22 de novembro de 2017

Ildefonso Falcones e as gestas, sagas e crónicas dos herdeiros da terra

«—Pues eso es lo importante en esta vida: a ninguno nos complace la humillación o la sumisión; el problema es saber cómo escapar de ellas.»
Ildefonso Falcones, Los herederos de la tierra (2016)
Os recentes acontecimentos vividos na Catalunha apanharam-me a meio da leitura dum livro centrado na Barcelona medieval e nos problemas que o Principado teve de enfrentar após a morte de Martim I (1410) sem deixar um sucessor legítimo. Extraordinária coincidência esta, a de cair por acaso nos capítulos que tratam das deliberações do Compromisso de Caspe (1412), aquele que entregaria a Coroa de Aragão a Fernando de Antequera, um infante de Castela da Casa de Trastâmara, em detrimento dos restantes candidatos, os condes de Luna e de Urgel e os duques de Calábria e de Gândia. A recreação literária de factos acontecidos e fantasiados apareceu-me associada num evento registado pelas crónicas coevas do início do século XV com repercussões muita vivas no início do XXI. Uma independência que se começava então a perder e que se pretende agora recuperar. De modo involuntário, Ildefonso Falcones conseguiu elucidar-me da fisionomia histórica do país que o viu nascer e tão bem tem sabido descrever nas páginas dos romances que lhe tem dedicado, como será o caso deste que acabo de visitar, Os herdeiros da terra (2016).

As velhas usatges, ou costumes e normas de funcionamento próprios dos condados catalães, estabelecidos nos tempos da rainha Petronila de Aragão e do conde Ramon Berenguer IV de Barcelona, são frequentemente referidos ao longo das quase novecentas páginas que compõem a obra. Entre janeiro de 1387 e setembro de 1423, o cronista do relato põem-nos ao corrente dos percursos de vida chamados à liça pelos eixos centrais e laterais da trama narrativa. Cerca de quatro décadas de destinos cruzados na teia urbana medieval da Cidade Condal, tendo como cenários privilegiados as ruas e ruelas, praças e ramblas que a formam e conformam, em conventos e mosteiros, palácios e casebres, igrejas e capelas, hospitais e hospícios, caves e tabernas, masias e castells, em ambiente aristocrata e popular, em espaços públicos e privados, nas judiarias e no burgo cristão em geral, sempre à sombra das grandes instituições reais e principescas do Consell de Cents, das Corts Generals, do Consulat del Mar e da Generalitat.

O novo bestseller das letras hispânicas foi apresentado aos seus potenciais leitores como uma continuação da saga de Arnau Estanyol, o bastaix que ajudou a construir a basílica de Santa Maria, A catedral do mar. Essa notação editorial encontra-se registada na contracapa da obra, que pouco mais avança sobre o enredo, que nos será transmitidos à medida que a ação vai sendo revelada. Os episódios sucedem-se uns aos outros a um ritmo vertiginoso. Falam-nos do mar e da terra, da lealdade e da traição, da vingança e do amor, da dor e da justiça, arrumados aos pares, nas quatro partes da vida de Hugo Llor, o herói da fábula e representante por excelência d'Os herdeiros da terra. Escravos e libertos, mouros e judeus, camponeses e vilões, conversos e contumazes, arraia-miúda e pés-descalços. Nada mais. A nobreza aragonesa, valenciana e catalã, associada à maiorquina e siciliana, assume o papel ingrato de má-da-fita. A plebe sem nome de família destes mesmos reinos e principado acaba por assumir o papel devido de vencedora de todos os conflitos postos em jogo.

O real e o imaginário cruzam-se neste relato de relatos, individuais e coletivos, nesta crónica dum tempo pretérito cujos ecos longínquos lograram chegar aos nossos dias, cujo legado se concentra na demanda sem tréguas pela liberdade. Esse o sonho do protagonista, aquele que o fez desempenhar ao longo dos anos de infância, jovem e adulto os ofícios de moço de recados dos estaleiros militares e privados, moço de gateiro caçador de ratos, leiloeiro e corretor de vinhos, vinhateiro ganhão, adegueiro condal e real, jornaleiro e taberneiro, para além de cúmplice de corsário e espião de estado. Descreve um percurso existencial muito próximo do traçado pelos pícaros literários dos séculos de ouro peninsulares. Sobrevive a todas as dificuldades que o destino lhe oferece e logra sempre sair por cima. Exemplarmente. As guerrilhas de interesse entre Bernat Estanyol e Roger Puig chegam ao fim com a morte dos dois. Só o núcleo familiar de Hugo Llor sobrevive a ventos e marés da fortuna. Preparado para dar continuidade a uma nova sequela, a publicar, quiçá, dentro duma dezena de anos, para deleite dos leitores e proveito dos editores.

16 de novembro de 2017

As lágrimas de dor e alegria de Dom Pedro de Portugal, Rei dos Catalães

PAINE POUR JOIE

Le mot associé aux armes du connétable de Portugal

Chronique générale de l’Espagne et du Portugal

[Paris, BNF, Ms. Port. 9, fol. 1, vers 1454-1463]

Altos e baixos da roda da fortuna

Quando D. Fernando I de Portugal morreu, sucedeu-lhe no trono a filha D. Beatriz, então casada com Juan I de Castela. O receio da substituição dos Borgonha lusitanos pelos Trastâmara hispânicos deu início a uma crise dinástica que passou à História com a designação de Interregno de 1383-85. O impacto só foi solucionado com a vitória decisiva do Mestre de Avis em Aljubarrota e da sua eleição como D. João I de Portugal nas Cortes de Coimbra. Do seu casamento com D. Filipa de Lencastre nasceria a Ínclita Geração.

D. Pedro de Avis e Urgell (1429-1466) pertence a essa linhagem celebrada por Camões n' Os Lusíadas. Filho do duque D. Pedro de Coimbra, regente do reino durante a menoridade de D. Afonso V, foi nomeado neste período Condestável de Portugal, cargo que exerceu até à morte do pai na Batalha de Alfarrobeira (1449). Caído em desgraça, é obrigado a exilar-se em Castela, onde sobrevive como escritor. A ele se deve a Sátira de felice e infelice vida (c. 1453-1455), novela em prosa cujo original português se perdeu.

Quando Martí I de Aragão morreu sem descendentes, abriu uma crise dinástica que se prolonga até ao Compromisso de Caspe. O Infante de Castela Fernando de Antequera vence a disputa, dá fim ao Interregno de 1410-12 e sobe ao trono até então vago. O conflito estava longe de terminar, dado que em 1464 D. Pedro de Portugal foi reconhecido pela Genaralitat do Principado da Catalunha como Rei de Aragão e Valência, Conde de Barcelona e Senhor de Maiorca e Sardenha, por ser neto do Conde Jaume II de Urgell.

Os altos e baixos que o destino lhe reservou ao longo da vida, terão inspirado o filho do Infante das Sete Partidas a escolher a sua divisa pessoal, gravada num escudo em forma de lágrima. A figura alegórica da «roda da fortuna» como corpo e o mote «Paine pour joie» (sofrer para fruir) como alma. Dificilmente o ex-Condestável de Portugal e Rei dels Catalans podia ter escolhido um emblema que melhor resumisse as adversidades e satisfações que o seu percurso pessoal pelos trilhos do poder lhe haviam reservado. 
Pere IV, dit «El Conestable de Portugal», Pacífic de Barcelona, 1464-1466.
[Museu Nacional d’Art de Catalunya]

11 de novembro de 2017

Crónica outonal da castanha na brasa

 CASTANHAS ASSADAS  

Quem quer quentes e boas...


No dia de São Martinho, lume, castanhas e vinho. O magusto este ano foi traído pela falta de qualidade da castanha trazida do híper, imprópria para assar em casa. Assim nem foi preciso trocar a água-pé pela jeropiga, nem o fogareiro a carvão pelo forno da cozinha. A inauguração oficial do outono ficou adiado sine die, neste tempo estival que ameaça prolongar-se até ao Natal.

A castanha é de quem a come e não de quem a apanha. Diz quem sabe. Quentes e boas como as da feira de Santa Iría. Apetitosas e a saber a sal. QB. Casca solta e estaladiça. Cada uma a fazer inveja às restantes. E quem come uma come um cento, ainda que as tenha de repartir por várias etapas. À entrada do Fórum de Faro ou na rua de Santo António acima e abaixo.

A castanha tem três capas de inverno: a primeira mete medo, a segunda é lustrosa e a terceira é amarga. Numa época em que o clima nos troca as voltas, vivamos as memórias da estação. Ouvir os pregões do homem das castanhas. Vê-las a saltar na brasa. Cinzentas e amarelas. Cheirá-las. Levar uma dúzia para casa. Saboreá-las. Matar a fome e chorar por mais.

9 de novembro de 2017

Parlez-moi d'amour, de chansons, de photos et de cinéma...


 Du temps où j'avais encore un état civil... 


Hier, nous nous promenions, ma petite fille et moi, au jardin d'Accli-matation et nous arrivâmes, par hasard, en bordure de ce manège. Trente-trois ans avaient passé. Les bâtiments en brique des écuries où se réfugiait mon père n'avaient certainement pas changé depuis, ni les obstacles, les barrières blanches, le sable noir de la piste. Pourquoi ici plus que dans n'importe quel autre endroit, ai-je senti l'odeur vénéneuse de l'Occupation, ce terreau d'où je suis issu ?
Temps troubles. Rencontres inattendus. Par quel hasard mes parents passèrent-ils le réveillon 1942, au Beaulieu, en compagnie de l'acteur Sessue Hayakawa et de sa femme Flo Nardus ? Une photo traînait au fond du tiroir du secrétaire, où on les voyait assis à une table, tous les quatre, Sessue Hayakawa, le visage aussi impassible que dans Macao, l'Enfer du Jeu, Flo Nardus, si blonde que ses cheveux paraissaient blancs, ma mère et mon père, l’air de deux jeunes gens timides... Ce soir-là, Lucienne Boyer se produisait au Baulieu en vedette, et juste avant qu'on annonçât la nouvelle année, elle a chanté une chanson interdite, parce que l'un de ses auteurs était juif :
« Parlez-moi d’amour
Redites-moi
Des choses tendres… »
Depuis, Sessue Hayakawa a disparu. Que faisait, à Paris, sous l'Occupation, cette ancienne vedette japonaise d'Hollywood ?

Patrick Modiano, Livret de famille, 1977
[Romans : Quarto Gallimard, 1973, 325-326]

6 de novembro de 2017

Bruce Chatwin: a saga esclavagista do vice-rei de Ajudá

«Dom Francisco (…) came from San Salvador da Bahia in 1812 and, over thirty years, was the “best friend” of the King of Dahomey, keeping him supplied with rum, tobacco, finery and Long Dane guns which were made not in Denmark but in Birmingham. | In return of these favours, he enjoyed the title of Viceroy of Ouidah, a monopoly over the sale of slaves.»
Bruce Chatwin, The Viceroy of Ouidah (1980)
São admiráveis os caminhos sinuosos como certos livros nos chegam às mãos e o processo de leitura que lhe anda associado. Uma sugestão casual dum amigo, um título apelativo ao ouvido, um exemplar algures à nossa espera. O acaso trouxe-me ao convívio de Bruce Chatwin, crítico de arte e de arquitetura, jornalista e escritor de viagens. Deu-se-me a conhecer através d’O vice-rei de Ajudá (1980), romance que encontrei meio escondido numa estante de obras esquecidas ou tidas como fora de prazo. Olhou para mim com determinação e ordenou-me, perentório: Lê-me! Não me apeteceu obedecer-lhe de imediato. Mudei-o para o monte de calhamaços destinados a serem visitados durante as férias. O momento chegou este verão. Peguei-lhe um pouco a contragosto, com a ideia fisgada de lhe prestar alguma atenção durante os longos momentos de espera nas estações de caminho-de-ferro e dos aeroportos visitados. A solução foi proveitosa. Entre o ponto de partida e o ponto de chegada, o passeio pelo interior do texto cumpriu satisfatoriamente o trânsito completo pela centena e meia de páginas que lhe dão corpo e revelam os segredos. As impressões de percurso seguem sem mais delongas. 

A ficção está ancorada no comércio atlântico de escravos, perpetrado ao longo de quatro séculos, entre as costas da Mina e da Guiné e as costas do Novo Mundo, descoberto, conquistado e colonizado pelos povos ibéricos e por todos aqueles que os imitaram no Velho Mundo. Crime hediondo de genocídio cometido pelos esclavagistas europeus, em íntima colaboração com os esclavagistas africanos e em perfeita sintonia com os esclavagistas americanos. Nesta matéria de opressão do homem pelo homem não há inocentes. Todos são culpados. Sem exceção. Problema da humanidade em explorar a sua própria espécie. A cor da pele é irrelevante. Os procedimentos são idênticos. O cronista inglês dos tempos modernos inspirou-se nos factos verdadeiros das histórias acontecidas e imaginou os feitos verídicos de histórias possíveis. Francisco Félix de Souza, personalidade real de carne-e-osso, sai de cena e Francisco Manoel da Silva, personagem fictícia de papel-e-tinta, põe a máscara de vice-rei de Ajudá e dá início aos diversos atos do drama. No teatro de operações, a fortaleza seiscentista portuguesa, construída no Reino de Daomé, sob o patrocínio de São João Batista, assistir-se-á ao advento, consolidação e queda duma dinastia de negreiros brasileiros. 

As aventuras peregrinas do fundador duma família espalhada pelo mundo, escritas a ferro e fogo com muito sangue à mistura, iniciam-se em terras de Santa Cruz, no Sertão ganadeiro. O traçado pícaro é visível. Órfão de pai cangaceiro com um ano de idade, vê a mãe ligar-se a um índio mestiço e perecer vitimada pela seca. É protegido até aos treze por um padre português exilado do reino por comportamento pouco canónico. Vagueia pela catinga nordestina. Faz-se aprendiz de açougueiro, almocreve, boiadeiro e garimpeiro. Estaciona em aldeias indígenas e comboia ciganos que traficavam escravos. Casa-se. Engravida a mulher. Abandona-a e ao filho recém-nascido. Regressa às deambulações solitárias. Experimenta alguns momentos fugidios de arrependimento e de refúgio nas promessas da religião. Entrega-se, ato contínuo, à bebida nas tabernas, ao riso, ao jogo das cartas. Instala-se na Baía. Em 1812, com 27 anos, abandona a Cidade de Todos os Santos, atravessa o grande Mar Oceano, desembarca em Ajudá, numa sombria manhã de maio. O resto da história encontra-se sintetizado na frase que serve de epígrafe a este relato de leitura. Fico-me por aqui. A paráfrase não deve nunca substituir o fluir diegético do original

O romance desenhado em forma de saga assenta arraiais na escravatura negra. Aquela que as diligências interesseiras da Inglaterra aboliriam definitivamente em 1834. Aquela que as pressões tardias das potências ocidentais levariam Portugal a seguir-lhe as pisadas em 1869. O Brasil fá-lo pela Lei Áurea de 1888. O ciclo de vida vivida do patriarca negociante de vidas por viver chega ao fim e o império por si erigido esboroa-se como um castelo de areia ressequido pelo sol. A distinção entre senhores e servos não partiu com ele. Outros tipos de escravatura ficaram. Alguns chamam-lhe branca, que é o conjunto de todas as cores. A relação dessas novas formas de servidão está ainda por traçar.

NOTA
Trazido do Pátio de Letras para estas Histórias d' Arthur d' Algarbe, agora que a descriminação racial e as práticas de escravatura moderna voltaram a assombrar-nos nestes nossos dias tumultuosos de início de milénio. 

1 de novembro de 2017

A violência titânica da terra

MÚSICA MUNDANA
Robert Fludd, Utriusque Cosmi, 1617

O primeiro elemento...

No dia de Todos os Santos de 1755, a terra tremeu resvés Campo de Ourique e caiu o Carmo e a Trindade. As velas dos templos pegaram fogo e consumiram o casario de Lisboa. Uma onda gigante de água atlântica inundou a cidade. Pelo ar coberto de fumo ecoou o clamor dos que haviam sobrevivido à catástrofe.

Diz-se que el-Rei Dom José I terá questionado Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Conde Ourém e Marquês de Pombal, sobre o que se devia fazer. Este ter-lhe-á respondido: Sepultar os mortos, cuidar dos vivos e fechar os portos. Palavras sábias também atribuídas ao General Pedro d'Almeida, Marquês de Alorna.

A atitude do Secretário de Estado contrastou com a da Santa Inquisição. O terramoto desse 1 de novembro seria um castigo divino aos pecados humanos. Um auto-de-fé foi organizado como penitência. O fogo voltou à terra e as cinzas suspensas no ar acabaram nas águas do Tejo. A purificação estava concluída.