27 de dezembro de 2017

A chaminé

AMADEO DE SOUZA-CARDOSO

«Cozinha da casa de Manhufe»

[Fundação Calouste Gulbenkian - 1913]

O sapatinho do Menino Jesus & a bota do Pai Natal

A chaminé é por definição o local onde se faz o lume. Espaço privilegiado entre todos os demais. O centro da casa. O lugar onde vive o fogo e onde com ele se convive todo o ano. Instalada na cozinha, simboliza o lar e a família que o acende e lhe dá vida.

A chaminé foi em tempos idos o recanto mais desejado da casa. Sobretudo nos momentos das grandes festividades. A consoada da minha meninice fazia-se à roda da grande mesa da cozinha. Junto ao fogão aceso de onde saíam as filhós acabadinhas de fritar.

A chaminé era nessas ocasiões especiais uma fonte inesgotável de calor e de alegria. O Menino Jesus visitá-la-ia durante essa noite natalícia com os presentes que nos traria. Púnhamos os sapatinhos lá bem no centro e esperávamos que a manhã chegasse cedo.

A chaminé foi agora substituída por um exaustor. O sapatinho de calçar virou bota de pendurar. Os presentes são abertos à meia-noite. Vai-se para a cama de madrugada. Os papéis seguem para o lixo no dia de Natal. E a festa continua até ao Ano Novo e Reis.

20 de dezembro de 2017

Vinde, fiéis, alegres e triunfantes...

JOSEFA D'ÓBIDOS

«O Menino Jesus Salvador do Mundo»

[Igreja Matriz de Cascais - 1673]

   Adeste, fideles, læti triumphantes...   

A minha canção preferida de Natal é habitualmente cantada em latim mas há também quem o faça em inglês. Nunca a ouvi interpretada em português, muito embora se diga ter sido composta por Dom João IV (1604-1656), o Rei-Músico. Na ausência de qualquer tipo de documento autógrafo a atestar esta convicção tradicional, alega-se ter existido em tempos uma partitura do Adeste Fideles no Paço Ducal de Vila Viçosa entretanto desaparecida.

A real autoria da composição está longe de colher a aceitação geral dos eruditos. Tudo leva a crer que se deva a um autor anónimo cuja nacionalidade se desconhece. Por vezes aponta-se o nome de John Francis Wade (1711-1786), que a incluiu no seu reportório de música sacra com o título de O come, all ye faithful. Noutros locais, aparecem ainda referências alternativas a John Reading (1588-1667) e de Frederick Oakeley (1802-1880).

A cantiga natalícia é mencionada em diversas publicações inglesas com o título de Portuguese Hymn, por ser cantada na capela da Embaixada de Portugal em Londres, um dos únicos locais onde o culto católico podia ser celebrado em solo britânico. Vicent Novello (1781-1861) inclui-a n'A Collection of Sacred Music, passando a ser conhecida no reportório internacional como o Hino Português. Um final deveras feliz para a cultura musical lusitana.

15 de dezembro de 2017

Real, real, real, por el-Rei de Portugal!

Veloso Salgado - Coroação de D. João IV - 1908

[Lisboa, Museu Militar: Sala da Restauração]

GUERRA DE PALAVRAS

Do levantamento-aclamação à coroação-restauração


Duas semanas após o levantamento aristocrático do Primeiro de Dezembro de 1640, o até então Duque de Bragança é formalmente aclamado Rei de Portugal, tendo ficado conhecido nos anais históricos como Dom João IV, o Restaurador. A cerimónia decorreu num palanque junto à varanda do Paço da Ribeira, tendo sido testemunhada pelos conspiradores e presenciada pela arraia-miúda concentrada no vasto terreiro palaciano que dava para o Tejo. Coroação lhe chamou Veloso Salgado, seguindo os parâmetros dum romantismo tardio que o inspiraram na recriação da cena.

A notícia da cessação da Monarquia Dual caiu como uma bomba em Madrid, tendo sido particularmente sentida pela Majestade Católica de Filipe IV de Castela, por se ter visto despojado dos reinos e senhorios da Coroa de Portugal. A entronização do novo soberano em Lisboa e a fundação duma nova dinastia, sob a égide da Sereníssima Casa de Bragança, ramo lateral das de Borgonha e Avis-Beja, desencadeou um longo conflito de vinte e oito anos. Na época foi designado por Guerra da Aclamação, a que a leitura nacionalista recente rebatizou de Guerra da Restauração.

A restauração dum rei natural e deposição dum estrangeiro afirma a independência da Monarquia Lusitana face à Hispânica. Revela, também, uma oposição ao projeto do Conde-Duque de Olivares de converter os reinos ibéricos em meros satélites do Rei-Planeta, em torno do qual orbitariam para sempre. A História lá nos vai dizendo que a substituição duma legalidade obsoleta por uma atualizada costuma recorrer a atos de rebeldia contra o poder instituído. Só assim se muda um regime, se aclama uma nova ordem, se recupera um governo autónomo e liberto de vontades alheias.

Anónimo - Juramento e Aclamação de D. João IV (c. 1640)
[Paço Ducal de Vila Viçosa - Fundação Casa de Bragança]

8 de dezembro de 2017

História exemplar das quatro concubinas de Takenobu Matsuura senhor de Hirado

   Toyohara Chikanobu - The shogun celebrating New Year's Day (1838 - 1912)   


A pergunta retórica do senhor de Chikugo...

Takenobu Matsuura, senhor de Hirado, tinha quatro concubinas que constante-mente se tomavam de ciúmes e brigavam entre si. Não as podendo suportar por mais tempo, Takenobu correu com elas do seu castelo. Mas talvez não seja esta uma história muito própria para padres celibatários...
– Acho que esse Matsuura não era nada parvo... – Como Inoue se mostrasse conciliador, o padre ganhara ânimo e desafogava deste modo a tensão.
– Diz isso a sério, padre? Que peso me tira dos ombros! É que acontece com o nosso Japão, e não apenas com Hirado, o que aconteceu a Matsuura. – Rodopiando a tigela nas mãos, o senhor de Chikugo prosseguiu: – As mulheres, neste caso, chamam-se Portugal, Espanha, Holanda e Inglaterra. Uma vez aqui chegadas, ciosas umas das outras, encheram de intrigas e mexericos os ouvidos do marido, o Japão. À medida que ouvia a tradução do intérprete, foi o padre compreendendo onde queria o governador chegar. Estava bem longe de ser um disparate o que Inoue dizia. Quantas vezes, estando ainda em Goa e Macau, ouvira dizer que países protestantes como a Inglaterra e a Holanda, e católicos como Portugal e Espanha, ávidos todos de sucesso neste país, se caluniavam reciprocamente na presença dos japoneses! Por seu lado, envolvidos na mesma rivalidade, os missionários recorriam a idêntica moeda, chegando a proibir severamente os seus convertidos japoneses de todo e qualquer contacto com ingleses e holandeses. – Padre, se tem por inteligente o procedimento de Matsuura, terá de admitir que os motivos que levaram o Japão a proscrever o cristianismo não são assim tão levianos e absurdos.
Enquanto falava, o magistrado exibia um amplo sorriso nas faces rosadas e nédias, ao mesmo tempo que fitava intensamente o padre. Para japonês, Inoue tinha uns olhos estranhamente castanhos e claros, e não se lhe via nas suíças, a menos que fossem tingidas, um só cabelo branco.
– Como a nossa Igreja prega a monogamia – observou o padre ironizando deliberadamente – ou seja, como só consente uma mulher para cada homem, tem o senhor carradas de razão quando entende que se devem despedir as concubinas. Sendo assim, que diria o senhor se o Japão escolhesse uma só dessas quatro mulheres para sua legítima esposa?
– E quem seria essa legítima esposa? Portugal?
– Nada disso! A Igreja católica.
Quando o intérprete, com a sua habitual impassibilidade estereotipada, passou a resposta a Inoue, este desfez o rosto de circunstância até aí afivelado e desatou a gargalhar desalmadamente. Dada a idade que tinha, era um riso demasiado estridente, mas nos olhos dominadores que fitavam o padre não havia a mais pequena emoção. Os olhos, esses não riam.
– Padre, não acha melhor que esse homem chamado Japão deixe de pensar nas mulheres de outros países e se volte unicamente para uma mulher da sua terra, uma mulher da sua plena confiança?
Shusaku Endo, Silêncio (1966)
[Lisboa: Dom Quixote, 2010, cap. 7, pp. 176-177]

4 de dezembro de 2017

Patrick Modiano, a biografia sonhada ou imaginada do livrete de família

« J'observais ma fille, à travers l'écran vitré. Elle dormait, appuyée sur sa joue gauche, la bouche entrouverte. Elle avait à peine deux jours et on ne discernait pas les mouvements de sa respiration. [...] J'avais pris ma fille dans mes bras et elle dormait, la tête renversée sur mon épaule. Rien ne troublait son sommeil. || Elle n'avait pas encore de mémoire. »
Patrick Modiano, Livret de famille (1977)
Voltei ao meu convívio com Patrick Modiano, passada a euforia da primeira visita a um romancista até então inteiramente desconhe-cido. Descobri-o quando em 2014 se tornou no 15.º autor de língua francesa a ser laureado com o Nobel da Literatura. Li duma assentada alguns das suas criações mais antigas e dei-me um pequeno repouso para empreender uma nova investida na sua escrita. Fi-lo agora com o Livret de famille (1977), o segundo título duma coletânea de 10 romans publicados em 2013 pela Quarto-Gallimard. Não encontrei nenhuma tradução recente ou antiga para português. Provavelmente terá escapado até à presente data ao crivo seletivo dos editores lusófonos. É pena, porque congrega em si um conjunto de atrativos capazes de motivar uma leitura atenta e proveitosa como foi a minha.

O leitmotiv seguido nesta partitura cantada a capella inspirou-se no «Livrete de Família», um documento oficial existente em diversos países, destinado a reunir um conjunto de extratos de registos do estado civil dum agregado familiar. A estrutura do romance que me ocupa neste momento aproveita-se, precisamente, desse corpus de atos específicos da cidadania certificados legalmente, para compilar uma série de excertos da vida real/sonhada do autor-narrador-personagem, prática comum de ficcionar a vida e que lhe conferiu um renome concreto no universo das letras. Converte-o numa sucessão de flashes de espaço-tempo, caleidoscópicos, compilados ao sabor caprichoso da memória e com muitas incógnitas de permeio. Anacrónicos, dispersos, lacunares. Fragmentos incompletos, atuali-zados pela escrita, para contar pequenas histórias desgarradas, enigmáticas, patrimónios pessoal de todos nós, centradas nos pais, avós, tio, irmão, padrinhos, namoradas-amantes, mulher, filha, amigos e conhecidos. Recorda momentos perdidos/recuperados da infância e juventude. Certificados de nascimento, batizado, casamento e óbito. Demanda dum tempo pretérito em quinze etapas, tantas quantos o número de capítulos que constituem o relato de relatos.

A organização dos episódios trazidos à presença do leitor segue a dinâmica própria da corrente do pensamento. Surgem quando têm de surgir e desaparecem quando têm de desaparecer. Salvaguarda-se o essencial e prescinde-se do acessório. Os instantes que os modelam saltitam com inteira liberdade de uns para os outros, nos eixos espaciotemporais que regem o relato. O Patrick Modiano, aquele que assume o papel compósito de relator-relatado, salta dos 15 anos para os 20 e destes para os 18, 14 ou 17. Sempre ao sabor do acaso. Alterna Paris com Roma, Lausanne com Túnis ou Changai com Berlim. Do casamento dos pais passa o seu próprio casamento. Do batizado da filha para o seu próprio batizado e ao do irmão. De permeio lá recorda uma caçada de montaria na Borgonha ou a visita a um moinho na Bretanha. Fala da adaptação dos diálogos para um filme que terá conhecido o circuito comercial. Refere a sua participação como autor de letras de canções que alguém terá cantado com maior ou menor sucesso. Inicia a escrita da biografia dum esquecido artista de variedades que se dispensa de revelar se terá ou não terminado. O testemunho de factos acontecidos ou fantasiados pululam sem cessar ao sabor da pena e do momento.

A demanda incessante por uma clarificação das origens familiares são uma constante representada nos textos inaugurais do Patrick Modiano fabulador de destinos pessoais e alheios. Partes descontínuas duma obra única e que constituem, a seu ver, a espinha dorsal da sua produção futura. Os tempos conturbados da Guerra e da Ocupação, da Gestapo e do Holocausto, dos Colabo-radores e dos Resistentes. Ao longo das muitas páginas novelescas repartidas por volumes de dimensão mediana, interroga-se incessantemente sobre as suas raízes judaicas, sobre o papel algo ambíguo traçado pelos progenitores nesse conflito bélico mundial, sobre as motivações que os terão unido e separado. Questões que ficam sempre por clarificar, que ficam sempre em aberto, que ficam sempre dependentes do romance seguinte. As perguntas sem resposta repetem-se ciclicamente de livro para livro, de relato para relato, de sequela para sequela. Livretes de família todos eles, com mais ou menos pedigree no caminho, com mais ou menos boutiques obscuras no canto da rua, com mais ou menos cafés de juventudes perdidas num horizonte mais ou menos longínquo.

1 de dezembro de 2017

Histórias antigas com história dentro

General George Washington riding a white horse holding a sword
(Painted wood board)
[De Young Museum, San Francisco, California, USA]

Primeiro de Dezembro de 1640

Uma vez, fui passear com três amigos.
Fomos para o campo e chegámos lá e sentámo-nos. E um disse assim: - Conta uma história mas que seja verdadeira.
E eu comecei: - Lembram-se quando cá estavam os espanhóis?
- Lembramo-nos muito bem.
- Pois isto foi no 1.º de Dezembro quando nasceu a liberdade. Eu estava mesmo em frente do palácio real. Às nove horas da manhã abriram as portas do palácio e os conjurados entraram por ali dentro que não foi brincadeira. Mataram os soldados que estavam de guarda ao palácio. Um soldado pegou numa faca e ía dar uma facada a um conjurado. Eu vi aquilo e peguei logo na minha espada de pau feita do cabo da vassoura e fui muito devagarinho por detrás dele e dei-lhe uma cacetada na cabeça que ele até desmaiou. E o conjurado disse-me: - Olá! Então tu salvaste-me a vida? Espera lá fora que eu já te recompenso. E ele foi lá para dentro e eu entrei pela porta da cozinha e dei um chuto no cozinheiro que logo se arrumou para o lado. Então, cheguei lá dentro e vi o senhor Vasconcelos a tomar o pequeno-almoço. E eu disse-lhe: - Olá! Já sabe que hoje acabou a paródia? E ele disse que não sabia e então escondeu-se à pressa no armário dos livros e eu perdi-o de vista.
E já estava tudo derrotado e só faltava esse fulano e a prima do Rei. Então, chamei os conjurados e como vi o armário a mexer, disse: - Está ali dentro!
Eles foram, tiraram-no cá para fora e veio um conjurado à varanda e diz: - Liberdade! Liberdade! Viva El-Rei D. João IV!...
Atiraram o senhor Miguel para a rua e já só faltava a prima. Então, estava ela a ler a Crónica Feminina e eu peguei no livro e espetei-lho na cara. Ela disse: - Quem é que me está a faltar ao respeito? E um conjurado disse: - Se a senhora não quiser sair pela porta, sai pela janela. E ela disse: - Tão amável!... E saiu pela porta mas foi presa.
E os conjurados disseram então: - Viva este rapazinho que nos ajudou tanto e me salvou a vida!
Depois deram-me um cavalo de pau e uma espada de verdade. E a minha espada de pau está agora num museu.
E os meus amigos bateram palmas e disseram: - Foi verdade que fizeste isso tudo? E eu disse: - É. E então fomos para casa muito contentes. E eu disse: - Agora que venham cá chatear mais esses senhores espanhóis que eu lhes digo o que faço: dou um biqueiro em cada um que até andam de asa.

João Manuel – 10 anos
IN Maria Rosa Colaço, A criança e a vida (Lisboa: ITAU, 1960)