5 de agosto de 2017

Ana Hatherly, o Mestre e a Discípula que andava à procura da Alegria

«O Mestre é um homem que aparece. Está-se sempre a rir e ri de tudo, mas diz: há coisas que a gente não deve querer. Em francês soava melhor: il y a des choses qu'il ne faut pas vouloir. [...] Porém a Discípula não gostava de rir nem tão pouco de chorar e é por isso que andava à procura da Alegria, já que essa devia excluir o riso e o choro.»
Ana Hatherly, O Mestre (1963)
Tenho entre mãos a versão definitiva do texto de estreia de Ana Hatherly na ficção, O Mestre (1963), dado à estampa pela Ulisseia-Babel em 1910. Li-o dum jato. Para trás ficaram os inúmeros prefácios, posfácios e comentários que acompanham esta 5.ª edição da novela. A introdução da autora e as leituras de Maria Alzira Seixo, Silvina Rodrigues Lopes, Simone Pinto Monteiro de Oliveira e José Carlos Barcellos ficaram para o fim. Com todo o respeito que esses nomes mais ou menos sonantes da crítica portuguesa e brasileira me merecem, reservei-me o privilégio de descobrir em primeira mão todos os meandros do relato sem interferências contaminantes de terceiros.

Lido e relido o livro em todas as suas componentes constitutivas, apercebi-me que os mestres d'O Mestre já disseram tudo ou quase tudo sobre as histórias do Mestre e da Discípula. Pouco ou nada terá ficado por dizer. Deixemos essas demonstrações do saber académico nos espaços impressos que lhe foram dedicados. Apetece, em contrapartida, pegar nos considerandos que a criadora disse sobre a obra criada. Ouvi-la através das palavras escritas foi como se a tivesse a ouvir de novo com as palavras ditas no período de tempo em que eu fui o discípulo e ela a mestre. Já me referi a esse momento decisivo da minha formação e fico-me portanto por aí no que ao assunto toca, o de Ana Hatherly entre os mestres...

Diz a mestre de mais duma década ao discípulo de escritas barrocas, de errâncias pícaras e bizantinas, caberem os diálogos-monólogos travados nessa invenção de situações verosímeis na categoria do realismo direto simbólico, centrado na dificuldade da comunicação humana. Afirma tê-lo feito sem recorrer aos expedientes usuais dos relatos surrealistas. Quem sou eu para duvidar. Agrega noutro passo da autointerpretação dos factos narrados tratar-se duma digressão programática pelos meandros do experimentalismo, movimento que dominaria o seu trabalho nas décadas de 60 e 70. Confessa depois, a concluir, entender toda a malha discursiva da fábula como uma máscara de si mesma. Discípula e mestre. Nem mais nem menos.

A voz que obscurece da Autora cala-se e cede a palavra ao Leitor para encontrar a Lição que ilumine os sentidos convocados pela Obra. Descobrir a tal Alegria que a Discípula procurava no Mestre. Só assim se entenderá. Os dez capítulos de fragmentos compostos em dez dias aí estão a desafiar a capacidade interpretativa de todos nós. Em termos pessoais, direi que o Mestre do romance curto ou conto longo não é a mestre que conheci na década de 90. Pelas mesmas razões, o discípulo da vida real não se confunde com a Discípula da vida imaginada nas páginas duma novela de filiação genérica imprecisa. É que os mestres e discípulos da Vida não se podem confundir com os mestres e discípulos dos Livros...

Arcádia (1963); Moraes (1976); Quimera (1995); 7 Letras (2006)

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