21 de maio de 2018

Os amores e aventuras de Quéreas e Calírroe segundo Cáriton de Afrodísias

«Χαρίτων Ἀφροδισιεύς, Ἀθηναγόρου τοῦ ῥήτορος ὑπογραφεύς, πάθος ἐρωτικὸν ἐν Συρακούσαις γενόμενον διηγήσομαι. Ἑρμοκράτης, ὁ Συρακουσίων στρατηγός, οὗτος ὁ νικήσας Ἀθηναίους, εἶχε θυγατέρα Καλλιρρόην τοὔνομα, θαυμαστόν τιχρῆμα παρθένου καὶ ἄγαλμα τῆς ὅλης Σικελίας: ἦν γὰρ τὸ κάλλος οὐκἀνθρώπινον ἀλλὰ θεῖον, οὐδὲ Νηρηίδος ἢ Νύμφης τῶν ὀρειῶν ἀλλ̓ αὐτῆςἈφροδίτης. Φήμη δὲ τοῦ παραδόξου θεάματος πανταχοῦ διέτρεχε καὶ μνηστῆρεςκατέρρεον εἰς Συρακούσας, δυνασταί τε καὶ παῖδες τυράννων, οὐκ ἐκ Σικελίας μόνον, ἀλλὰ καὶ ἐξ Ἰταλίας καὶ Ἠπείρου καὶ νήσων τῶν ἐν Ἠπείρῳ. Ὁ δ̓ Ἔρωςζεῦγος ἴδιον ἠθέλησε συμπλέξαι. Χαιρέας γάρ τις ἦν μειράκιον εὔμορφον, πάντων ὑπερέχον, οἷον Ἀχιλλέα καὶ Νιρέα καὶ Ἱππόλυτον καὶ Ἀλκιβιάδην πλάσται καὶγραφεῖς δεικνύουσι, πατρὸς Ἀρίστωνος, τὰ δεύτερα ἐν Συρακούσαις μετὰ Ἑρμοκράτην φερομένου.» 
Χαρίτωνος Ἀφροδισεύς, Tῶν περί Χαιρεαν καί Καλλιρροην (Séc. I EC)
Tornou-se um lugar-comum afirmar que a criação do romance realista se deve a Miguel de Cervantes, com o Dom Quixote (1605 e 1615), e a do histórico a Walter Scott, com o Waverley (1814). Se nos restringirmos às mais recentes produções narrativas, até podemos aceitar como razoável a indicação algo simplista de marcarem o início simbólico da diegese moderna. Este exercício poderia alargar-se, depois, a outras modalidades, com a indicação de obras tão populares como a do ficcionista castelhano barroco ou tão esquecidas como a do ficcionista escocês romântico. Não vou enveredar por aí. Prefiro falar no mais antigo relato de amores e aventuras peregrinas conservado. Trata-se do Quéreas e Calírroe, composto em grego helenístico da Cária por Cáriton de Afrodísias, nos alvores da era comum. Acabei de o reler pela enésima vez e de o comentar num contexto académico de cultura literária.

Para começar, seria também injusto considerá-lo como o fundador absoluto do género. Para obtermos uma certidão de nascimento verosímil, teremos de recuar pelo menos uns duzentos ou mais anos, até chegarmos aos fragmentos papíreos que os contêm. Ignoramos os nomes dos autores e os títulos exatos das obras, bem como da totalidade dos espaços-tempos onde decorrem alguns dos episódios centrais-laterais conservados ou, mesmo, a identidade precisa de um que outro interveniente na ação. Apercebemo-nos, todavia, fazerem parte dum corpus específico de histórias imaginadas como se fossem reais. Baseiam-se todas nos sucessos vividos por um jovem e fiel par de enamorados, repartidos por uma estrutura sequencial tripartida: encontro-desencontro-reencontro. Por outras palavras. Apaixonam-se ao primeiro olhar, são separados pela força das circunstâncias e conquistam o direito a um final feliz, depois de terem superado com sucesso todos os obstáculos e provas que encontraram pelo caminho.

Duma assentada, os inventores absolutos da prosa poética antiga lançaram as pistas de muitos dos subgéneros do mythos, diegema, historia, drama ou plasma, termos gregos usados na passagem do período alexandrino para o romano, também conhecidos com as designações alternativas de crónicas, livros, contos, novelas, compêndios e aventuras. Durante meio milénio, estes testemunhos escritos dos ritos de passagem da adolescência para a maturidade conheceram uma popularidade fulgurante, que a poesia integral não conseguiu acompanhar. Depois, os alvores da medievalidade cristã condená-los-iam ao mais completo ostracismo. Só os movimentos renascentistas observados a montante e jusante os livrariam do apagamento total e lhes deram um novo alento. Assim foi na Bizâncio dos Comnenos (Séc. XII) e na Itália dos Mecenas (Séc. XVI). O grego é substituído pelos vernáculos europeus, entre os quais se encontra o português. Assistia-se nessas centúrias douradas ao triunfo definitivo do romance como expressão matricial incontestada de arte-maior.

Se o biógrafo castelhano das desventuras do Cavaleiro da Triste Figura tivesse lido as aventuras dos dois andarilhos siracusanos, com certeza os teria poupado da razia a que votou grande parte dos volumes residentes na biblioteca manchega do fidalgo de meia idade chamado Quijada, Quesada ou Quejana. É que à semelhança do Amadis de Gaula, do Palmeirim de Inglaterra ou de La Diana, também este Quéreas e Calírroe se situa num patamar de excelência só ocupado pelas obras-primas ou fundadoras da República das Letras, sediada lá para os lados do Monte Parnaso, residência de Apolo e das nove Musas, local privilegiado para os ibéricos Garcia Rodríguez de Montalvo, Francisco de Morais e Jorge de Montemor trocarem uma animada cavaqueira com o helénico Cáriton de Afrodísias. Falarem no enquadramento histórico da fábula, no caso de amor documentado, na temática passional desenvolvida, nas viagens de separação e salvação encetadas, no proveito e deleite da leitura, apanágio de toda a Literatura que merece ser registada com letra maiúscula ou capital. Αυτό είναι ένα βιβλίο!


3 comentários:

  1. Que interessante enquadramento histórico-literário do romance, Prof!

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  2. José Manuel Moreira Cláudio22 de maio de 2018 às 08:07

    Um texto muito interessante que me fez despertar o interesse pelos começos do 'romance' que, confesso, desconhecia.

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  3. Foi bom reler o texto, Prof., que me reaviveu o interesse para ler o romance!

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