17 de abril de 2017

Carlos Ruiz Zafón, a trilogia da neblina ou das histórias góticas de mistério, amor e aventuras juvenis

«Otros lo llamaban el Príncipe de la Niebla, porque, según las habla-durías, siempre emergía de una densa niebla que cubría los callejones nocturnos y, antes del alba, desaparecía de nuevo en la niebla.»
Carlos Ruiz Zafón, El Príncipe de la Niebla (1993)
«Allí crecimos sin otra familia que nosotros mismos y sin otros recuer-dos que las historias que contábamos al llegar la madrugada en torno al fuego, en el patio de la vieja casa abandonada que se alzaba en la esquina de Cotton Street y Brabourne Road, un caserón en ruinas que habíamos bautizado como el Palacio de la Medianoche.»
Carlos Ruiz Zafón, El Palacio de la Medianoche (1994)
«–La gente del pueblo cree que el islote del faro está embrujado o algo así. Se dice que una mujer se ahogó allí hace mucho tiempo. Hay quien ve luces, En fin, cada pueblo tiene sus habladuras, y éste no iba de menos. || –¿Luces? || –Las luces de septiembre –dijo Ismael mientras rebasaban el islote a estribor–.»
Carlos Ruiz Zafón, Las luces de septiembre (1995)
Afirmam as estatísticas que Carlos Ruiz Zafón é o escritor de língua espanhola mais lido e traduzido, contando já com mais de 35 milhões de exemplares vendidos um pouco em toda a parte. Esqueceram-se os meios de comunicação social de explicitar se esse valor é absoluto ou se só se refere aos nossos dias. Seja qual for a resposta, o obreiro do Don Quixote que se cuide, pois arrisca-se a ver o seu nome substituído no Instituto Cervantes pelo do criador da saga do Cemitério dos Livros Esquecidos. Brincadeiras à parte, o fenómeno editorial deste fabricante invencível de bestsellers à escala global merece uma atenção muito especial, não deixando nenhum dos seus alegados leitores indiferentes. Goste-se ou não se goste do estilo, a verdade é que esta história de sucesso está longe de ter sido contada sempre do mesmo modo e com a mesma euforia numérica. Digamos que o reconhecimento nacional e internacional só se deu a media res do percurso encetado pelos universos da escrita, a meio da caminhada. A publicação d’A sombra do vento (2001) está na origem deste boom, a que se foram depois seguindo as três continuações da tetralogia, e a visita retrospetiva nos intervalos de espera dos quatro restantes títulos dados à estampa em datas anteriores. Incluem-se nesse rol uma série de romances juvenis autónomos, entretanto associadas na designada Trilogia da neblina. É sobre estes textos inaugurais que irei tecer alguns considerandos.

O ponto de partida para a fama é dado pel’O Príncipe da Neblina (1993). A estreia não podia ter sido mais auspiciosa, dado que arrebatou de imediato o Prémio Edebé, o que deverá ter inspirado o novíssimo fabricante de histórias góticas de amor, mistério e aventuras a continuar o seu percurso por esse trilho em boa hora escolhido. Decorre num cenário idílico de verão, numa aldeia portuária inglesa, provavelmente na costa córnica do Atlântico ou da Mancha, não muito distante de Southampton, e está distribuída por dois eixos temporais que terminam inexoravelmente por se cruzar nos labirintos da fábula. Os destinos dos intervenientes dos anos 30 e os dos 40 acabam por traçar as peripécias trágicas que conduzirão à inevitável catástrofe. A descida aos infernos marítimos é encetada pelos protagonistas quando se atrevem a invadir as catacumbas submarinas do Orfeu, o navio naufragado e residência dum espetro da água, mais conhecido por Príncipe da Neblina.

O segundo ensaio de lançamento para a glória dum autor ainda desconhecido do grande público prossegue em torno d’O Palácio da Meia-noite (1994), um velho casarão abandonado e arruinado escolhido para sede da Chowbar Society, clube secreto formado por sete alunos do orfanato St. Patrick’s de Calcutá. Decorre nos derradeiros dias de maio de 1932, nas vésperas de completarem o décimo sexto aniversário e derradeiro que celebrarão juntos no colégio indiano onde haviam vivido até aí à mercê da caridade alheia. Os fantasmas vindos do passado num comboio em chamas irrompem pelos bairros da cidade maldita para assombrar os protagonistas da fábula. É conduzido por um espetro de fogo, qual ave fénix renascida das cinzas, no papel de anjo demoníaco ou espírito vingativo de sucessos mal resolvidos noutras encarnações. Jogo de vida e morte imposto por uma figura sem rosto atormentada pela loucura. Sombra sem corpo à procura da liberdade que só lhe será concedida um pouco antes do pano de cena descer e deixar livre o proscénio para novas atuações não reveladas na tessitura narrativa.

No terceiro mergulho para o sucesso, os eventos relatados n’As luzes de setembro (1995) voltam a representar-se num cenário marítimo, situado agora na costa normanda e numa baía vizinha do Mont Saint-Michel. Regresso simétrico também às imediações dum farol, ao reencontro dramático de episódios antigos e atuais, ao debate agónico modificador do rumo que a predestinação ou o livre-arbítrio teriam tido planeado traçar em linhas cronológicas distintas. Luzes e trevas digladiam-se sem tréguas em torno dum fabricante de autómatos que vive encerrado numa gigantesca mansão, rodeado de seres mecânicos por si criados, espetro de vapor a circular num universo de gente invisível, recriação dum Doppelgänger, a sombra duma pessoa que se separou do dono e regressa em determinado momento para o atormentar. Figura que terminada a sua função no derradeiro drama da série salta insatisfeita para as páginas dos romances que se lhe seguem nos anos seguintes, acompanhado de muitos outros motivos feitos de tormentas, ventos, brumas, penumbras, nevoeiros, névoas e neblinas.

Lidos os livros, podemos afirmar com conhecimento de causa que o sobrenatural existe em Carlos Ruiz Zafón. Duma forma insistente em todas as componentes deste retábulo pintado em três painéis. É aceite por todos com reações de terror, saltando dos domínios do fantástico-estranho para os do fantástico-maravilhoso teorizados por Tzvetan Todorov*. O tópico da loucura desenvolve-se na dupla personalidade das entidades maléficas, oriundas do além-túmulo à procura duma segunda existência neste mundo. Estabelecem pactos de irresistível aceitação e de implacável cumprimento. As recordações são trazidas à superfície, à consciência dos protagonistas/antagonistas e a catarse dá-se. Os heróis partem cedo para os Campos Elísios, no apogeu da sua beleza física e psíquica, para assim serem lembrados para todo o sempre e por todos nós. E neste palco de maniqueísmos genéricos, é bom esperar que os espectros das figuras sem corpo desçam às profundezas do Tártaro, para que a ação purificadora do fogo e da água cumpram o seu papel e a justiça se exerça em toda a sua magnificência e os espetadores possam regressar a casa com a cara lavada no final da função.

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique, Paris, Le Seuil, 1970.




3 comentários:

  1. Gosto de Carlos Ruiz Zafón, mas o imaginário fantástico não me seduz... Boas leituras!

    ResponderEliminar
  2. Todo o imaginário de Zafón está ancorado nas hesitações explicativas do insólito (Fantástico Puro), muita embora o desfecho dos relatos tenha resvalado nesta fase inicial da trilogia para os domínios do sobrenatural (Fantástico-Maravilhoso) mal digerido pelos protagonistas. Nos textos mais recentes, tem pendido com alguma resistência para o natural (Fantástico-Estranho). Só depois de ler o quarto romance do ciclo do Cemitério dos Livros Esquecidos é que poderei ajuizar da solução final escolhida pelo grande obreiro de best-sellers internacionais. É uma tarefa que conto fazer em período mais repousado de férias...

    ResponderEliminar
  3. Acabei a minha maratona de Zafón, se contabilizada em páginas foram mais de duas mil. Li porque gosto da sua escrita que nos transporta às profundezas da imaginação. Gostei muito!

    ResponderEliminar