que outros mais poderosos continuam a armar por todo o mundo, gostava de citar um filósofo inglês, John Gray, cujas ideias ao nível económico são para mim excessivamente liberais mas que defende uma tese sobre o progresso humano, interessante, considerando-o um mito. Diz ele: «No meu último livro [O silêncio dos animais], defini o progresso como qualquer avanço cumulativo; o que significa que um sucesso obtido num dado momento vai ser o fundamento de um avanço ulterior, que, com o tempo, se tornará cada vez mais irreversível. No que diz respeito à ciência e à tecnologia, o progresso não tem nada de mito. O mito é pensar que a estes progressos científicos e tecnológicos correspondem desenvolvimentos éticos, políticos ou, muito simplesmente, civilizacionais. O mito é crer que os avanços da nossa civilização podem ser objeto de uma melhoria cumulativa e contínua.» O facto de considerar esta ideia interessante não significa que concorde inteiramente com ela, caímos num niilismo.

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  3. Um livro que será sempre actual. Nada muda nos homens quanto à loucura pelo poder.
    Um livro muito didáctico também.
    Foi através de uma cassete VHF com um filme feito da adaptação do livro "O Triunfo dos Porcos", em banda desenhada, falado em inglês mas sem legendas, que os meus filhos, (hoje 41, 38, 37, 35 e 33) ao fim de o verem tanta vez começaram a pôr-me questões sobre a mudança de comportamento dos porcos.
    E conforme iam crescendo eu explicava-lhes de uma determinada maneira , concordante com a idade.
    Chegou um momento em que eles já não me perguntavam nada mas passavam eles a explicar-me o que se passava.
    E finalmente, quando mais velhos, expliquei-lhes qual a mensagem que Orwell quis passar, e entenderam na perfeição.
    Qualquer um deles tem os livros do autor e contam a história aos filhos.

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