31 de dezembro de 2018

O trompe-l'œil do ser e do parecer

      Pere Borrell del Caso, Fugint de la crítica (1874)   
[Madrid: Banco de España]  

Dos faz-tudo e dos faz-de-conta

Com um olhar ensandecido de quem não se sente bem onde está e procura um lugar melhor para se mudar, o retratado salta para fora da moldura claustrofóbica que lhe tolhe os movimentos. Trompe-l'œil se designa a técnica artística que nos transmite a ilusão de observar uma representação plana pintada em 2D como se se tratasse duma realidade volumétrica esculpida em 3D. Em termos programático, pode ser entendido como um expediente estético de dar visibilidade ao tópico barroco do Ser e do Parecer.

No universo romano das representações míticas, a faculdade das mudanças e transições, dos inícios, decisões e escolhas, estava a cargo do deus Janus. A iconografia representava-o com duas faces, uma a olhar para a frente e outra para trás. Etimologicamente, estava associado à palavra «porta» (= janua), um espaço intermédio de passagem, de entrada e saída, de interior e exterior, de passado e futuro. Por isso deu o nome a «janeiro» (= januarius), o primeiro mês do ano nos calendários juliano e gregoriano.

Quando a Roma Imperial caiu e a Papal surgiu, as divindades latinas foram clinicamente trocadas pelos santos cristãosA passagem de ano foi batizada de Noite de São Silvestre, em honra do pontífice que iniciara a Paz na Igreja. E o faz-tudo para mudar os maus hábitos do Ano Velho faz-de-conta que acredita na mudança. Brinda-se ao Ano Novo, comem-se as 12 passas de uva, salta-se da cadeira, vê-se o fogo-de-artifício e vai-se para a cama mais tarde. Depois tudo volta ao normal até à próxima véspera de Ano Bom.

18 de dezembro de 2018

Maria Velho da Costa, as histórias peregrinas de Myra & Rambô...

«Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja.»
Maria Velho da Costa, Myra (2008)
Maria Velho da Costa nunca foi uma escritora convencional, nunca pactuou com o facilitismo do verbo feito por peso e medida, nunca se curvou ao gosto estereotipado das leituras inócuas e ingénuas. Sempre escreveu sem papas na língua nem meias-tintas, sem rodeios nem paninhos quentes. Disse sempre o que tinha a dizer e não aquilo que os outros gostariam de ouvir. Contra tudo e contra todos. Em nome individual e coletivo. A polémica gerada em torno das Novas Cartas Portuguesas (1972), tecidas em parceria com Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno – com quem formou as Três Marias – não lhe quebrou o ânimo de prosseguir o rumo pessoal por si traçado de se mover no mundo da literatura. Aquele que sempre se regeu pela recusa dos valores tradicionais anquilosados pelo tempo. A condição feminina tem marcado uma presença constante neste percurso de palavras feitas em forma de letra. O exemplo libertário de Mariana Alcoforado, a religiosa de Beja e presuntiva autora das anónimas Lettres portugaises (1619), a inspiradora atestada da continuação moderna referida, que tanta tinta têm feito correr ao longo de quatro centúrias mal contadas, será depois retomado em muitas outras páginas de ficção romanesca e de feição ensaística. As personagens até podem mudar de nome, identificar-se com uma Maina Mendes (1969), viver em Casas Pardas (1977), rescender aos aromas revolucionários da Lucialima (1983) ou frequentar os ritos místicos da Missa in Albis (1988), que o empenho inconformista da mulher se mantém inalterado. Até à vitória final, diriam os panfletos políticos que a autora só registaria como mero exercício de estilo ou testemunho literário duma época.

O último romance de Maria Velho da Costa conta-nos a vida de Myra (2008), uma jovem imigrante russa em terras lusas, que tanto assume ser apelidada de Sónia, Sophia, Helena, Ekaterina, Catarina, Kate, como ser alcunhada de Mula Ruça e Maria-Flor. Quando a vemos pela primeira vez, encontramo-la entregue à mais perfeita solidão e a caminhar em direção ao mar. Depois, descobre a presença de Rambô, um cão de luta, um cão de morte, um pitbull terrier ferido, tão mais infeliz do que ela, e que, por isso mesmo, furta ao maltrato dos donos e passa a chamar por César, Fritz, Piloto, Douro, Ivan. É que, como a própria trama novelesca regista e as vicissitudes do dia a dia se encarregam de confirmar, um nome é um destino. A relação de amizade entre a criança indefesa e o animal feroz e as peregrinações continuadas dos dois pelos sendeiros do infortúnio conduzem-nos, com alguma fatalidade, aos universos de uma certa picaresca feminina que a inventiva dos séculos de ouro peninsular popularizou. A genealogia algo duvidosa da protagonista, os castigos físicos que lhe são infligidos, a fome, o medo, o abandono a que é votada, as mentiras, os disfarces, as falsas identidades, os encontros fortuitos de caminho, os amos e protetores, o convívio com o vício e a marginalidade, a arte e manha da sobrevivência quotidiana não faltam. Só que o humor tão típico do género prima pela ausência. É o horror que prevalece ao longo de toda a tessitura efabulativa. A ironia bem-disposta que convida a uma boa gargalhada é substituída pelo sarcasmo mais despiedado que imaginar se possa, em que não há lugar a um simples sorriso ou esgare nervoso. Escusado será dizer que a instância narrativa lhe nega um final feliz, para a aproximar ainda mais da própria realidade que nos rodeia. A atual, a pós-moderna, a inaugurada com o terceiro milénio.

A escrita de Maria Velho da Costa é tudo menos simples. foi etique-tada de polifónica, labiríntica, fragmentária, caleidoscópica. Myra não foge em muito a este quadro de experimentalismo linguístico. Trata-se dum relato memorialista exposto a várias vozes, na fronteira da pará-bola e da fábula, a poucos passos do realismo mágico da latinidade ibero-americana. O processo de amadurecimento da autora envere-dou para um discurso mais fluido, mais fluente, mais fácil de seguir, talvez por estar centrado na existência duma criança a despertar para a vida, ainda que obrigada a comportar-se como uma adulta a quem negaram o direito à infância e à adolescência. Segundo a lição do texto, expressa pela heroína ao fiel companheiro de adversidade, há sempre mais maus que os maus, Ivan. Mais terríveis do que os terríveis. Amarga consolação para esta nossa inútil passagem pela mundo, esta nossa travessia dum deserto sempre às margens do dano e nas esteiras da dor.

NOTA
Trouxe este texto do Pátio de Letras no Dia Internacional das Migrações|Migrante, proclamado em 2000 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e que se celebra desde então em todos os 18 de dezembro do ano.

13 de dezembro de 2018

Megalomanias do Rei Venturoso

ESFERA ARMILAR
(c. 1508-1509)
Azulejaria mudéjar do Palácio Nacional de Sintra

Deus no céu e eu na terra

Dita a regra geral das monarquias que a ordem de sucessão ao trono se faça de pai para filho. Às vezes, dá-se de irmão para irmão, de avô para neto ou entre tios e sobrinhos. O render de testemunho pode ainda ocorrer de formas menos usuais. Foi o que aconteceu com D. Manuel I, que recebeu a coroa de D. João II, seu primo direito e cunhado, tendo para tal beneficiado da morte sucessiva dos seis herdeiros presuntivos precedentes na linha dinástica. Esta uma das razões pelas quais a História o designaria de Afortunado, Venturoso ou Bem-Aventurado.

A política governativa seguida pelo seu antecessor facultou-lhe a possibilidade de desenvolver com êxito o projeto das explorações portuguesas, permitindo-lhe a descoberta do caminho marítimo para a Índia, do Brasil e das Molucas. A extensão global dos seus domínios distribuídos por quatro continentes e três oceanos levou-o a intitu-lar-se Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc. Tudo isto, está bem de ver, pela Graça de Deus.

A megalomania do Pomposo, como ainda lhe chamaram, alargou-se à sua emblemática pessoal. Adotou a Esfera Armilar, como corpo da divisa, e a sentença latina Spera in Deo et fac bonitatem (= entrega-te a Deus e faz o bem), como alma. Na eclíptica da empresa também ela herdada do Príncipe Perfeito, acrescentou os dizeres MORE e MROE, i.e., Orbis Rex est e Manuel Rex Orbi est (= Manuel é Rei do Mundo), assumindo assim o desejado estatuto imperial que lhe faltava e lhe convinha espalhar sem mais demoras aos sete ventos por essa Res Publica Christiana fora.

Aquele que tinha nascido infante de segunda ordem da Casa Real de Avis e fora um mero Duque de Beja e Senhor de Viseu, Covilhã e Vila Viçosa, Mestre da Ordem de Cristo, Condestável do Reino e Fronteiro-Mor de Entre Tejo e Guadiana, será convertido pela Fortuna no mais rico soberano do seu tempo. O Rei da Pimenta far-se-á representar em majestade nas Ordenações de 1514. Coroa aberta e armadura, brasão e ceptro real da justiça, de onde pende uma fita com o lema: DEO IN CELO TIBI AVTEM IN MVNDO (= A Deus no céu e a ti na terra). Nada mais.  


NOTA
No dia em que se cumprem 497 anos sobre a sua morte em Lisboa, com 52 anos e menos de 8 meses de idade. Morria-se cedo nessas épocas douradas de apogeu.

7 de dezembro de 2018

A Estremadura e os lugares de memória

PROVÍNCIA DA ESTREMADURA
João Silvério Carpinetti

[Lisboa: BNP (1762)]
... lieu de la mémoire
«As ruas, as praças calcorreadas pelas mulheres, crianças e homens europeus são cem vezes mais designadas segundo estadistas, figuras militares, poetas, artistas, compositores, cientistas e filósofos. [...] O menino da escola e os homens e mulheres urbanos da Europa habitam verdadeiras câmaras de ressonância de feitos históricos, intelectuais, artísticos e científicos. [...] Nos Estados Unidos tais memoranda são escassos. As ruas são interminavelmente nomeadas como “Pine”, “Maple”, “Oak” ou “Willow”. As grandes avenidas chamam-se “Sunset”, a mais nobre das ruas de Boston é conhecida como “Beacon”. [...] As avenidas, calçadas e ruas americanas são simplesmente numeradas ou conhecidas pela sua orientação, como em Washington, sendo o número seguido de “North” ou “West”. Os automóveis não têm tempo de considerar uma rue Nerval ou um largo Copernicus.»
George Steiner, A ideia de Europa (Lisboa: Gradiva, 2005, 32-33)
A Estremadura dividiu nos tempos da Reconquista Cristã (718-1492) o Norte cristão, clerical, guerreiro e rural, do Sul árabe ou moçárabe e urbano. Situava-se para além da margem meridional do Douro e ia até ao vale do Sado. Funcionava como uma terra de transição e de conflito latente, a linha fronteiriça ou raiana entre duas culturas e civilizações distintas, a baliza flutuante ou estrema dos territórios recuperadas pela Cristandade à Moirama. Era a marca divisória entre o Condado Portucalense e o al-Gharb al-'Andalus.

As vitórias da Cruzada hispânica sobre o Crescente muçulmano foram alterando os limites das duas forças inimigas em contenda. O Reino de Portugal estendeu-se até ao Reino do Algarve, confinado à vertente setentrional da serra do Caldeirão, logo conquistado e anexado (1249). As províncias históricas viram ajustados os seus termos ao longo dos tempos, até desaparecerem como entidades administrativas atuais. A sua presença multissecular permaneceu todavia viva na memória coletiva das suas gentes.

Algarvios e Alentejanos, Beirões e Transmontanos, Ribatejanos e Minhotos fizeram tábua rasa das NUTS, GAM, ComIurb e ComInter, siglas pouco apelativas para identificar as suas raízes matriciais. Os Estremenhos, em contracorrente, riscaram o seu passado histórico e renderam-se ao bussolar. Olharam fixamente para a rosa-dos-ventos e reclamaram-se convictamente do Oeste. O lugar da memória/olvido surge-nos de quando em vez com estes laivos peregrinos. De costas voltadas para a Europa. De braços abertos para a América.

Lucas Janszoon Waghenaer
Gedaente en vodoeninge vant Landt van Portugal (1584)

3 de dezembro de 2018

O homem dos sete instrumentos

   AMADEO DE SOUZA-CARDOSO   

Sem título (1917)

[Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian]
                               Au déboulé garçon pointe ton numéro
                               Pour gagner ainsi le salaire
                               D'un morne jour utilitaire
                               Métro, boulot, bistro, mégots, dodo, zéro.
                               Pierre Béarn, «Réveil» IN Couleurs d'Usine (1951)
Os sete instrumentos foram a afinar. Agora só tocam a solo e em privado. Cada um a seu tempo e sem pressões. O tocador retirou-se muito de mansinho e abraçou outras tocatinas mais recatadas. Com ritmos operáticos mais ajustados ao bel canto. Regidos por batutas mais ajustadas aos registos melódicos da partitura.

O homem dos sete instrumentos rendeu-se presto aos andamentos do canto lírico. Deixou de andar a nove como os amarelos da Carris. Substituiu o movimento perpétuo pelo compasso suave, vagaroso e imponente do adagio. Retirou-se das lides laborais scherzando com os toques harmónicos do allegretto, allegro e vivace.

1 de dezembro de 2018

Mimos ibéricos com zarolhos e manetas

Cervantes & Camões


 Ditos e ditotes de mancos & tuertos peninsulares 

Tem-se falado com alguma insistência nos últimos tempos de Iberismo e Iberofonia. As duas palavras têm sido chamadas à colação nas ribaltas mediáticas das redes sociais. Os prós e os contras têm tido a ressonância habitual em casos que tais.

Depois, o Primeiro de Dezembro - que este ano se comemora num fim de semana - vem-nos lembrar que as utopias são possíveis mas nem sempre são desejadas ou resultam na perfeição. Os 28 anos da Guerra da Aclamação rebatizada da Restauração que o diga.

Durante o período da Monarquia Dual o fator linguístico também só funcionou num sentido. A história literária regista dezenas de autores lusitanos a renderem-se ao castelhano mas é omissa na nomeação de um ou outro hispânico a fazê-lo em português.

As querelas ibéricas parece que se decidem nos ditos e ditotes. anos, um amigo espanhol atirou-me o motejo: Camões, aunque portugués tuerto (zarolho). Ao que lhe respondi: Cervantes, aunque español manco (maneta). Rimo-nos os dois e findámos a disputa.

26 de novembro de 2018

Henrik Nilsson, um piano em Sesimbra e outras histórias portuguesas contadas em sueco

«En skugga rörde sig. Kanske var det en människa [...] Varje dag badar vi i okunskapen om oss själva.»
Henrik Nilsson, Nätterna, Verónica (2006)
Numa passagem rápida por terras escandinavas, soube da existência dumas histórias situadas em cenários portugueses, idealizadas em forma de conto por um jovem escritor sueco. Sete, para ser mais preciso. Tantos como os dias da criação. De regresso ao palco retangular da ação diegética, dirigi-me ao Pátio de Letras, abrimos em conjunto o mundo em gavetas e topámos a seleta pesquisada, uma partitura assinada por Henrik Nilsson com a designação genérica de Um piano em Sesimbra (2006).

Percorridas as páginas que dão corpo à obra, lidas as imitações de vida nelas contidas, detetei ainda umas historietas adicionais inse-ridas no relato com que abre a compilação. Aquelas que um escritor da capital ouve contar numa noite passada inesperadamente na As-sociação Mourense para Narração Noturna. Um sono inoportuno im-pedira-o de abandonar o comboio no destino programado e obrigara-o a descer n’A última estação da linha. O cego que encontrara junto às sombras da rua, a mulher estrangeira que vira num bar da cidade e o homem que olhava pela janela da sala, tomaram a palavra, centra-ram-se no tema proposto «perder-se» e contaram um a um, até ao amanhecer, a história d’«A mulher dos passos lentos», a história d’«Os rostos» e a história das «Notas perdidas».

O impulso de revelar todos os pormenores das histórias contidas no primeiro conto deste livro de contos é enorme. Todavia, o bom senso necessário nestas ocasiões foi mais forte e impediu-me de revelar os seus segredos assim sem mais nem menos. Que a viagem de cada leitor pelo universo das letras feitas palavras se faça na íntegra, sem interferências estranhas e dispensáveis. Que a paráfrase não substitua a frase. Que a clonagem bem intencionada não mate a surpresa da descoberta pessoal. Fascinante, única, irrepetível. Sensações que a verdadeira arte nos pode e sabe transmitir.

As noites, Verónica, que dão título à versão original da coletânea, levam-nos aos encontros casuais dum investigador português e duma funcionária da limpeza angolana, tidos na sala de leitura da Sociedade de Geografia de Lisboa, e dos diálogos noturnos travados entre mapas, globos, manuscritos e atlas referentes a um império perdido. A versão traduzida remete-nos, em contrapartida, para Um piano em Sesimbra e para as deslocações que um juiz viúvo alfacinha efetua todos os sábados a essa vila piscatória da península de Setúbal, em busca da sonoridade sempre renovada da segunda balada de Chopin, executada por um misterioso pianista, enquanto degusta uma tradicional sapateira.

O protagonismo da grande cidade das muitas colinas, banhada pelas águas azul-esverdeadas do grande rio que lhe traça os limites com a outra banda, é confirmado nos restantes episódios do quotidiano convocados pela ficção. As ruas, praças, avenidas e bairros transformam-se em cenários privilegiados das gentes anónimas que a povoam. Por vezes ganham uma identidade passageira numa personagem que se destaca numa história contada. Os pormenores descritivos que suspendem o tempo encarregam-se de criar a tal expetativa tópica dos filmes de mistério. A secretária dum astrólogo angolano especialista em Aconselhamento espiritual, que vive uma experiência insólita de desespero existencial nos labirintos de Alfama. O despachante alfandegário quase falido que rouba espelhos das casas de banho dos Cargueiros ancorados no cais do Tejo. O vendedor de canais de televisão que imagina uma história de amor e morte vivida n’O terramoto de 1755. O silêncio de Adriana, assumido depois de se ter perdido a confiança no passado e não haver mais nada para dizer.

A habitual autopromoção registada nas badanas e contracapa do livro afirma tratar-se dum conjunto de contos extraordinários, gisados por um autor aplaudido unanimemente pela crítica especializada do país do Prémio Nobel da Literatura. Não duvido da justeza desse juízo de valor, muito embora desconheça a existência doutros títulos que tenha publicado desde então. Espero que a qualidade documentada neste universo narrativo de estreia não fique congelada num tempo cada vez mais passado sem promessas à vista de futuro. Há tantos casos desses por aí que tememos estar na presença de mais um desses sucessos meteóricos de repetição adiada. O ritmo da fábula é forte, a prosa vigorosa, o estilo original. Que venham mais histórias com final suspenso, para que o leitor tome conta do repto, asas à imaginação e se ponha a preencher lacunas e a substituir reticên-cias por pontos finais.

NOTA
Não voltei a ter notícias literárias deste jovem escritor sueco natural de Malmö, desde que há cinco anos o vi traduzido em português, o li com muitos prazer e compus estas notas tornadas públicas no Pátio de Letras. É pena. Trago-o para aqui numa altura em que me apeteceu voltar à sua companhia e ao modo como soube transmitir por escrito a sua sensibilidade artística bebida no nosso país.

19 de novembro de 2018

Cultura e civilização do local e do global

ΤΑΥΡΟΜΑΧΊΑ – TAUROMAQUIA
Fresco do Palácio Minoico de Cnossos (c. 1600-1450 AEC)
[Museu Arqueológico de Heraklion - Creta, Grécia]
«Cultura opõe-se a natura ou natureza, isto é, abrange todos aqueles objetos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito. A fala é já condição de cultura. Por ela se comunicam emoções ou conceções mentais. A religião, a arte, o desporto, o luxo, a ciência e a tecnologia são produtos da cultura.»
António José Saraiva. Cultura. (Lisboa: Difusão Cultural, 1993, p. 11)
Cultura
A cultura surgiu com o homem assim que aprendeu a falar e segue-o para todos os lugares onde ponha os pés. É o seu cartão de visita. Aquele que o diferencia dos restantes seres vivos. É a vontade subjetiva e voluntária de cada um de nós exercer em liberdade a sua identidade pessoal. Unitária. Aplica-se às pessoas tomadas isolada-mente, às marcas específicas que caraterizam um povo ou a um período particular do seu devir comum.

Civilização
A civilização surgiu com a cidade e é tendencialmente a melhor forma de gerir a cultura como um todo. O singular fez-se plural. A liberdade absoluta dos indivíduos sujeitou-se à liberdade relativa da socieda-deA práxis do estado de direito é estabelecida e fixada nas leis escri-tas que regem o dia-a-dia dos cidadãos. Coletiva. Adapta-se à realida-de objetiva do instante e rende-se à vontade dos tempos. Mantém-se o que está bem. Altera-se o que está mal.

Local & Global
A luta de galos, a caça à raposa, os gansos do fois-gras, as cobaias de laboratório, as corridas de touros e tutti quanti são formas assumi-das de cultura. Vias distintas de expressão humana. Goste-se ou não. Assim a guerra e paz. Verso e reverso duma moeda. O local e o global nem sempre se dão as mãosModos alternativos de civilização. Bons e maus. FatalmenteConduta, habilidade, ciência, talento, ofícioArte ancestral de ser e de agir dos povos.

13 de novembro de 2018

Os talantes de benfazer do Infante de Sagres e os talentos de os realizar...

Emblemática do Infante Dom Henrique
GOMES EANES DE ZURARA (c. 1410-1474?)
 «Frontispício» da Crónica dos feitos da Guiné (1453)
[Paris: Bibliothèque nationale de France - Ms. Portugais 41, 5v]
A CABEÇA DO GRIFO: O INFANTE D. HENRIQUE
Em seu trono entre o brilho das esferas, | Com seu manto de noite e solidão, | Tem aos pés o mar novo e as mortas eras — | O único imperador que tem, deveras, | O globo mundo em sua mão.
Fernando Pessoa, Mensagem (1934: I, v, 1)
     Talant de biẽ faire    

Dom Henrique é sem grande margem de dúvida o mais popular representante da Ínclita Geração de Altos Infantes, cantada por Luís de Camões n'Os Lusíadas (1572: IV, 50, 8), sendo também uma das figuras nacionais mais conhecidas além-fronteira. O Navegador lhe chamaram os historiadores alemães no Séc. XIX. Mais pelo fo-mento das viagens de descoberta de novas terras e novas gentes do que pelas travessias que tenha feito do Mar Oceano. Ter-se-á limitado a cruzar umas quantas vezes o estreito guardado pelas Colunas de Hércules e sempre que necessário o Mar da Palha formado pelas águas calmas do Tejo.

O quarto filho varão de Dom João Primeiro e de Dona Filipa de Lencastre, os fundadores da Dinastia de Avis, escolheu como alma da divisa o Talant de bien faire [= desejo de benfazer]. Terá sido inspi-rado pela cultura angevina da mãe, descendente dos Plantegenêt, que levaram para os domínios ingleses o francês como língua de corte. Pintou o emblema de azul, branco e negro, a simbolizar as fron-teiras infinitas do tudo e do nada. Associou esta paleta cromática ao verde dos ramos de carrasqueiro entrelaçados num anel, a apontar para a força generosa e invencível que permite a comunicação entre o céu e a terra.           

Essa ânsia de cometer grandes proezas foi largamente realizado ao longo da vida associando a palavra algo rara de talante com a mais comum nos nossos dias de talento ou capacidade de realização. Agraciado pelo pai com o título de Duque de Viseu, seria ainda Senhor da Covilhã, Donatário da Madeira, Mestre da Ordem de Cristo, Governador de Ceuta, Cavaleiro da Ordem da Jarreteira e Protetor da Universidade de Lisboa. Entre outras honrarias, avulta a de Infante de Sagres, promontorium sacrum do Reino do Algarve onde expirou a 13 de novembro de 1460. O mote da sua divisa pes-soal cumpria-se à letra.