12 de outubro de 2017

Ana Margarida de Carvalho: o céu dos pardais é a barriga dos gatos em cujos olhos se não pode morar

«Não são os deuses que dormem, nós é que os sonhamos...»
Ana Margarida de Carvalho, Não se pode morar nos olhos de um gato (2016)
Filha de peixe sabe nadar. As barbatanas da aprendiza a sulcarem as águas da escrita a milhas náuticas do pai. Habituei-me às braçadas vigorosas do Mário e sinto dificuldade de seguir as da Ana Margarida. O humor sarcástico e bem-disposto do Carvalho-pai a sobrepor-se ao horror demolidor e mal-encarado da Carvalho-filha. Registos diferentes com os quais a literatura se faz. Ou se gosta ou não se gosta. Desconheço meios termos possíveis. Iniciei-me estas férias de verão com um muito proverbial Não se pode morar nos olhos de um gato (2016). Não me deixou insensível. Cumpriu de modo eficiente e convincente a sua missão de semear tumultos, de alimentar alvoroços, de suscitar emoções.

A síntese da contracapa quase nos dispensa a leitura do romance. Quase que lhe adivinhamos os pormenores que virão ao virar das trezentas e cinquenta páginas que o compõem. Pálida ideia do que a realidade nos oferecerá. Em contrapartida, as badanas de capa pouco adiantam ao texto que acompanham. Limitam-se a dar visibilidade aos pareceres críticos lavrados na devida altura e por obrigação de ofício, pela rede fixa de mediadores de opinião às qualidades já premiadas da obra de estreia, a condicionarem os juízos de valor ainda por tecer daquela que mal acabei de abrir e tenho entre mãos. Marketing editorial a que já estamos habituados. 

O início da fábula é precedido por duas advertências ao leitor, que se podem resumir ao dito popular: os gatos não são para aqui chamados. O título do livro, ao que nos é dado observar, foi retirado duma frase/verso de Alexandre O'Neill, Poema do desamor. Primeiro exemplo duma intertextualidade explícita a que se seguirão muitos outros casos de referências literárias implícitas. Extratos das cantigas trovadorescas de escárnio e maldizer e do vernáculo vicentino da Trilogia das Barcas são fáceis de identificar. Provérbios, lengalengas, orações, pragas, esconjuros. A estrutura discursiva de base centra-se, todavia, nos relatos compilados por Bernardo Gomes de Brito na História trágico-marítima (1735-1736). As relações e notícias de naufrágios, de sucessos infelizes, e acontecidos aos navegadores portugueses nos mares das Índias e Américas dos séculos xvi e xvii são trasladados para os finais do xix com ato de presença nas costas brasileiras. Refere ainda a ficha técnica que a autora escreve de acordo com a antiga ortografia. Bem podia tê-lo feito ao modo do oitocentos que a inspirou, para dar um cunho mais verosímil ao discurso. Ficou-se pela fixação de preceitos e regras intermédios, numa tentativa vã de marcar a diferença, numa época como a nossa em que predomina a indiferença pura e dura.

Passados os prolegómenos e entrados no âmago dos eventos repor-tados, topamos com um pungente rosário de contas por benzer ou por contar, numa estrutura barroca tecida segundo os preceitos matriciais judaico-cristãos do sofrimento infligido e merecido. Novela de novelas cortesãs, enfiada de contos exemplares de percursos existenciais pouco edificantes dos sobreviventes da tempestade, calmaria, incêndio, rebelião e afundamento do navio clandestino de escravos. Alcançam uma praia isolada do mundo por altas falésias e uma extensão de areia que as marés farão submergir intermitentemente ao sabor das marés. Fome, sede, doença, febre, morte a pontuarem os dias e as noites. Cativeiro partilhado a contragosto por todos os companheiros de infortúnio, à semelhança dos danados do Huis Clos de Jean-Paul Sartre, condenados ao inferno dos outros. Todos são obrigados a conviver sem possibilidade de fuga. Uma mãe e uma filha, um capataz, um escravo, um criado, um padre, um menino e uma santa de pau carunchosa a iniciar a procissão de penitentes. Cada um deles a testemunhar memórias fragmentárias, recordações duma infância distante, lembranças dum tempo que já não é e à espera dum tempo que talvez seja.

Lidas as confissões, exames de consciência e contrições assumidas, os resistentes aos caprichos do destino são retratados de modo magistral pela entidade ficcional que lhes deu vida na mancha gráfica dum livro. Relação de relações composta com um virtuosismo verbal alucinante, magnífica na capacidade de dar vida à arte da escrita. Violenta como as águas tumultuosas do mar ou agreste como os ventos indomáveis das tempestades. Flashes da condição humana. Cruel, impiedosa, implacável, insensível, inelutável. Sonho dos deuses ou castigo dos homens de sonharem os deuses. Algo será. Entretanto, antecipemos a falência geral dos órgãos e sintamos os cheiro das rosas.

3 comentários:

  1. Quando saiu do prelo ofereci um exemplar, não o tinha lido, mas li ótimas críticas. Continuo curiosa.

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  2. Uma feliz resenha que me fala de uma autora que não conheço. Sendo filha de quem é, maior é a responsabilidade para com os leitores! No geral, não me basta ser desafiada emocionalmente para gostar de algo, seja na literatura, seja em arte, seja na vida real. Tenho de sentir o banho de beleza sui generis...

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