30 de janeiro de 2017

Italo Calvino: os diálogos de Marco Polo e Kublai Kan sobre as cidades invisíveis

«Non è detto che Kublai Kan creda a tutto quel che dice Marco Polo quando gli descrive le città visitate nelle sue ambascerie, ma certo l’imperatore dei tartari continua ad ascoltare il giovane veneziano con piú curiosità e attenzione che ogni altro suo messo o esploratore.» 
Italo Calvino, Le città invisibili (1972)
As suspeitas de que Marco Polo nunca terá estado na China vêm de longe. Datam das primitivas versões do Il Milione, relato de viagens que o mercador veneziano ditou a Rustichello da Pisa, entre 1296 e 1298, quando partilhavam o mesmo cárcere de Génova. O manuscrito do escritor italiano de língua francesa foi dado a conhecer ao mundo com o título de Le livre de Marco Polo, também designado por Devisement du monde ou Livre des merveilles. Baseiam-se essas dúvidas no facto da descrição dos países submetidos ao poder mongol, palmilhado pelo aventureiro medieval europeu ao longo de 24 anos, ter omitido a referência ao hábito de tomar chá ou de dobrar os pés das mulheres para torná-los mais pequenos, à caligrafia, à imprensa e aos livros, para além de ignorar Grande Muralha, começada a construir por Qin Shi Huang Di em 221 AEC e finalizada no século XV pela dinastia Ming. Lapsos inexplicáveis que os especialistas têm vindo a apontar ao longo dos tempos. Distraídas deveriam andar as Publicações Europa-América, quando reproduziram uma foto do mais conhecido monumento do chamado Império do Meio na capa da edição de bolso da tradução portuguesa. Atrevo-me a avançar que essas lacunas estariam salvaguardadas na declaração registada no corpo do texto: Há outras coisas que não vos conto*. E mais não digo para não correr o risco mais que certo de errar, que a minha ciência sobre o assunto é declaradamente escassa.

Entrei em contacto com o testemunho do viajante ocidental nas paragens orientais através duma das obras de divulgação cultural preparada para um público juvenil por Adolfo Simões Müller, que dava pelo nome apelativo de O mercador da aventura: a vida de Marco Polo e o seu livro (1966). Fi-lo através dum exemplar pertencente ou à biblioteca de turma do secundário ou à itinerante da Gulbenkian. A leitura do texto original ocorreu muito depois, numa altura em que trabalhos académicos então em curso sobre as dimensões do maravilhoso e das suas fronteiras escorregadias com o estranho me mandavam pesquisar as alusões ali documentadas sobre o papel-moeda e a porcelana, as histórias dos três Magos, do Velho da Montanha e do Prestes João das Índias, as palhinhas de ouro do rio Azul e, sobretudo, as pedras que ardem (carvão) e à água que se queima (petróleo), então desconhecidas no mundo cristão. Uma descoberta fascinante que me convidou a confrontar outras relações de viagens tidas como fraudulentas pelos seus contemporâneos, com um destaque especial às alegadas mentiras registadas por Fernão Mendes Pinto – o Fernão, mentes? Minto! das anedotas da época – na Peregrinação, publicado em 1614, três décadas após a morte do autor.

Chegou-me agora às mãos um romance já clássico de Italo Calvino, As cidades invísiveis (1972), onde o grande mestre das letras italianas lança para trás das costas as celeumas seculares contidas no roteiro de viagem ducentista e lhes dá uma dimensão simbólica mais compaginável com as visões vigentes nos nossos dias, exercício literário feito de reflexões, experiencias e conjeturas só exequível através da criatividade prodigiosa dum grande inventor de fábulas. Retoma o livro das maravilhas e idealiza uma série de relatos de viagem que Marco Polo apresenta de viva voz a Kublai Khan, com quem dialoga e troca impressões sobre as caraterísticas de cada uma das cinquenta e cinco cidades visitadas e descritas minuciosamente. Agrupa-as em cinco categorias, distribuídas por nove capítulos ou etapas de percurso. Dá-lhes o nome de mulheres. Associa-as à memória, ao desejo, aos sinais, às trocas, aos olhos, ao nome, aos mortos e ao céu. Considera-as subtis, contínuas e ocultas. Todas elas invisíveis a olho nu porque só podem ser vistas com os olhos da imaginação. A verdade que podia ser mentira transforma-se em mentira que poderá ser verdade. Nada impede que a estrutura utópica, edílica, onírica, insólita, impossível de que são feitas se transforme numa realidade vindoura possível.

A era do imperador mongol desloca-se livremente no fluxo cronotópico e estabelece a ligação entre as urbes exóticas do antes e as do porvir, com a modernidade da escrita de permeio. Muito se poderia dizer sobre a filosofia esplanada nos fragmentos dialógicos que alternam com os expositivos. Referir a solidão, angústias e inquietações do Grande Khan, a certeza que tinha da fragilidade do seu poder efémero sobre os seus inúmeros súbditos espalhados por todos os vastos domínios espalhados por grande parte do continente eurasiático, constituindo a maior extensão em território contíguo da História. O melhor será mesmo mergulhar nas palavras compostas em primeiríssima mão pelo seu criador para depois as colocar na boca dos interlocutores que lhe dão vida. É o mínimo que se pode fazer depois de lidos os livros aqui evocados ao correr da pena, imagem poética para referir o matraquear ruidoso do processador de texto.

NOTA
(*). As viagens de Marco Polo (Lisboa: Europa-América, s/d, xv: 25)

 

2 comentários:

  1. Li há muitos anos As viagens de Marco Polo, guardo na memória o encantamento que senti, mas, não recordo que edição foi. De Calvino ainda não li nada, mas gostava.

    ResponderEliminar
  2. Belíssimo texto, Prof., que me traz uma visão mágica da história proporcionada por Ítalo Calvino e que muito me agrada. Fez-me relembrar a releitura que fiz há pouco tempo da Peregrinação, em versão juvenil publicada pelo Círculo de Leitores, que me concedeu umas horas interessantes de aventura em tempos recuados...

    ResponderEliminar