27 de novembro de 2016

Carlos Ruiz Zafón, os jogos do anjo e os enigmas da luz eterna

«Bienvenida al Cementerio de los Libros Olvidados, Isabel [...] Este lugar es un misterio. Un santuario. Cada libro, cada tomo que ves, tiene alma. El alma de quien lo escribió, y el alma de quienes lo leyeron y vivieron y soñaron con él. Cada vez que un libro cambia de manos, cada vez que alguien desliza la mirada por sus páginas, su espíritu crece y se hace fuerte. En este lugar los libros que ya nadie recuerda, los libros que se han perdido en el tiempo, viven para siempre, esperando llegar a las manos de un nuevo lector, un nuevo espíritu.»
Carlos Ruiz Zafón, El juego del Ángel (2008)
Alguém disse e eu registei na memória que escrever um bestseller é tarefa fácil. Pode acontecer a qualquer um num qualquer momento de inspiração criativa. Repetir a proeza outras vezes sem cair nos perigos do déjà vue é que se torna particularmente difícil. Carlos Ruiz Zafón tem conseguido manter-se nas top-listas dos escritores com maior êxito editorial à escala planetária, apesar de andar a replicar um mesmo clichê diegético há mais dum quarto de século. Ensaiou o modelo na Trilogia da neblina (1993-1995), aplicou-o na Marina (1999) e canonizou-o nas quatro peças novelescas inseridas no Cemitério dos livros esquecidos (2001-2016). O segredo tem residido no preenchimento dum esquema narrativo estereotipado como se o tivesse acabado de inventar. A mestria utilizada neste expediente caiu no goto do público, indiferente à vulgaridade dos lugares-comuns em que está ancorado. O prazer estético de rever os heróis de histórias contadas e recontadas à exaustão só terminará quando se chegar a um ponto sem retorno. Aquele em que já não houver mais segredos dignos desse nome para revelar ou dilatar.

A saga dos livreiros sediados na rua Santa Ana da cidade condal chegou ao fim. O lançamento do derradeiro volume da tetralogia mais falada no momento acaba de ocorrer em todo o mundo hispâ-nico. Um dia destes também chegará às mãos de todos nós, vertido para os diversos idiomas da aldeia global. Provavelmente ainda antes do Natal. Entretanto, fico-me com as impressões que os títulos já publicados me proporcionaram. Depois de ter decifrado os mistérios contidos nas páginas d’A sombra do vento (2001), voltei-me para as aventuras de intriga, romance e tragédia anunciadas na contracapa d’O jogo do Anjo (2008). O fascínio e o espanto foram uma constante da visita. Demorada. Li o texto muito lentamente. Degustei-o com toda a calma, como se dispusesse de todo o tempo do mundo e ninguém me pressionasse. Queria retardar a chegada do fim. Tratava-se também duma história de livros malditos e do homem que os redigira, duma história de amor e ódio, de sonhos e pesadelos. De como idealizar uma obra de sucesso sem qualidade para ser exposto nas vitrinas das livrarias ou uma obra-prima sem leitores para ser condenada ao esquecimento. Eis o dilema a que o protagonista da fábula e fabricante de contos é obrigado a enfrentar. Atuar na dependência/independência das imagens refletidas na infinita galeria de espelhos que dão corpo e sentido aos enigmas da Lux Æterna. Um labirinto a que só alguns têm acesso. E mais não digo, que as palavras registadas nos livros do livro serão sempre melhores do que as minhas.

No processo de descoberta dos fios condutores do relato de relatos, repartidos por três atos e um epílogo, em vão procurei o rasto de Julián Carax ou logrei seguir as pisadas de Daniel Sempere. A linha cronológica urdida na trama tinha recuado uma geração inteira de vidas ficcionadas e só me dei verdadeiramente conta do facto já bem entrado na intriga das intrigas. A tapeçaria resultante deste entrelaçar constante de fadários autónomos, separados/ligados estruturalmente entre si pela alternância incansável de espaços-tempos, apresenta-nos um aspeto de inacabada execução, que só os episódios vindouros ainda por compor poderão resolver. O destino de David Martín, o autor-fantasma da novela de don Pedro Vidal e do panfleto religioso de Andreas Corelli, o autor consagrado de duas séries folhetinescas góticas compiladas n’Os mistérios de Barcelona e n’A cidade dos malditos, fica suspenso até melhor oportunidade. Talvez então tenhamos acesso ao mais profundo âmago da sua existência, Aos abismos insondáveis próprios dum ser habituado a lidar com o transcendente e com os segredos da imortalidade, dum ser semelhante ao Dorian Gray retratado por Oscar Wilde, impedido de envelhecer um só dia da sua vida. A hesitação fantástica situada entre as dimensões naturais do estranho e as sobrenaturais do maravilhoso ficam no ar. A curiosidade de clarificar a dúvida é adiada até uma nova etapa da sequela. Assim se faz render a fruta nesta arte de preparar os triunfos literários à distância dos anos. E parece que está tudo dito.

23 de novembro de 2016

As titânides e os exercícios do poder

J. Howard Miller, We can do it! (1943)
[Westinghouse Electric Corporation]

A fortuna de querer pouco e poder muito...

Dilma Rousseff queria ser a Angela Merkel da América. Os planos saíram-lhe furados. A presidente brasileira que também queria ser conhecida por presidenta já não é nem uma coisa nem outra. O impeachment vitorioso afastou-a das ribaltas do poder nos tempos mais próximos enquanto a chanceler alemã lá continua de pedra e cal a ditar ordens a uma Europa submissa. Diz-se por aí que foi um golpe orquestrado por Michel Temer que agora lhe sucedeu no palácio do Planalto. Calúnia/verdade, vá-se lá saber...

Hillary Clinton queria ser a primeira mulher-presidente dos EUA. Os projetos foram-se por água abaixo. A ex First Lady que também queria converter o marido no primeiro First Gentleman do país falhou nas duas direções. O déjà vu democrata da candidata saiu derrotado no confronto com o jamais vu republicano do opositor. Dizem algumas línguas viperinas que os eleitores preferiram a demagogia dos novos senhores da Casa Branca à arrogância dos seus antigos inquilinos. Visto deste prisma, se calhar até têm razão...

Theresa May queria manter os domínios do RU na UE. O resultado do Brexit trocou-lhe as voltas. A militante da oposição deu o dito por não dito quando assumiu a chefia do governo. Terá de medir o seu talento retórico de primeira-ministra inglesa com o da sua homóloga escocesa. É que nesta guerra de titânides, Nicola Sturgeon até pode alcançar uma dupla façanha, manter-se unida a Bruxelas e separada da tutela da Londres. Isabel II que se cuide. Um dia destes ainda acorda rainha da Mini-Bretanha. Quem viver verá...

20 de novembro de 2016

As memórias do convento

COMEMORAÇÕES DO TERCEIRO CENTENÁRIO DO LANÇAMENTO DA 1ª PEDRA DA BASÍLICA DO PALÁCIO NACIONAL DE MAFRA

JOSÉ SARAMAGO
Memorial do Convento
(1982)
«Era uma vez um rei que fez promessa de levantar um convento em Mafra. Era uma vez a gente que construiu esse convento. Era uma vez um soldado maneta e uma mulher que tinha poderes. Era uma vez um padre que queria voar e morreu doido. Era uma vez...»
(Contracapa da Editorial Caminho)

  1. «El-rei foi a Mafra escolher o sítio onde há de ser levantado o convento. Ficará neste alto a que chamam da Vela, daqui se vê o mar, correm águas abundantes e dulcíssimas para o futuro pomar e horta, que não hão de os franciscanos de cá ser menos que os cistercienses de Alcobaça em primores de cultivo, a S. Francisco de Assis lhe bastaria um ermo, mas esse era santo e está morto. Oremos.» (J.S, MdC. 1982: 86 )
  2. «...começou a constar em Mafra, e foi confirmado pelo vigário no sermão, que vinha el-rei a inaugurar a obra de raiz dos caboucos para cima, colocando com as suas reais mãos a primeira pedra. Primeiro se anunciou que seria aos tantos de outubro, mas não houve tempo para cavar os alicerces até à sua conveniência fundura, apesar de serem seiscentos os homens, apesar dos muitos tiros de pólvora que a todas as horas do dia vão atroando os ares, será então em novembro, meados dele, depois não pode ser, que já seria como de inverno, andar aí el-rei enterrado na lama até às ligas das pernas.» (J.S, MdC1982: 130 )
  3. «Ai o dia seguinte, passado que foi aquele novo susto de repetir-se a rajada do vento do mar, que sacudiu toda a geringonça, mas enfim, soprou e passou, ai o dia seguinte, retome-se a exclamação, dezassete de novembro deste ano da graça de mil setecentos e dezassete, aí se multiplicaram as pompas e as cerimónias no terreiro, logo às sete da manhã, frio de rachar, se achavam reunidos os párocos de todas as freguesias em redor, com os seus clérigos e muito povo, é forte presunção que tenha vindo desta ocasião o dizer, para uso dos séculos e das gazetas.»  (J.S, MdC1982: 134 )
  4. «Foi a pedra principal benzida, a seguir a pedra segunda e a urna de jaspe, que todas três iriam ser enterradas nos alicerces, e depois foi tudo levado em procissão, de andor, dentro da urna os dinheiros do tempo, ouro, prata e cobre, umas medalhas, ouro, prata e cobre, e o pergaminho onde se lavrara o voto, deu a procissão uma volta inteira para mostrar-se ao povo que ajoelhava à passagem, e, tendo constantemente motivos para ajoelhar-se, ora a cruz, ora o patriarca, ora el-rei, ora os frades, ora os cónegos, já nem se levantava, bem poderemos escrever que estava muito povo de joelhos...»  (J.S, MdC1982: 135 ) 

17 de novembro de 2016

O camaroeiro da Princesa Perfeitíssima

CAMAROEIRO REAL

Dalmática oferecida por D. Leonor à igreja do Pópulo
[Museu e Arquivo Histórico do Hospital Termal de Caldas da Rainha] 
Depois de el-rei D. João falecer, fazendo uma dama, que fora sua, queixume à rainha que um fidalgo, com quem a casara, era mau caseiro por ser sobejamente inclinado à caça, disse-lhe a rainha: 
―  Calai-vos, Fuão, que se não pode levar a carga do matrimónio sem alguma recreação. O que as outras mulheres sentem eu o não sei; mas de mim vos afirmo que todas as vezes que el-rei meu senhor, que está em glória, vinha de fora, me parecia que tornava a casar de novo.
ANÓNIMO, Ditos portugueses dignos de memória  (séc. xvi)
Desconhece-se se de facto D. Leonor de Lencastre (1458-1525), viúva de D. João II (1455-1495) e irmã de D. Manuel I (1469-1421), terá dito o que o compilador anónimo disse que disse no Ditos acima transcrito em jeito de epígrafe. A ser verdade, deve situar-se entre 1470 e 1481, período de tempo em que usufruiu do título de Princesa de Portugal, por estar casada com o herdeiro do trono. O estado de graça conjugal terá começado a vacilar nesse preciso momento, dando início ao processo de rotura que culminará com o desaparecimento trágico do filho em 1491.

Presumo que a Princesa Perfeitíssima terá começado a usar o camaroeiro real como corpo da sua divisa na mesma altura em que o Príncipe Perfeito terá adotado pelo pelicano eucarístico. O sangue mandado derramar pelo herdeiro de D. Afonso V ao assumir as rédeas do poder terá pesado na dupla escolha. O novo soberano, para simbolizar a consolidação do poder absoluto que passou a exercer em todos os reinos e senhorios de aquém e além-mar em África; a real consorte, para simbolizar o luto pela morte matada do irmão e do cunhado por motivos políticos.

A rede simboliza, assim, o reino dos céus, por se assemelhar à ma-lha lançada às águas para pescar todo o tipo de peixes. A salvação da alma seria, a seu ver, a mais preciosa das riquezas alcançada em vida: Preciosior est cumctis opibus. Citação bíblica (Provérbios: 3, 15) incluída no emblema régio da fundadora das misericórdias e do hospital termal das caldas que levam o seu nome. Com estas pala-vras, quereria a rainha dizer que o poder temporal alcançado nos reinos da terra de pouco ou nada valeriam depois de transpostas as fronteiras inexoráveis da existência humana.

NOTA:
Apeteceu-me contar esta história no dia em que a Princesa Perfeitíssima foi ao encontro do Príncipe Perfeito e estarão os dois em grande glória a celebrarem eternamente as folias matrimoniais dos reencontros... 

14 de novembro de 2016

Lídia Jorge: a noite das mulheres cantoras ou o reino do império minuto

«Mas nós rodopiávamos indiferentes aos brilhos projetados sobre as nossas roupas, porque sabíamos que estávamos a celebrar um encontro no interior do império minuto, e havia vinte e um anos que na realidade não nos encontrávamos.»
Lídia Jorge, A noite das mulheres cantoras (2011)
A sede desmedida de sucesso instantâneo é uma realidade incontornável nos nossos dias, fantasiada por uma multidão sempre crescente de potenciais candidatos aos cumes olímpicos da fama e campos elísios da imortalidade. Deitarem-se obscuros e levantarem-se famosos nos quatro cantos da terra. Eis a grande sonho acalentado por todos. Custe o que custar e doa a quem doer. Entre um momento e o outro, bastaria uma simples aparição fulgurante num qualquer concurso mediático, norma geral patrocinado pela variante televisiva, para atingir o resultado merecido, o triunfo repentino e irrefutável. Nestes desígnios de idolatria galopante, o sonho nunca prevê o pesadelo. A glória da vitória nunca admite a vanglória da derrota. Cada pretendente crê poder alcançar por mérito próprio o rótulo de Top Model dos trapos, Master Chef dos tachos ou Super Idol dos palcos. Tudo em inglês, para que a ilusão do troféu conquistado adquira um relevo de magnitude planetária e deixe todos de boca aberta e a salivar de inveja.

Lídia Jorge centra-se nesse fenómeno mediático atual do reino do império minuto n'A noite das mulheres cantoras (2011), onde nos relata a saga de cinco candidatas a estrelas cintilantes das canções pop-swing erigidas em português e com passaporte garantido para o mundo. Fá-lo através de duas versões de dimensão diferente, a oficial e a real, separadas por um intervalo de vinte e um anos de lembranças adormecidas e de esquecimentos avivados. À mais recente e breve, dá o nome de «O Conto de Solange» e situa-a numa noite perfeita do verão de 2009. À mais antiga e longa, dá um ar de exame de consciência dos acontecimentos vividos em 87-88 e reparte-a por vinte capítulos numerados e um epílogo sintetizador de todos os fragmentos convocados pela intriga. Amor e ódio, riso e choro, vida e morte, são ingredientes omnipresentes na ação que dá corpo à fábula e alma ao texto.

Lisboa é o palco central do drama e África o lateral das tragédias. Os ecos de histórias antigas são frequentes. Prodígios duma escrita sem limites a que a autora há muito nos habituou. As costas índicas dos murmúrios e atlânticas das saudades, as cidades silvestres das amizades forjadas e das inimizades forçadas, as notícias de ventos assobiando nas gruas do devir coletivo dum povo, são atualizados pela memória da voz feminina que conta e reconta a história dum bando de cinco mulheres cantoras, descendentes dum velho império perdido à procura de novos horizontes globais a subjugar que possam combater sem tréguas as sombras multisseculares dos fantasmas de antanho. Os aromas do chá moçambicano do Monte Namúli no Gurué e do café angolano do Paralelo Dez no Cuanza-Sul chegam-nos através das rotas de Joanesburgo e do Lobito com umas pitadas das rotas americanas alternativas dos EUA e Canadá. Há ainda um pão com diamantes expressamente preparado para as merendas futuras num cais de muitas chegadas e partidas, de muitas debandadas e retornos, de escassas permanências e demasiadas ausências. A janela da imaginação abre-se de par em par em cada página dum romance composto com palavras musicais a soar a jazz com cadência perfumada de blues, requebros dissonantes de ópera italiana rejeitada e um tudo ou nada de fado lusitano mal digerido a deixar um travo amargo na língua.

O protagonismo imediato recai nas cinco jovens que dão título à obra e mediato na corte de fabricantes de êxito certo e seguro, gravado em vinil e consagrado em cena. A fazer-lhes companhia silenciosa, encontramo-nos nós, leitores-espetadores privilegiados dum reality show especial, urdido com utopias quotidianas tecidas para deleite e proveito de todos aqueles que queiram assistir à representação sempre renovada da comédia humana. O teatro da vida é oferecido a quem o quiser observar no interior dum livro tradicional feito de papel e letras a cheirar a tinta e pautas musicais invisíveis à espera duma partitura inspirada. Então, poderemos idear a melodia mais ajustada para trautear com as mulheres cantoras as lyrics avisadas da «Canção Afortunada», aquela que nos fala de alguém que tem tudo e não quer nada, ironia trágica quando aplicada a um grupo que nada tem e tudo quer. Amor, morada, valor, fama e tudo o mais que vier.

NOTA
Os reinos do império minuto continuam tão vivos hoje como à data da publicação dum dos mais marcantes romances de Lídia Jorge. Os reality show serão outros, mas o espírito é o mesmo. As mulheres cantoras até podem ser homens cantores, mas as cantorias pouco terão variado. Recupero para este espaço um texto que então tornei público no Pátio de Letras, possibilidade de visitar um livro que na altura gostei de percorrer, palavra a palavra, frase a frase, página a página.

9 de novembro de 2016

Fábulas doutros tempos

REPUBLICANS VS DEMOCRATS 

O elefante e o burro


No tempo, em que inda fallavão
Os animaes como a gente,
He tradição que tiverão
Conferencia em caso urgente

O burro, que, não sei como,
Se introduzio no conselho,
Quiz, fingindo-se estadista,
Também meter seu bedelho.

Eu n’um tom, que differia
Bem pouco do que hoje he zurro,
Foi revolvendo a questão,
Discretou como hum burro.

Depois de lhe ter ouvido
Alguns conceitos de arromba,
O carrancudo elefante
Lhe disse, torcendo a tromba:

“Esse tempo, que tens gasto
“Inutilmente em clamar,
“Insensato, não podias
“Aproveitallo em pastar?

“Vens affectar eloquencia,
“Animal servil, e adjecto!
“Hum tolo nunca he mais tolo,
“Que quando quer ser discreto.

Bocage, Rimas (1799) 

Obs.: 
Como diz a sabedoria popular, vozes de burro nem sempre chegam ao Olimpo...

7 de novembro de 2016

Carlos Ruiz Zafón, a sombra do vento e o cemitério dos livros esquecidos

«Pues bien, ésta es una historia de libros […] de libros malditos, del hombre que los escribió, de un personaje que se escapó de las páginas de una novela para quemarla, de una traición y de una amistad perdida. Es una historia de amor, de odio y de los sueños que viven en la sombra del viento.»
Carlos Ruiz Zafón, La sombra del viento (2001)
Quando me foi recomendada A sombra do vento (2001) de Carlos Ruiz Zafón, fiquei com vontade de a visitar de imediato. A sugestão partira duma amiga de longa data que tem uma relação de grande cumplicidade com a cultura e teima em manter acesa uma paixão incondicional pelos livros e pelas leituras. Manias. Soube depois que já estava traduzido numa trintena de idiomas e publicado numa quarentena de países. Obtivera inúmeros prémios internacionais e as mais espantosas críticas da imprensa planetária. O romance transformara-se num grande êxito de vendas à escala global e o autor numa celebridade no universo das letras hispânicas atuais na viragem de século e de milénio. Subconscientemente, pousei o volume que tinha entre mãos no expositor da livraria e parti à procura de títulos mais discretos. Pretexto esfarrapado para afastar os fantasmas dos preconceitos que os fenómenos editoriais de sucesso massivo sempre me provocaram. Não consegui resistir a uma segunda investida e trouxe-o para casa sete anos volvidos. Resolvi testar a poeticidade da obra-prima que fazia correr tanta tinta em toda a parte e lancei-me à tarefa de desvendar os seus mistérios há tanto tempo escondidos. Fi-lo no idioma em que fora concebido para que o efeito saísse reforçado. Rendi-me ao poder inebriante das palavras que me fizeram companhia enquanto durou a visita. Incondicionalmente.

Voltei ao seu convívio noutras ocasiões. Sempre que um novo pilar se vai acrescentando ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Um par de vezes. A sensação de maravilhamento é invariável. A viagem pelo seu interior flui como água cristalina que vai da nascente à foz sem escolhos indesejados a espreitar em cada reentrância de trajeto. Retomei-o agora que o quarto e derradeiro acaba de ser anunciado. Ao que as entidades promotoras da edição lá vão avançando, virá carregado de surpresas que esclarecerão todos os segredos acumulados ao longo das múltiplas histórias que dão corpo à saga. Publicidades à parte, cá fico a aguardar que a Livraria Semper prossiga de portas abertas no coração da cidade condal de Barcelona, para que os livros nela postos à disposição dos clientes nos continuem a contar os destinos guardados no seu interior e lhes voltem a dar a visibilidade que merecem. Que nos revelem outros autores malditos ou amaldiçoados pelas vicissitudes dos destinos malfazejos com que se foram cruzando. Que nos permitam seguir os itinerários dos seus heróis, anti-heróis ou uns e outros em simultâneo e sem preconceitos de espécie alguma. Que nos confiem as suas fortunas e adversidades arremedadas como se de facto tivessem acontecido. Plausíveis ou pouco prováveis. Verosímeis ou pouco fiáveis. Para o caso tanto dá. Que nesta esfera do faz-de-conta a imaginação é que conta.

História dum enigma contido no próprio título do relato. Uma ficção dentro duma ficção. Um livro dentro dum livro. O composto por Julián Carax e o aproveitado por Carlos Ruiz Zafón. O autor imaginado de antibestsellers condenados ao fracasso e autor real de bestsellers destinados ao sucesso. O primeiro preocupado em apagar do mundo a memória da sua existência o segundo empenhado em espalhar aos quatro ventos a força da sua presença. Um a destruir os exemplares restantes dos poucos que conseguira vender. O outro a espalhar aos sete ventos os assombros da sua escrita publicado os quatro cantos da terra aos milhares de milhares ou milhões. Curiosos espelhismos estes ou simetrias criadoras com que a literatura se vai fazendo-desfazendo-refazendo sem fim à vista. Réplicas de réplicas a mediar as paixões confrontadas. É também uma história paralela de amor e morte entre os dois coprotagonistas dum duplo relato com título comum, o autor do romance maldito encontrado num refúgio de livros e trevas situado nas entranhas mais profundas das Ramblas da capital catalã e o do seu guardião oficial nas páginas do livro que temos entre mãos. Daniel Sempere recupera-o do esquecimento a que estava votado e com ele traça uma via pessoal de aprendizagem moldada pelos percursos de vida que já haviam sido trilhados pelo seu mentor, à distância de duas guerras mundiais e duma outra civil de permeio. Possibilita ao indivíduo sem rosto renascer de entre os finados com uma nova identidade. Resgata-lhe a memória das cinzas a que as chamas purificadoras o haviam votado. Dá-lhe ânimo para recomeçar a desenhar histórias de vida contadas com a magia das palavras perseguidas/encontradas-semeadas na sombra do vento.

4 de novembro de 2016

Estante de livros

A saga efémera das top listas 


A Fnac convidou um júri de 5 fazedores mediáticos de opinião para eleger os 12 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos.

O resultado do conclave literário foi publicado na Estante tendo sido alvo generalizado das mais diversificadas críticas nas redes sociais.

Não resisti ao impulso de marcar a minha posição e afirmei ter lido 10 dos 12 arrolados sem dizer se seriam ou não os meus favoritos.

Avanço agora que só teria pensado num deles caso me resolvesse a preencher um top dúzia em-linha das minhas leituras preferidas.

Seria uma tarefa por demais escusada e que em nada divergiria das N-listas alternativas que entretanto se foram perfilando no horizonte.

O melhor talvez seja deixar essas tais listas de autores/obras em branco para que todas elas acedam a uma celebridade merecida.

1 de novembro de 2016

Para grandes males grandes remédios

CANDIDE OU L'OPTIMISTE - VOLTAIRE

[Expositions virtuelles de la BnF - Galerie des écrivains et conteurs]


Le tremblement de terre...

À peine ont-ils mis le pied dans la ville [de Lisbonne] en pleurant la mort de leur bienfaiteur, qu’ils sentent la terre trembler sous leurs pas; la mer s’élève en bouillonnant dans le port, et brise les vais-seaux qui sont à l’ancre. Des tourbillons de flamme et de cendres couvrent les rues et les places publiques ; les maisons s’écroulent, les toits sont renversés sur les fondements, et les fondements se dispersent ; trente mille habitants de tout âge et de tout sexe sont écrasés sous les ruines...

Un bel autodafé...

Après le tremblement de terre qui avait détruit les trois quarts de Lisbonne, les sages du pays n’avaient pas trouvé un moyen plus efficace pour prévenir une ruine totale, que de donner au peuple un bel autodafé ; il était décidé par l’université de Coïmbre que le spectacle de quelques personnes brûlées à petit feu en grande cérémonie, est un secret infaillible pour empêcher la terre de trembler.