6 de março de 2017

Frédéric Richaud e as guerras longas e silenciosas do jardineiro do rei


«Jean-Baptiste de La Quintinie restait assez peu préoccupé de ces sourdes agitations. Il écoutait distraitement les récits sanguinaires qu'on venait lui conter, observait de loin l'inquiétude grandissante de la cour, les va-et-vient continus des messagers. Non qu'il ne s'intéressât pas aux campagnes et au devenir de leurs héros – il connais-sait bien Condé et éprouvait un réel plaisir à entendre les épisodes qui vantaient sa gloire nouvelle –, mais parce qu'il avait, de son côté, sa propre guerre à mener, une guerre longue e silencieuse, une guerre dont personne ne parlait.»
Frédéric Richaud, Monsieur le jardinier (1999)
Caso as leis da vida e da morte fossem compagináveis com as li-berdades que as palavras por vezes têm, Luís XIV poder-se-ia gabar de deter o mais longo reinado da história francesa e um dos mais extensos da europeia. Durante esses setenta e dois anos, repartidos por dois séculos (1643-1715), teve oportunidade de se tornar num dos soberanos mais marcantes do seu tempo e de ter convertido a Coroa Franco-Navarra dos Bourbon numa potência à escala global. Entre as peripécias sangrentas maiores das guerras dos Países Baixos, dos Nove Anos e da Sucessão Espanhola, e dos conflitos menores das guerras da Devolução e das Reuniões, ainda teve tempo de erigir o palácio de Versalhes, um dos maiores do mundo e símbolo indiscutível do absolutismo régio de origem divina que se arrogava ter. O Grande, lhe chamaram os súbditos, e Rei Sol, se passou a designar a si mesmo. Megalomanias do Ancien Régime a que a Révolution Française poria cobro no reinado de Luís XVI, o tetraneto que perdeu a cabeça na guilhotina por essas manias de poder ditadas pelos ditames do despotismo aristocrático ilimitado.

Se as paredes tivessem também a capacidade de falar, muito teriam a dizer sobre as incontáveis intrigas de corte, experienciadas no interior da residência oficial de Suas Majestades Cristianíssimas, erguida a uma distância confortável de Paris, capital do reino, a que as gerações seguintes batizariam de Cidade Luz. Frédéric Richaud estreou-se na literatura com um romance centrado em Jean-Baptiste de La Quintinie (1626-1688), intitulado Monsieur le jardinier (1999), nome pelo qual o botânico do rei passou a ser conhecido, à falta doutras dignidades nobiliárias que não possuía nem pretenderia possuir. Pelo menos é o que nos dá a entender o relato biográfico do obreiro do Jardin Potager du Roi à Versailles, i.e., a horta que passou a alimentar todos os inquilinos que se sentavam quotidianamente à mesa do monarca. História banal se não fosse protagonizada por uma das figuras mais notáveis da época, tanto a nível nacional como internacional. Senhor duma personalidade misteriosa, com um caráter reservado, modesto no trajo e cordato no trato. Enxada numa mão, a pá na outra, um enxerto em vista, em luta constante contra os insetos e as borrascas. Fascinante em qualquer circunstância.

Entre as muitas conquistas alcançadas pelas modernas tecnologias postas à nossa disposição, a possibilidade de viajar no tempo e de registar ao vivo o que de facto ocorreu no mundo concreto constitui ainda uma lacuna insuperável. Ficarão indefinidamente por determinar quais as palavras exatas proferidas ou pensadas por cada um de nós num qualquer instante da nossa vida já vivida. Sem tirar nem pôr nada de espúrio nesse filme fac-similado da nossa existência individual e coletiva. A verificar-se tal avanço, num futuro mais ou menos afastado, os atuais relatos históricos estariam condenados ao desaparecimento do universo dos géneros poéticos viáveis, por terem perdido o privilégio de imaginar o real. Sendo assim, só nos resta abstrair-nos do caráter aproximado dos diálogos-monólogos conjeturados com a verosimilhança exigida nestas circunstâncias pelos intervenientes da ficção, para proveito e deleite dos leitores. Aceitar, por exemplo, que o protagonista poderia ser um celibatário inveterado, como dá a entender o texto, quando os registos da época nos afirmam ter contraído casamento com Demoiselle Margueritte Joubert em 1670 e gerado três filhos, que lhe perpetuaram o nome.

O relato fragmentário das guerras longas e silenciosas do jardineiro do rei decorre entre 1674 e 1688, período de tempo que corresponde, grosso modo, ao seu envolvimento no projeto régio de criar um espaço rural destinado a suprir as necessidades diárias da cozinha do complexo palaciano. A monarquia foi-se, os impérios e repúblicas sucederam-se ininterruptamente ao longo dos tempos, os regimes políticos combateram-se incessantemente uns aos outros, mas o legado do grande visionário seiscentista mantém-se atuante nos nossos dias, muito embora os produtos hortícolas ali produzidos tenham deixado de ser consumidos apenas por alguns privilegiados de sangue azul aristocrático e se destinem atualmente a todos os interessados de sangue vermelho plebeu. Lidos os apontamentos biográficos que constituem o testemunho romanesco, fica-se com uma visão mais clara dum dos recantos menos conhecidos de Versalhes, aquele que os cortesãos de então se escusavam de pisar e os turistas apressados de agora se esquecem de visitar. Lacuna imperdoável que urge colmatar com celeridade. O espírito do seu criador continua bem vivo em todo esse vergel mágico, a promover ininterruptamente o diálogo do homem com a natureza, uma das formas mais elevadas da cultura.

3 comentários:

  1. Gosto de romances históricos que se organizam em redor de personagens secundárias que acabam por se tornar fundamentais para a compreensão da época em que a trama se desenvolve de tão complexas que se revelam.

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  2. Jean-Baptiste de La Quintinie quis ser uma personagem secundária na corte do Rei Sol e quase o conseguiu na época em que viveu. Atualmente o seu mérito é reconhecido por todos que acabam por descobrir a obra que deixou em Versalhes. Frédéric Richaud ajuda-nos a descobrir esses feitos memoráveis do Jardineiro hortelão de Luís XIV.

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  3. Obrigada pela sugestão deste livro, com este interessante personagem que se dedicou a uma tarefa nobre, no meio de tanto egoísmo aristocrático. A história dos homens, na realidade, não deixa de nos surpreender!

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