6 de outubro de 2016

Carlos Ruiz Zafón, Marina e os mistérios de Barcelona

«A veces dudo de mi memoria y me pregunto si únicamente seré capaz de recordar lo que nunca sucedió.»
Carlos Ruiz Zafón, Marina (1999)
Viciei-me na arte de contar de Carlos Ruiz Zafón com A sombra do vento (2001) e O jogo do anjo (2008). Li-os de seguida como se tratasse de duas partes da mesma obra. Depois, tal como muitos outros leitores da aldeia global, virei-me para os títulos mais antigos. A escolha recaiu em Marina (1999), um texto charneira situado na fronteira entre dois universos de escrita, o luminoso da novela de aventuras para jovens e o sombrio do romance gótico para adultos. Encontrei-o à minha espera numa livraria. Resgatei-o e dei-lhe vida ao ouvir tudo aquilo que tinha para me dizer. Revelou-me muitas coisas surpreendentes. Fico-me pelos meros apontamentos.

A revelação de enigmas guardados num cemitério dos livros esquecidos não voltou a ocorrer. Em contrapartida, o desejo de desvendar os mistérios de Barcelona, a cidade feiticeira, a metrópole modernista, onde as peripécias de contorno folhetinesco se vão sucedendo a um ritmo vertiginoso, ao sabor da imaginação do autor e prazer do leitor, repetiu-se mais uma vez. A fluência do discurso, o ritmo da escrita e a magia das palavras são os culpados. Avassaladores, inebriantes, únicos.

A pedra de toque novelesca é-nos transmitida por uma borboleta negra de asas abertas, gravada nos lugares mais bizarros ou a es-voaçar à volta das personagens mais nebulosas, nos momentos mais insólitos da intriga. Atrás de si paira sempre o fedor dos pân-tanos e dos poços envenenados. Pormenor reiterado à exaustão pela instância narrativa, a fim de balizar a luta sem quartel pela sobrevivência. É que, como é sugerido, a diabólica Teufel, habitante de torres, caves e túneis privados de luz, tem a capacidade de ressuscitar de entre os mortos. Enterra o corpo antes dessa meta-morfose macabra e alimenta-se depois das próprias crias.

Em termos gerais, o romance propõe-nos uma reflexão continuada sobre os mistérios da condição humana, através do relato alternado de três histórias de amor e morte: a nuclear de Óscar Drai e Marina Blau, a celestial de Germán Blau e Kirsten Auermann e a infernal de Mijail Kolvenik e Eva Frinova. Tudo somado, atravessam todo o Séc. XX e têm como pano de fundo privilegiado a malha urbana da cidade condal, convertida na efetiva protagonista das diversas peri-pécias trágicas que nela se vão traçando.

A ação central do livro decorre entre setembro de 1979 e maio de 1980, período simbólico de nove meses, durante o qual dois jovens de 15 anos veem nascer, crescer e fenecer um primeiro amor de adolescência. À distância confortável de quinze anos, o herói sobre-vivente revisita os locais onde os eventos se deram e confia as suas recordações às páginas dum diário pessoal, aquele que che-gou até nós sob a forma de um romance de aprendizagem.

Quando a leitura termina, esquecemo-nos de que todos os contos são mentiras, mas que nem todas as mentiras são contos, e senti-mos uma vontade muito forte de partir à descoberta de Barcelona, a cidade misteriosa, na esperança vã de vislumbrar o Grande Teatro Real, o Palacete de Sarriá ou a Torre do Parque Güell, ao encontro dos palcos em que se representaram as cenas mais marcantes do drama. Sentimos o impulso imperioso de nos sentarmos ao volante de um velho Tucker dos anos cinquenta, à procura da praia secreta virada para o Mediterrâneo, local idílico que os heróis pisaram uma única vez, a meio da sua história de amor, e onde Óscar verá lançar as cinzas de Marina, produto final da sua história de morte.

Carlos Ruiz Zafón confessa no prólogo que acompanha a reedição mais recente de Marina (2008) ser esse um dos seus livros favo-ritos, aquele que permanecia tão presente na sua memória como no dia em que o acabara de escrever (1997), rematando com uma ideia que depois incorporará na ficção, na boca da heroína. Afirmava esta que, por vezes, as coisas mais reais só acontecem na imaginação e que nós nos lembramos do que nunca aconteceu.

NOTA
Cruzei-me há dias com uma saga medieval de Ildefonso Falcones centrada na cidade condal de Barcelona e lembrei-me de imediato do contributo desenvolvido por Carlos Ruiz Zafón no âmbito deste género poético agora associado à variante da novela negra de contornos góticos. Após a primeira leitura desta Marina, compus um pequeno texto para o Pátio de Letras, que passado precisamente sete anos transfiro para este novo espaço da blogosfera, com as atualizações exigidas pelos efeitos do tempo no revestimento gráfico das palavras e como forma de prestar homenagem a um bestseller famoso com muitas histórias ainda para contar ou relembrar.

2 comentários:

  1. É sempre bom ler e reler os teus textos, Prof! Tal e qual como a leitura de um autor que nos fascina, que é o caso de Carlos Ruiz Zafón, as tuas resenhas avivam ou despertam a vontade de retornar à magia das páginas dos romances. A par de Ildefonso Falcones, este é um dos autores de leitura obrigatória, para quem gosta de um belo livro.

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  2. Há verdades descritas como contos, nem todos conseguem entender essa verdade, daí dizerem que os contos são mentiras imaginarias. Fiquei curiosa, vou descobrir o livro.

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