31 de janeiro de 2018

Penelope Fitzgerald, o mundo dos livros, dos sonhos e das vicissitudes da vida numa livraria de aldeia

«A good book is the precious life-blood of a master-spirit, embalmed and treasured up on purpose to a life beyond life, and as such it must surely be a necessary commodity.»
Penelope Fitzgerald, The Bookshop (1978)
Gosto de livros que falem de livros. Dos bons e dos maus. De livros acerca de livros. Se tratarem de livrarias e de bibliotecas ainda melhor. Das fixas e das itinerantes. A referência a arte, cultura e literatura, a editores e leitores, a escritores e pensadores, a autores conhecidos e desconhecidos, a obras marcantes ou discretas, só enriquece o meu gosto pela escrita a cheirar a tinta, propiciadora duma metalinguagem de palavras que se desdobram sobre si mesmas. Penelope Fitzgerald consegue tudo isto e muito mais n'A livraria (1978), romance de época a visitar a nossa, com toda aquela frescura que só os textos de eleição conseguem lograr.

O argumento é fácil de traçar. Florence Green, uma viúva de meia-idade, resolve abrir a primeira e única livraria numa vila costeira do East Suffolk. História banal se nos ficássemos pelas linhas gerais e omitíssemos as entrelinhas. Se nos esquecêssemos de situar a ação em Hardborough (lugarejo difícil), no ambiente provinciano e conservador inglês de meados do século passado, balizado pelo início de 1959 e finais de 1960. Dois anos inteiros para inaugurar, gerir e encerrar as portas da Livraria Old House na Higt Street duma aldeola fictícia, imaginada para criar ilusões de verídico. Nada mais, nada menos. O entusiasmo inicial esfuma-se e o desalento final instala-se. A luta sem tréguas entre exterminadores e exterminados ocupa os dez capítulos do relato distribuídos por centena e meia de páginas. Romance breve com um final triste lhe terá chamado aquela que lhe deu vida para deleite de todos nós, independentemente dos trilhos de percurso convocados.

O stock de títulos disponíveis no novo estabelecimento é proporcional à importância e interesses dos seus potenciais visitantes. Predomi-nam os títulos de obras utilitárias ou de escoamento fácil, tais como os guias técnicos ou sobre a realeza e o SAS (Special Air Service), arrumados de acordo com a sua própria hierarquia social. Cada cor seu paladar. De ficção pura e dura é que haveria pouca ou nenhuma escolha nas prateleiras oferecidas ao público. A exceção é preen-chida com as notícias pormenorizadas da consulta de informações, encomenda dum lote de 250 exemplares e lançamento ousado duma edição da Lolita, de Vladimir Nabokov, publicada em 1955 e alvo das mais desencontradas críticas sobre o seu verdadeiro valor literário. O sucesso da iniciativa foi enorme os lucros da venda escrupulosamente anotados nos livros de deve e haver e de histórias contadas. Só na primeira semana, a caixa registou 82 libras, 10 xelins e 6 dinheiros, o que à data seria uma conta calada considerável. A sensação de prosperidade sentida pela retalhista é fugaz. A frente unida pela moral e bons costumes não deixaria de aproveitar esse incidente para pôr o tal ponto final no projeto.

O poder político de Mistress Gamart, proprietária da influente mansão The Stead  (O lugar), leva a melhor sobre o estatuto aristocrático de Mr. Brundish, proprietário da secular Holt House (Casa do Bosque | Covil da Fera), e o mundo dos livros, dos sonhos e das vicissitudes da vida numa livraria de aldeia encontra o seu ponto sem retorno ou desfecho que a protagonista a todo o custo tentou evitar. Na velha casa com meio milénio de existência ficou o inofensivo poltergeist residente, a que os locais se habituaram a chamar de rapper por se manifestar ruidosamente na casa de banho e no corredor do piso de cima. Sobre a concretização do intento de transformar o velho edifício de interesse público num Centro Cultural na povoação nada é dito no relato. É tratado como um não-assunto que a autora deixou em aberto à imaginação dos leitores. É que uma terra sem uma livraria é uma terra que não merece a pena ser referida nas páginas dum livro. É uma terra onde dificilmente se poderá falar de cultura.

26 de janeiro de 2018

Os mil cento e cinquenta anos da terra portucalense

Ceci n'est pas un pays

         CELEBRAÇÕES & DEPENDÊNCIAS          

Portugal começou o seu historial multissecular como uma presúria instalada no Porto, cidade acabada de conquistar aos muçulmanos em 868 por Vímara Peres. Afonso III das Astúrias confiou a Terra Portucalense a este vassalo galego, que a administrou como entidade distinta da Galécia com o título de Presor e Conde de Portucale. O primeiro Condado Portucalense acabava de ser fundado, faz um destes dias precisamente 1150 anos.

Iniciava-se também nesta data o processo de separação definitiva da antiga Portugália da Galiza (1128) e de Leão (1143). Os condes converteram-se em duques e o condado em reino. Tudo pela força das palavras e das armas. O reconhecimento de Afonso Henriques como rei e de Portugal como reino é oficializado pelo papa Alexandre II na bula Manifestis Probatum (1179). O país é retirado da órbita do Império Hispânico e colocado no da Santa Sé.

De independência se passou a falar a partir deste momento, como se o poder temporal de Roma se não continuasse a fazer sentir ao longo dos séculos no destino dos povos a si submetidos. Que o diga Sancho II, deposto pelo papa Inocêncio IV em 1246, a demonstrar a dependência efetiva da Coroa de Portugal da Tiara do Vigário de Cristo em todos os domínios da Respublica Christiana. Conceitos que mais tarde ou mais cedo teremos de rever.

Batalha de São Mamede 1128 - Net

22 de janeiro de 2018

Roberto Bolaño, sombras, desertos & enigmas dos detetives selvagens

«He sido cordialmente invitado a formar parte del realismo visceral. Por supuesto, he aceptado. No hubo ceremonia de iniciación. Mejor así.»
Roberto Bolaño, Los detectives salvajes (1998)
Os grandes marcos da criação literária assentam invariavelmente em motivos triviais traçados na mais perfeita simplicidade argumentativa. A cólera de Aquiles, a loucura do don Quijote, a magia do doutor Faus-to, o idealismo do rei Artur, a lascívia do don Juan inspiraram gerações de leitores ávidos de estímulos estéticos feitos de palavras ditas, des-ditas e reditas. Gilgamech persegue a imortalidade, Édipo conhece-se a si mesmo, Ulisses regressa a casa e vinga-se dos pretendentes de Penélope, Lazarilho tenta saciar a fome e singrar na vida, Romeu e Julieta perpetuam o amor que o destino lhes ajustou através da morte. Os exemplos podiam multiplicar-se até esgotarem os leitmotiv mais imitados pelas belas-letras universais. Umberto Eco exuma o segundo livro da Poética de Aristóteles numa biblioteca conventual com nome de rosa e entrega-o às chamas purificadoras dum incêndio providencial. José Saramago refaz a história do cerco de Lisboa com a mera troca dum sim por um não e problematiza o papel desempenhado pelos cruzados na conquista da cidade. Roberto Bolaño preenche as 600 páginas d'Os detectives selvagens (1998) com o rasto duma poetisa mexicana que publicou um único poema visual em toda a sua existência, feito com uma palavra, duas sílabas e três desenhos. Genial, apetece dizer.

Frequento o novelista chileno há relativamente pouco tempo. O boom editorial do 2666 foi o culpado. Por vezes, o ruído causado pelos bestsellers globais acaba por ser proveitoso. Não resistimos ao apelo publicitário e embarcamos na aventura peregrina da descoberta da obra-prima anunciada. Depois, damo-nos conta que a qualidade também pode conviver com a quantidade e passamos à exploração sistemática dos restantes títulos dos autores bafejados pelo sucesso, para que o prazer experimentado uma vez se volte a repetir ad æternum. Lidos os livros, a sensação que nos invade é a de que quem lê um lê todos. Curiosamente, fica-se com a vontade de ter um outro mais ali à mão, para recomeçar tudo de novo, à cata dum final decisivo para todas as histórias inacabadas que povoam cada um dos romances já publicados ou em vias de o serem. Pura ilusão. O segredo da escrita do arquiteto do infrarrealismo reside sobretudo no caráter lacunar dos relatos, na incapacidade de lhes dar um desfecho tranquilizador, porque cada um deles está ancorado na realidade quotidiana que nos envolve, modelo matricial de todos os heróis/anti-heróis imaginados pela ficção, até que a morte nos liberte e dê a possibilidade de vislumbrar a perfeição.

Juan García Madero ingressa no universo imagético do realismo visceral e regista nas páginas dum diário pessoal as impressões dessa experiência peculiar. Tem 17 anos e a vida toda pela frente. Fá-lo enquanto mexicano perdido na imensidade da capital do México, entre 2 de novembro e 31 de dezembro de 1975, e nos desertos de Sonora, entre 1 de janeiro e 15 de fevereiro de 1976. A balizar as efemérides documentadas nos dois períodos de espaço-tempo referidos, o leitor depara-se com 26 blocos de fragmentos narrativos, repartidos por 96 testemunhos individuais dispersos, proferidos nos quatro cantos do mundo, entre 1976 e 1996, por 53 personagens diferentes, a pedido dum número indeterminado de pesquisadores ou detetives selvagens. Nesses vinte anos de diligências ininterruptas, encontramos Arturo Belano e Ulisses Lima a rastrearem as pisadas da mítica Cesárea Tinajera e a serem também eles investigados, alternadamente, não se sabe muito bem por quem, por quê ou para quê. Sombras, desertos e enigmas selecionados a adensarem o conjunto de mistérios insondáveis, labirínticos, sinuosos que os microrrelatos coligidos nunca chegam a esclarecer cabalmente e que os leitores avisados deixaram de questionar ou se habituaram a ver como episódios soltos, isolados, singulares, expostos ao sabor da pena ou dos caprichos da fortuna.

Em síntese, trata-se de um extenso metadiscurso sobre a literatura latino-americana atual, uma sátira cerrada à república das letras e à sua relação utópica com a política, um olhar crítico à demanda assídua das portas do paraíso, aquelas que se abrem ao reconhecimento público almejado por todos os artistas e dão acesso aos passeios duma fama desejada e raras vezes alcançada. Bolaño aproveita a boleia e mergulha a fundo na fábula. Põe a máscara duma ou outra personagem e converte-se no detetive selvagem por excelência dos seus próprios percursos pelos domínios da escrita: aventureiro, andarilho, exilado, boémio, libertino, novelista e poeta. Ingredientes essenciais para dar sabor a uma vida breve e auspiciar sucesso a uma obra celebrada, paradigma de eternidade a muito poucos concedida, apanágio de seres privilegiados habituados a jogar às cartas com os deuses e a ganharem.

NOTA
De repente apeteceu-me voltar aos universos da escrita de Roberto Bolaño e trazer para este espaço as palavras que em tempos registei no Pátio de Letras sobre Os detetives selvagens. Tarefa pensada, tarefa efetuada.

17 de janeiro de 2018

As descobertas da América

Il planisfero di Cantino

[Biblioteca Estense di Modena - Itália - 1502]

DO ACHAR AO REVELAR

Ciclicamente surge no Facebook a notícia do Real Canadian Portu-guese Historical Museum de Toronto ter confirmado a descoberta da América por um português. Atribui-se ao navegador João Vaz Corte-Real, que terá chegado ao Novo Mundo em 1472, i.e., cerca de vinte anos antes de Cristóvão Colombo. Este feito está longe de ser reconhecido pelas academias históricas e científicas internacionais, que continuam a olhar com muita reserva para as alegadas provas encontradas pelos defensores da tese lusitana. A Pedra de Dighton, situada em Berkley nos EUA, continua um mistério que o tempo um dia talvez decifre a contento de todos.

Contam as sagas vikings ter Bjarni Herjólfsson vislumbrado em 986 uma terra a oeste da Grønland, a «Terra Verde» (Gronelândia). Uma tempestade impedi-o de ali aportar. Coube a Leif Eriksson a façanha de pisar em 1001 Helluland, a «Terra da Pedra Plana» (ilha de Baffin). Mais a sudoeste, avistaram Markland, a «Terra da Floresta» (Labrador), tendo acabado por desembarcar um pouco mais adiante em Vinland, a «Terra do Vinho» (Terra Nova), onde invernaram. O Canadá tinha sido achado. Só lhe faltava ser revelado ao mundo. A criação duma colónia nessa Nova Thul falhou e a descoberta nunca foi divulgada pelos escandinavos.

O verdadeiro descobridor oficial da América é e será sempre Cristó-vão Colombo, porque foi o primeiro a revelar ao mundo ter pisado terras até então desconhecidas. Pouco importa ter morrido com a convicção de ter chegado à Índia. Pouco importa saber se era genovês, castelhano ou português. Pouco importa que o continente passasse a ser conhecido como América e não Colômbia. Neste assunto, o florentino Américo Vespúcio demonstrou ser bem mais expedito nessa matéria do que todos os restantes navegadores que o antecederam na tarefa hercúlea de dar novos mundos ao mundo e de lhes dar um nome a condizer...    

11 de janeiro de 2018

Shūsaku Endō, do século cristão japonês à proibição e ao silêncio

『私は沈黙していたのではない。お前たちと共に苦しんでいたのだ. 弱いものが強いものよりも苦しまなかったと、誰が言えるのか?
遠藤 周作,沈黙(1966)
Uma história bem contada nas páginas dum livro costuma conduzir à sua transposição para os fotogramas duma película. Como se o sucesso editorial fosse o garante dum êxito de bilheteira. Às vezes a conjugação dessas duas componentes resulta em pleno. A leitura da obra escrita costuma também anteceder o visionamento da obra filmada. Por vezes a ordem dos fatores inverte-se. Foi a versão cinematográfica realizada pelo norte-americano Martin Scorsese do Silêncio (2016) que me levou à descoberta da versão escrita criada pelo japonês Shūsaku Endō do Silêncio (1966), meio século a separar estas duas representações complementares de factos históricos vividos na centúria de Seiscentos, já lá vão quatrocentos e tal anos.

A matéria selecionada pela reconstituição literária remonta aos primeiros tempos do Período Edo (1603-1868), aquele que isolou o Império do Sol Nascente do resto do mundo. A introdução do catolicismo no Oriente Nipónico, iniciada em 1549 pelo jesuíta basco Francisco Xavier, é posta em causa por Ieyasu Tokugawa (1543-1516), que em 1614 proclama o édito de expulsão dos missionários europeus e proíbe o Cristianismo em todo xongunato que havia fundado. A era das perseguições estava aberta. O martírio dos refratários e a apostasia dos resignados entram em cena. A veracidade desses casos de abjuração da fé evangélica e submissão às premissas da fé budista é questionada pelas autoridades eclesiásticas e os inquiridores oficiais da Igreja de Roma são enviados para o Japão. Ao padre Sebastião Rodrigues cumpriu precisamente o papel de averiguar, in loco, qual a atitude que o padre Cristóvão Ferreira havia tomado, quando fora obrigado a colocar-se ao lado dos resistentes ou dos renegados. Tarefa que nos será apresentada a várias vozes ao longo do relato, repartido por dez capítulos, completado na edição que tenho entre mãos por um Prefácio de William Johnston, da Universidade Sophia de Tóquio, e por um Apêndice final, extraído do «Diário de um funcionário da residência cristã». O fictício e o factual convocados pela fábula encarregam-se de nos dar uma resposta à verdade procurada pelas entidades narrativas envolvidas. 

Os anais históricos dizem-nos que os dois sacerdotes referidos tiveram uma existência real, tendo ambos apostatado e ficado retidos o resto dos seus dias naquele arquipélago longínquo do fim da terra, submetidos às leis civis e religiosas ali vigentes. Passaram a ser conhecidos como o apóstata Paulo e o apóstata Pedro. A nacionalidade portuguesa atribuída aos dois é que só pode ser imputada ao inquirido, visto o inquiridor ser afinal italiano de Palermo e chamar-se Giuseppe Chiara. A ficção vai um pouco mais longe e atribui-lhe ainda em vida o nome japonês de Okada San'emom e o budista de Muysen Joshim Shinshi já a título póstumo. O apostolado do último jesuíta chegava assim ao termo sem honra, nem glória. Ironia trágica a coroar um empreendimento que tinha tocado três continentes, a ligar Lisboa e Nagasaki, com passagem por Goa e Macau. O mensageiro da palavra de Cristo falha o seu propósito de converter os gentios e acaba convertido aos ditames de submissão que estes lhe impuseram. O terreno pantanoso visitado apresentou-se pouco propício à religiosidade europeia. É que nesse finisterra asiático nada transcende a natureza humana, tudo se resolve através do korobu, ou seja, na renúncia da fé pessoal que o ser humano tem de seguir para se tornar melhor.

Visto e revisto o filme, lido e relido o livro, sou incapaz de eleger uma versão em detrimento da outra. Completam-se. Cada uma à sua maneira remete-nos para dupla dimensão de sentir o silêncio, a que nos rodeia e a que vive dentro de nós. A  mensagem do romancista católico Paulo / Shūsaku Endō sugere-nos que o mais importante na comunicação não reside tanto no que dizemos em voz alta mas no que ouvimos em silêncio, sobretudo quando pretendemos estabelecer um contacto com o indizível, a que alguns identificam com Deus ou com a ideia que dele fazemos. Está em nós o poder de o aceitar ou de o recusar. De ouvir as respostas às perguntas que lhe fazemos mesmo quando se mantém calado. A fronteira entre os fortes e os fracos, os santos e os medíocres, os heróis e os cobardes desvanece-se. A inquisição japonesa de matriz budista pouca diferença faz da  inquisição portuguesa de matriz católica. São ambas iguais ainda que variem nos pormenores. Incapazes de sondar a verdade que habita no nosso silêncio. O ato de apostasia dos protagonistas torna-se irrelevante quando ao fazê-lo evitaram o sofrimento inútil dos seus seguidores. Perderam-se para a eclésia mas encontraram-se na paz da sua consciência. Ao pisaram em ato público o rosto de Cristo no fumie que o representava, abriram a possibilidade de contemplar a face daquele que fumie algum pode reproduzir, porque só se deixa ver com os olhos fechados. Se o silêncio de Deus é terrível, como alguns dizem, que dizer então do silêncio dos homens que o criaram à sua imagem e semelhança...

EPÍGRAFE
«Não estava em silêncio. Sofria a teu lado [...] Não há fortes nem fracos... Quem pode garantir que os fracos sofram menos do que os fortes?»
Shusaku Endo, Silêncio: Lx: D. Quixote, 2010 (Ⅹ, 261)

7 de janeiro de 2018

Ana Hatherly e o jardim feito de tinta

Conversas / Ana Hatherly e o Barroco

Museu Calouste Gulbenkian

(Lisboa: 13.10.17 - 15.01.18)


Encontrei-me um destes dias com a Ana Hatherly num jardim barroco feito de tinta. A professora de muitos saberes e mestre de muitas artes recebeu-me numa sala de exposições da Gulbenkian. Estava ladeada dum «Loom» (s.d.), por si esculpido em acrílico, e por uma «Transverberação de Santa Teresa» (1672), pintado a óleo sobre tela por Josefa de Óbidos, a demonstrar que no ato criativo a tradição e a inovação coabitam numa perenidade absoluta.

Conversámos com palavras desenhadas com pontas de feltro e verniz, tinta da china e spray, aguarela e lápis de cera, sobre papel, cartolina e madeira. Falámos de mil e uma coisas com o olhar atento de quem ouve histórias dos labirintos das dobras sobre dobras, dos tempos do jogo e da morte, das alegorias da folia e da interpretação, das metamorfoses do diálogo oblíquo entre a poesia e a pintura. Diálogos antigos convocados ao sabor da imaginação.

Ana Hatherly - Romãs (1971-1972)

2 de janeiro de 2018

Crónica invernal duma fartura de feira

   FARTURAS  DE  FEIRA   

Cobertas com açúcar e canela


O rescaldo de Natal é feito com uma memória muito viva das guloseimas próprias da época, sobretudo daquelas que passam pela fritura em azeite e são depois polvilhadas com açúcar e canela. As filhós em casa e as farturas na rua.

Os mercados natalícios propõem-nos ainda os churros à portuguesa (simples ou recheados) e os malacuecos à algarvia (redondos e achatados). Só falta acompanhar os primeiros com chocolate quente e os segundos com um café bem tirado.

A quadra já toca a reta final com o bolo-rei a acenar nas vitrinas das pastelarias. Vai reinar em ambiente republicano até ao Dia de Reis. Só as farturas de feira, cobertas com açúcar e canela, durarão o ano inteiro. Quentinhas. Faça calor ou faça frio.