27 de abril de 2018

Uma história de vida contada em livro


   HISTÓRIAS DA CAROCHINHA COM RATOS E TARTARUGAS   

O meu amigo Roger R tem uma imaginação prodigiosa. Na minha primeira visita a França, ele e a Annie R receberam-me a mim e à minha cara-metade na casa de veraneio que tinham no porto bretão de Saint-Malo, na Côte d'Émeraude. Decorria a década de 70, éramos todos jovens e estávamos de férias. Os meus anfitriões já pertenciam à geração dos pais. Tinham um casal na casa dos 4-6 anos de idade. A Anne R e o David R. Nós, casados de fresco, não tínhamos ainda enveredado por esse patamar parental. Pois!

A presença de dois portugueses no ambiente familiar descontraído de julho-agosto foi encarado como uma verdadeira aventura cheia de mistérios insondáveis à procura de respostas convincentes, que o pai lá lhes foi dando no decorrer dos meses e anos seguintes. Os dois visitantes passaram a protagonistas exóticos de histórias sem fim que todas as noites lhes eram contadas. Transformaram-se nos ratinhos Arthur et Clémentine, glob-trotters e detetives de infatigável desvelo. Um lobby com qualquer outro. Voilà !

Década vem, década vai, a fama das historietas pularam fronteiras. Já foram contadas aos netos irlandeses e alemães do meu amigo Roger R. Ainda se arriscam a ser adaptados à realidade algarvia do meu neto luso-viking. Depois de vencerem a Mancha e o Reno, saltaram os Alpes e chegaram a paragens italianas. Adela Turin fez dos ratinhos tartarugas, alojou-os num livro ilustrado por Nelle Bosnia e manteve o título apelativo de Arturo e Clementina. E assim se vai fabulando com palavras ditas e escritas. Ecco! 


23 de abril de 2018

Markus Zusak: a rapariga que roubava livros para dar vida às palavras que ali jaziam

«She saw it but didn’t realize until later, when all the stories came together. She didn’t see him watching as he played, having no idea that Hans Hubermann’s accordion was a story. In the times ahead, that story would arrive at 33 Himmel Street in the early hours of morning, wearing ruffled shoulders and a shivering jacket. It would carry a suitcase, a book, and two questions. A story. Story after story. Story within story.»
Markus Zusak, The Book Thief (2005)
Descobri as histórias dentro da história reveladas no livro que a Morte encontrou perdido num carro de lixo na tela gigante dum cinema. Janela aberta para os percursos de vida traçados na meia dúzia de anos em que a Segunda Guerra Mundial andou por à solta a semear destruição pelos quatro cantos da terra. A ação decorre em Molching, um subúrbio de Munique, com atuações centradas na rua Himmel, topónimo que o autor se apressa a traduzir por Céu. História após história, vamos tendo notícia dos dramas que o III Reich produziu dentro e fora das fronteiras dum império que pretendia milenar. Os atores são germânicos, seres humanos que aprenderam a odiar o nazismo, ainda que a filiação no partido da suástica fosse a única forma disponível de sobreviver à catástrofe. Ironia trágica a que poucos escaparam. As histórias que dão corpo à história foram contadas em forma de romance por Markus Zusak, nA rapariga que roubava livros (2005), bestseller global delineado a partir das memórias que os pais do jovem escritor australiano, um austríaco e uma alemã, guardaram desses tempos agitados que assolaram os seus países natais a ferro e fogo e os reduziram inexoravelmente a cinzas. 

O fascínio da escrita chegou-me assim que regressei a casa. Resgatei um exemplar do ostracismo a que uma capa pouco apelativa o condenara. Uma dança macabra executada por duas figuras femininas, riscada entre frases publicitárias, tirou-me o apetite de imergir no seu interior e de verificar a licitude das laudas tecidas pela crítica jornalística anglo-americana de grande tiragem, para adjetivar as qualidades exigidas por uma obra-prima. Brilhante, absorvente, marcante, soberba, extraordinária, clássica. Como sou pouco dado aos elogios duvidosos dos editores, limito-me a confirmar a excelência da fábula. O encontro a posteriori com as palavras feitas para serem lidas revelou-me a parte oculta do iceberg, aquela que a economia discursiva da película afastara do grande ecrã. A tessitura romanesca permite-nos identificar a verdadeira dimensão duma calamidade planetária, reunida num conjunto restrito de testemunhos pontuais dos factos relatados. Dão pelo nome de Liesel, Hans e Rosa. Referem-se à menina que roubava livros para dar vida às palavras que ali viviam encerradas e aos pais adotivos que a acolheram num momento em que os afetos andavam um pouco afastados da realidade quotidiana. Um pintor alemão que tocava acordeão e uma mulher com pulso de ferro que engomava para fora. Uma família nuclear rodeada doutras famílias nucleares. Um vislumbre de paz num horizonte de guerra. 

De entre os títulos restituídos pela heroína ao convívio dos leitores, encontra-se um dicionário de língua alemã. A mancha gráfica que corpo ao texto regista uma série de vocábulos que nos ajudam a entender a mensagem subliminar que atravessa o relato. Felicidade, perdão, medo, palavra, oportunidade, desgraça, silêncio, pesar. O discurso metalinguístico multiplica os termos arrolados por um número considerável de possibilidades alternativas. Em nenhum caso aparece explicitado o conceito de amizade. Este terá de ser encontrado nas relações pessoais que traçam os destinos cruzados das personagens. A da bibliotecária de livros furtados repartida pelo pugilista judeu, que os pais haviam acolhido secretamente na cave lá de casa, e pelo jovem ariano colega de escola e brincadeiras, que vivia paredes meias na casa ao lado da sua. O apego incondicional pelos labirintos da criação artística leva o primeiro a oferecer-lhe O homem debruçado e a dedicar-lhe A sacudidora de palavras: uma autobiografia contada com imagens legendadas e uma biografia alegórica ideada como uma coleção de pensamentos ilustrados. O segundo limita-se a acompanhá-la até à mansão do presidente da câmara, onde uma imensa sala forrada de livros lhe vai dando ânimo para enfrentar as incertezas do dia-a-dia e a inspirará para registar o seu percurso de vida. Fê-lo no livro preto que a ceifadora de vidas salvara dos escombros dum bombardeamento e adaptou depois para a posteridade com o título do livro que temos entre mãos. 

Lidos os livros que compõem a história da rapariga que roubava livros, apercebemo-nos de como a morte por vezes se deixa condoer pela sorte dos vivos, outorgando a alguns a roupagem própria dos heróis, aqueles que moram na memória dos sobreviventes por períodos de tempo mais ou menos longos. Na república das letras, as críticas passam e as obras ficam. A fama alcançada por Markus Zusak nas páginas dum livro e nos fotogramas dum filme só passará da esfera da efemeridade para a da perenidade se o público leitor assim o entender. Só assim os heróis da imaginação poderão aspirar à companhia das Musas que habitam as alturas do Parnaso. Assim dizem os Poetas, assim repetem os Homens. Uns e outros a darem jus ao seu ancestral anseio de infinito.

NOTA
Texto originalmente publicado no Pátio de Letras há cerca de quatro anos e trazido agora para este espaço de leituras e escritas, na data em que se comemora o Dia Mundial do Livro, por se tratar dum livro que fala de livros como poucos o conseguem fazer.  

19 de abril de 2018

Richard Zimler e a descoberta dos manuscritos do último cabalista de Lisboa

«Bruheem kol demuyay eloha! Blessed are all of God’s self-portraits!»
Richard Zimler, The Last Kabbalis of Lisbon (1996)
Uma das técnicas mais estafadas dos romances históricos consiste no encontro casual dum manuscrito de inestimável valor documental para a compreensão duma época pretérita, perdido num qualquer recanto deste mundo, à espera dum feliz e providencial descobridor. Para aumentar a expectativa e aguçar o interesse pelo enredo, é também costume associar ao relato uma bem urdida teia policial, de modo a prender o leitor aos mistérios dum crime cometido à distância de séculos e cuja resolução é sabiamente retardada da primeira à última página postas à sua inteira disposição. Sempre achei esta prática assaz desconfortável. Sobretudo quando o autor real do livro se tenta confundir com o narrador concreto da efabulação, deixando-me incapaz de destrinçar a fronteira exata entre o factual e o fictício.

Richard Zimler deixou-se apanhar por esse subterfúgio romântico e aplica-o sabiamente n’O último cabalista de Lisboa (1996). Institui-se, de uma assentada, em achador, tradutor e editor oficial dum texto perdido ou esquecido nas brumas do tempo. Incrementa o efeito de verosimilhança com uma nota introdutória de autor e outra histórica, um bem documentado glossário de termos hebraicos utilizados e um inevitável prólogo esclarecedor dos contextos envolvidos. Só depois de cumprido este cerimonial canonizado pelo género é que oferece o produto final aos potenciais apreciadores de dramas alheios. O sucesso estava garantido. Do dia para a noite, converteu-se num bem logrado e celebrado bestseller internacional.

Deixados para trás os supostos aparatos críticos e folheados os três livros constitutivos da obra resgatada, somos conduzidos, num ápice, aos escritos de Berequias Zarco. Compostos ao longo de 23 anos, no exílio otomano de Constantinopla, a memória seletiva do protagonista acaba por se concentrar numa única semana, aquela que se tornou tristemente célebre pelo Massacre de Lisboa. O calendário gregoriano datará a efeméride sangrenta a 19 de abril de 1506, um domingo de Páscoa, dia em que a cristandade celebrava ecumenicamente a Ressurreição do Senhor, a vitória da vida sobre a morte. A seca, a peste e a fome, que grassavam na capital do império, terá estado na origem do motim, levando o fanatismo religioso vigente na época a acossar, violentar e assassinar centenas de vítimas inocentes, sob o pretexto de judaizarem em segredo e de serem, por conseguinte, os únicos causadores dessas calamidades públicas. Tudo isto no tempo d’el-Rei D. Manuel I, o Venturoso, o Afortunado, o Grande...

O manuscrito quinhentista do último cabalista de Lisboa é também um livro que nos fala doutros livros. Secretos, proibidos, enigmáticos. De livros misteriosos, tecidos com linguagens cifradas, que só os iniciados na arte cabalística terão a capacidade de decifrar. Fala-nos de tráfico de livros. Sagrados para uns, malditos para outros. Fala-nos duma Haggada muito especial. Não só por descrever os ritos cerimoniais dos festejos da Páscoa hebraica, ou passagem, mas por ter sido pintada por Abraão Zarco, tio e mestre do narrador. Por ter sido roubada da geniza, o local oculto onde fora posto a salvo de olhares indiscretos. Por estar ligada a um conjunto de homicídios em série que constituem o núcleo policial do romance. Especial, também, porque no final da investigação revelará o rosto do assassino do mentor espiritual de Berequias Zarco. Sem disfarces, sem máscaras, sem mistérios. Ironia trágica por excelência de toda a fábula.

Bem-vistas as coisas e lidos os livros, Umberto Eco já imaginara um esquema afim n’O nome da rosa (1980). Só que os labirintos da biblioteca da velha abadia beneditina dão lugar às caves e ruelas labirínticas da Pequena Jerusalém lisboeta. O ambiente medieval italiano é substituído pelo ambiente renascentista português. Aristóteles é sacrificado a Platão. Em entrevista à revista Ler de novembro de 2009, Zimler confidencia que se alguma dos seus livros fosse transformado em filme por um realizador da galáxia de Hollywood, gostaria de o confiar a Steven Spielberg. O último cabalista de Lisboa seria a escolha adequada. Quem sabe se, um dia destes, o sonho não se concretiza e não o veremos projetado num qualquer cinema perto de casa.

NOTA 
Trazido do Pátio de Letras para este espaço no dia em que se celebram 512 anos sobre o Massacre de Lisboa. Que a leitura do texto nos leve a pensar na efeméride e acautelar a que episódios semelhantes estejam definitivamente enterrados no tempo.   

13 de abril de 2018

A rádio, a televisão, o mundo virtual, a ponta do prego e a saída dum saco...

POSTAL
Ana Hatherly
«O poeta imaginado: ou como ele é imaginado pelos outros»
Londres, Junho Ana 72

[Fundação Calouste Gulbenkian] 
Há dias visionei por acaso uma entrevista conduzida por Ana Sousa Dias a Ana Hatherly. Passou na RTP2 a 8 de março de 2004 integrada no programa «Por outro lado IV» e encontra-se disponível nos arquivos da estação. O Facebook por vezes também nos surpreende pela positiva na capacidade de levar a todos os lados os conteúdos que nos contam histórias exemplares de vida e morte.

Palavra puxa palavra, as ditas e as por dizer, e veio-me à memória um desafio que a Radio Comercial divulgou há tempos nas ondas hertzianas baseado no Global Teacher Prize, no intuito de eleger o melhor professor ou aquele que mais nos teria inspirado. Soube da iniciativa, mais uma vez, através do livro das caras e do blogue da escola preparatória e secundária por onde andei in illo tempore.

Tive algum pudor em destacar um professor entre tantos que fui tendo e ainda tenho. Deixei cair o repto mediático e pulei em frente. As lições da minha mestre nos labirintos barrocos dos sentidos e do sentido deram-me a resposta desejada que aqui revelo, sem a sujeitar a certames virtuais que o poeta dispensa. Até porque a criatividade é como um prego num saco, a ponta acaba sempre por aparecer...

8 de abril de 2018

Antonio Tabucchi, um requiem italiano entoado em português

«…hoje é um dia muito estranho para mim, estou a sonhar mas parece-me ser realidade e tenho de encontrar umas pessoas que só existem na minha lembrança.»
Antonio Tabucchi, Requiem – uma alucinação (1991)
Comprei o Requiem – uma alucinação (1991) de Antonio Tabucchi mal foi publicado, com o firme propósito de o ler mal chegasse a casa. A circunstância de ter sido escrito diretamente em português por um italiano abrira-me ato contínuo o apetite de entrar no seu interior e de desvendar os seus mistérios mais secretos, aqueles que todas as obras de arte carregam consigo, à espera que os visitantes mais audazes tenham tanta habilidade para os deslindar quanta os seus arquitetos tiveram para os idear. Só cumpri este intento passados 21 anos. A marcha imparável do tempo e os caprichos imponderáveis do dia a dia impediram-me de cumprir esse desejo de imediato. A morte do autor anunciada nos mass media recordou-me que já estava em dívida para com ele há uma eternidade. O romance, composto em forma de missa de defuntos e ilustrado com um fragmento d’As tentações de Santo Antão de Hyeronimus Bosch, saiu enfim da prateleira dos livros esquecidos e das leituras adiadas e começou a desfiar o seu rosário de preces encomendadas às almas dos entes convocados pela fábula, em nove etapas, tantas quantas as partes eclesiásticas consagradas pelo género litúrgico que o enforma e inspira.

A obra até seria difícil de integrar satisfatoriamente numa categoria literária precisa e regularizada pelos cânones tradicionais, se não se desse o caso providencial de a instância narrativa, prevendo as dificuldades sentidas pelos leitores mais inexperientes nestas lides das letras, a ter colocado na órbita imediata do insólito, na fronteira dicotómica do real/imaginário, espaço psíquico em que o desvario caótico da alucinação e a fantasia episódica do sonho tomam conta do discurso e o transformam numa sonata de palavras pensadas com cadência musical e entoadas com precisão poética. A plausibilidade factual do relato fica garantida, dado que dentro e fora das páginas que o abrigam nada de sobrenatural aconteceu, apesar da sensação de estranheza com que ficamos ao percorrer a romaria do protagonista pelos trilhos das lembranças perdidas. Tudo se explica através da capacidade inata que todos nós temos de forjar mundos alternativos do faz-de-conta. Assim a saibamos alimentar e acarinhar.

A ação decorre num escaldante domingo de verão, o último do mês de julho dum qualquer ano do final da década de 80, quando Mário Soares presidia de maneira peculiar aos destinos da república. O Eu narrador e alter ego do autor achava-se numa quinta de Azeitão a ler à sombra duma amoreira O livro do desassossego de Bernardo Soares, quando é atacado pelos fantasmas da memória e se vê levado, por artes de berliques e berloques, para o centro de Lisboa. A tranquilidade bucólica é substituída pelo bulício urbano e a aventura dos diálogos da vida e da morte entra em palco, para as necessárias permutas de tempo e inadiáveis ajustes de contas com a história. Segue-se uma acabada galeria de tipos disposta à boa maneira vicentina da trilogia das barcas. A ribalta dos encontros fortuitos e dos planeados desloca-se, ao sabor da maré, para os cenários do cemitério dos Prazeres, de vários restaurantes citadinos, uma pensão de bairro, o museu das Janelas Verdes e um comboio da linha de Cascais, espaçados pelas calçadas, ruas, praças, largos e avenidas que os estreitam entre si.

A última etapa da peregrinação onírica dá-se em Alcântara com Fernando Pessoa. Os ecos d’O ano da Morte de Ricardo Reis (1984) de José Saramago são audíveis desde o início deste requiem novelesco. Só muda o relevo dado aos heterónimos evocados e a frequência dos encontros relatados. A conversa toma a forma dum simpósio e é travada em português e inglês, os dois idiomas que acompanharam o poeta ao longo da sua existência. Os assuntos abordados são medianamente banais e centram-se nos desassossegos verdadeiros e fingidos vividos pelos dois no ato da criação literária. Intersecionismos, futurismos e saudosismos são aflorados mas esbarram com as vanguardas pós-modernas desconhecidas pelo inventor da primeira modernidade. O jantar chega ao fim e com ele a matéria que alimentara até então o relato. Cada um dos convivas parte para o seu mundo sem direito a despedidas. O sonho-alucinação chegara ao fim. Lisboa fica para trás e Azeitão volta a perfilar-se no horizonte do sonhador-alucinado. Entre um espaço e outro, fica a homenagem de Tabucchi à cultura portuguesa e à língua que lhe dá voz e sentido. Prestemos-lhe nós também o preito que merece e mergulhemos nas águas profundas dos seus escritos, na dádiva dos silêncios partilhados e dos afetos confessados.

NOTA
Publiquei este texto no Pátio de Letras faz hoje há precisamente 6 anos. Trago-o agora para este espaço com algumas pequenas alterações de pormenor. Faço-o como forma pessoal de me associar à homenagem que em boa hora a Fundação Calouste Gulbenkian vai dedicar a Antonio Tabucchi, a fim de assinalar a morte do homem da cultura italiana que um dia se apaixonou pela cultura portuguesa e nela passou também a viver.

3 de abril de 2018

D'immenso giubilo s'innalzi un grido...

OPERA LYRA POST

CORO
D'immenso giubilo | S'innalzi un grido: | Corra la Scozia | Di lido in lido; | E avverta i perfidi | Nostri nemici, | Che a noi sorridono | Le stelle ancor. | Che più terribili, | Che più felici | Ne rende l'aura | d'alto favor.
Donizetti, Lucia di Lammermoor, 1835 (III, iii)
Primo atto: radio
Ouvi pela primeira vez cantar na íntegra uma ópera nos finais dos anos 60. Essa oportunidade foi-me dada pela Emissora Nacional 2, que à época fazia transmissões diretas do São Carlos, comentada pela crítica musical Maria Helena de Freitas. Coube-me nessa noite a Lucia di Lammermoor (1835), composta por Gaetano Donizetti com libreto de Salvadore Cammarano, baseada no romance histórico de Walter Scott, The Bride of Lammermoor (1819). Fi-lo noite adentro com a ajuda dum pequeno rádio de pilhas e duns auscultadores minúsculos. E é tudo o que a memória guardou desse debutto all'opera in musica.

Secondo atto: teatro
Na década de 70, a fortuna brindou-me  com a dádiva de trocar as ondas hertzianas da telefonia sem fios pelos palcos de teatro de Lisboa. Substitui as estreias aristocráticas das companhias italianas do Teatro Nacional pelas récitas populares levadas à cena no Coliseu dos Recreios. Os tempos não davam para mais. Ainda tive a sorte de assistir a algumas produções da Companhia Portuguesa de Ópera no Trindade e a uma Antología de la Zarzuela no Tivoli integrada numa Semana de España em Lisboa. O que nunca cheguei a ver foi uma encenação ao vivo e a cores da Lucia de Lammermoor do Gaetano Donizetti.             

Terzo atto: coro
A televisão, os discos e a Internet supriram em parte a inexistência quase absoluta de espetáculos de ópera fora da capital. Meio século passado, a situação poucas alterações sofreu. Outros valores mais altos se levantam neste conturbado início de milénio. Se a montanha não vai a Maomé, vai Maomé à montanha.  Diz-se. Reencontrei-me há uns escassos quatro meses com a Lucia de Lammermor de Gatetano Donizetti no Grupo Coral da Universidade do Algarve. Estreei-me nestas andanças de tenor no «D'immenso giubilo», sempre à espera que nestas novas andanças pelo bel canto, a voz nunca me doa. Ecco!