31 de maio de 2019

Patxi Andión: uma voz em três atos...

   J u k e b o x   
    
Primeiro ato: televisão
Patxi Andión atuou pela primeira vez em Portugal há precisamente 50 anos e eu vi-o na televisão. Cantou uma ou duas canções no programa Zip-Zip, gravado no dia 31 de maio de 1969 no Teatro Villaret de Lisboa e trasmitido pela RTP a 2 de junho seguinte. Julgo que terá interpretado uma Carmela disfarçada de Manuela, que a censura então vigente não permitia grandes referências a um canto republicano do tempo da Guerra Civil de Espanha. Fiquei impressionado com a singularidade da voz que a entoava e com a forma como lhe dava vida através das palavras feitas música.

Segundo ato: concerto
Patxi Andión voltou à capital portuguesa cinco anos depois, a 24 de março de 1974. Escolheu o Coliseu dos Recreios e eu estava lá mais cinco mil como eu a ocupar a plateia, bancadas e camarotes. Os agentes da PIDE/DGS pululavam no interior e exterior do teatro-circo. A intentona das Caldas da Rainha tinha ocorrido oito dias antes e a revolução dos cravos estalaria daí a precisamente um mês. De todas as canções que então interpretou, lembro-me muito bem do efeito incendiário que as palavras do El Maestro causaram em toda a assistência sentada e apeada. A liberdade rondava por ali.

Terceiro ato: jukebox
Patxi Andión continuou a passar a sua mensagem em disco nos dois lados da fronteira. Os antigos pik-up familiares e leitores de cassete eram reis. No verão de 1975, ainda o caudillo estrebuchava, o som da sua voz veio-me um sem número de vezes duma caixa de música em Badajoz. Tantas quantas as pesetas disponíveis engolidas pela jukebox dum bar das imediações da Plaza del Pilar. Esqueci-me do nome do bar e do nome da rua. Pouco importa. Ficaram-me na memória as palavras desse Desde que te quiero. Magia do momento, da companhia, da melodia, do poema, do sentido dos sentidos...

27 de maio de 2019

James Joyce e as odisseias urbanas dum Ulisses irlandês

"Think you're escaping and run into yourself. Longest way round is the shortest way home." 
James Joyce, Ulysses (1922)
Lisboa e Dublin serão, porventura, as duas capitais europeias mais ligadas a Odisseu, o herói maior da Grécia antiga e rei lendário de Ítaca. A primeira ainda hoje diz dever o nome clássico de Olisipo, Ulissipolis ou Ulisseia ao seu fundador epónimo, a segunda por ter criado uma odisseia moderna na sua malha urbana, toda ela decal-cada na marítima empreendida pelo inventor helénico do Cavalo de Troia. Casos paradigmáticos da criatividade literária transmitidas nas diversas modalidades épicas em verso e em prosa.

Regressei à companhia de Leopold Bloom, o pacato angariador de publicidade, o tal que James Joyce escolheu para protagonista do Ulisses (1922), uma das mais dissecadas ficções romanescas do século passado e cujas deambulações pela cidade no dia 16 de junho de 1904 dariam origem ao feriado do Bloomsday, celebrado anualmente na Irlanda e noutras partes do mundo. Fi-lo numa edição traduzida, prefaciada e anotada por João Palma-Ferreira, que me acompanha desde 2006, ano em que li pela primeira vez de fio a pavio as suas 844 páginas, distribuídas por três partes e 18 capítulos ou etapas literárias da peregrinação judaico-cristã da modernidade literária europeia. Tarefa árdua que me permitiu visitar nesse verão já longínquo o palco dos acontecimentos narrados com a bagagem recheada dos conhecimentos entretanto obtidos.

Apesar do título dado ao romance-epopeia, o antropónimo Ulisses só aparece registado quatro vezes em toda a malha discursiva, sem que haja mesmo assim uma relação direta detetável de causa-efeito entre essa figura temerária helénica e a desenhada no texto irlandês. Se quisermos encontrar similitudes estruturais concretas nos dois textos, teremos de exercer um esforço continuado e persistente para obter resultados satisfatórios que ultrapassem a mera coincidência da viagem. O melhor será recorrer ao quadro-esquema que James Joyce elaborou para chegarmos com algum sucesso às aventuras e desventuras desenvolvidas no poema homérico. Se nos apoiarmos nas palavras-chave ali apontadas como simples auxiliares de leitura, a aproximação anunciada à Odisseia lá se irá fazendo a pouco e pouco e sem percalços de maior.

Seguir as pisadas do ilustre caminhante joyciano pelas ruas e ruelas da sua cidade natal não é pera doce. Essa também a perceção do aedo moderno que lhe deu corpo, registada nos múltiplos escritos laterais que lhe dedicou. Considera esse complexo percurso labiríntico e sem rumo certo anunciado como a história dum dia que simboliza a própria vida, como um ciclo completo do corpo humano assente no epopeia de duas raças, a israelita e a irlandesa. Herói coletivo dum povo ou duma coletividade específica, com direito a ser cantada sem obedecer às regras restritas de metro e rima. Relato que depois duma visita atenta e integral se poderá sempre revisitar uma e outra vez em pequenas investidas parcelares. Não tenho nenhuma prevista para os próximos tempos, mas nunca é tarde para voltar aos locais já visitados uma ou outra ocasião, porque há sempre a possibilidade de nos depararmos com novas e surpreendentes descobertas.  

20 de maio de 2019

Desejo emblemático de Justiça do Príncipe das Sete Partidas

Emblemática do Infante Dom Pedro
DOM PEDRO DUQUE DE COIMBRA & FREI JOÃO VERBA
 «Inicial da Dedicatória» do Trauttado da Virtuosa Benfeytoria (c. 1430-1433)
AS QUINAS: D. PEDRO, REGENTE DE PORTUGAL
Claro em pensar, e claro no sentir, | É claro no querer; | Indiferente ao que em conseguir | Que seja só obter; | Dúplice dono, sem me divi-dir, | De dever e de ser — || Não me podia a Sorte dar guarida | Por não ser eu dos seus. | Assim vivi, assim morri, a vida, | Calmo sob mudos céus, | Fiel à palavra dada e à ideia tida. | Tudo mais é com Deus!

Fernando Pessoa, Mensagem (1934: I, iii, 3, 11-12)
           sire          

A moderna historiografia costuma apontar o Infante Dom Pedro como o mais destacado representante da Ínclita Geração da Casa de Avis. O terceiro filho varão de Dom João Primeiro e de Dona Filipa de Lencastre conseguiu associar por diversas vezes o seu nome ao dos restantes irmãos, igualando-os nas qualidades desenvolvidas e ultrapassando-os mesmo nos resultados obtidos. Celebrizou-se na obra filosófica e na arte da governação como Dom Duarte, o Rei Eloquente; tornou-se o Príncipe das Sete Partidas, pelas viagens efetuadas pelo Velho Mundo e Terra Santa, feito que nem o Infante Dom Henrique, o Navegador, sonhou realizar; morreu sem glória nem proveito na Batalha de Alfarrobeira, tal como ocorrera anos antes com Dom Fernando, o Infante Santo, na tentativa malograda da conquista da praça africana de Tânger.

O Infante de Portugal e também Duque de Coimbra e de Treviso, Cavaleiro da Jarreteira e Regente do Reino na menoridade de Dom Afonso Quinto, adotou como alma do brasão pessoal a palavra Désir, gravada na cartela do corpo da divisa. «Desejo» de fazer sempre mais e melhor, registado em francês, a língua da mãe, inglesa de nascimento mas descendente dos Plantegenêt angevinos. As letras do mote poderão ainda representar as iniciais da insígnia da Ordem do Dragão (Draconis Equitas Societas Imperatur et Regis), que lhe foi conferida por Segismundo da Hungria. A Balança, pintada a ouro sob um fundo azul e cinza a rematar a emblemática, simbolizaria a «Justiça» que imprimira à sua conduta de vida e que as intrigas e invejas palacianas cortariam pela raiz, ficando por cumprir parte dos projetos esboçados na Virtuosa Benfeitoria.

NOTA
Quando se cumprem os 570 anos da Batalha de Alfarrobeira e da morte do Infante das Sete Partidas, ocorrida em 20 de maio de 1449.

13 de maio de 2019

Galettes de primavera e de todo o ano

MARCHÉ DES LICES

Poster Rennes à colorier


Les galettes-saucisses du Marché des Lices à Rennes ...

A capital da Bretanha acorda cedo todos os sábados. Das 7.30h da manhã às 13.30h da tarde, Rennes donne rendez-vous a todos os interessados no Marché des Lices, para se abastecerem junto de três centenas de produtores, artesãos e comerciantes locais. É assim há 400 anos ou talvez mais. Faça sol ou faça chuva, com calor ou com frio, em dias sim ou assim e assado.

Já perdi a conta às vezes que me deixei envolver pelas ambiências vividas nas mediações das duas Halles Martenot. Tenho-o feito com grande assiduidade desde a década de 70 em período de férias grandes. Ultimamente passei a fazê-lo também pela Páscoa e Carnaval. A animação nunca falta. Os habitués transitam duma estação para outra como se fosse sempre a mesma.

Desde 2017 que não me cruzo com les couche-tard et les lève-tôt, les bourgeois et les bobos, les mamies et leurs chariots, les chefs étoilés et les amateurs de fast good rennais. Tenho de voltar um dia destes. Quanto mais não seja para saborear ali mesmo une galette-saucisse et une bolée de cidre bouché. Néctar das divindades sazonais do verão-outono-inverno-primavera e de todo o ano.

GALETTE-SAUCISSE

9 de maio de 2019

Camoniana épica no dia da Europa

Le monde d'Hécathée
P.F. Gosselin (Réinterprétation), Ve siècle avant J.-C.. 
BnF, cartes et plans, Ge.CC.1423, T 1 

OITAVA

Entre a Zona que o Cancro ʃenhorea,
Meta Septentrional do Sol luzente,
E aquella que por fria
ʃe arrecea
Tanto, como a do meyo por ardente,
Iaz a
ʃoberba Europa, a quem rodea,
Pela parte do Arcturo e do Occidente,
Com
ʃuas ʃalʃas ondas o Occeano,
E, pela Au
ʃ
tral, o Mar Mediterrano.
Impreʃʃos em Lisboa, com licença da ʃancta Inquisição, & do Ordinario:
em caʃa de Antonio Gõnçaluez Impreʃʃor. 1572
(III, 6, fl. 39; Pdf p. 87)

6 de maio de 2019

Luís Osório, a queda dum homem num sonho alheio

«Tinha rituais, planos de fuga, pequenas perversidades. Planeava men-tiras, assustava-os com a tristeza, pedia-lhes comprimidos e uma rápida que não desejava. Aprendera que a incredulidade repelia, impossível de esquecer a cara dos pais depois de lhes ter confiado que escrevia todos os dias romances dentro da cabeça. Fora a primeira e a última vez que lhes confessara alguma coisa, não repetiu o erro uma segunda vez. Ti-nha rituais que a defendiam tanto dos vivos como dos seus persona-gens. Não podia desiludir uns com a esperança nem iludir os outros com falsas promessas; à família oferecia pequenos motivos para não desisti-rem dela e aos que inventava vidas sempre incompletas, um excelente pretexto para a eles voltar. Vivia entre dois mundos. E não suportava a ideia de ficar presa a qualquer um deles.»
Luís Osório, A queda de um homem (2017)
Tudo se permite sem reservas, tudo se explica sem limites, tudo cabe sem resistência na órbita natural do onírico. É que, no sonho, na loucura e na droga, nada de sobrenatural se produz porque não se produziu coisa nenhuma. O inverosímil perde a sua carga negativa e torna-se verosímil, o real e o imaginário dão livre curso ao cruzamento incessante dos fios da trama com os fios da urdidura e a fábula surge. Assim se tece o fantástico-estranho, género teórico concebido pelo estruturalista búlgaro naturalizado francês Tzvetan Todorov na Intro-duction à la littérature fantastique (1970), assim se parece desenvol-ver o primeiro romance dado à estampa por Luís Osório, A queda de um homem (2017).

Dizem as leis da física que nos regem ser impossível duas pessoas sonharem simultaneamente o mesmo sonho. A menos que essa manifestação do inconsciente individual produzida durante o sono seja viabilizada pela ficção. Nessas circunstâncias, todas as histórias narradas são possíveis, porque a criatividade faz parte da natura criada pela cultura. Afastadas ficam as ilusões provocadas pelo acaso ou pela fraude, descartadas ficam também os efeitos psíquicos causados pela loucura ou pela droga. Tudo depende das pistas, indícios ou sinais fornecidos pelo autor, faça-o ele dum modo mais ou menos implícito ou a resvalar para o explícito.     

A protagonista Prima sonha os sonhos do protagonista Primo. Atrai-o para a trama dum dos romances que tinha o hábito de escrever todos os dias dentro da cabeça. Imagina a sua morte no decorrer da intriga para assim se libertar dum rival potencial e o substituir no projeto messiânico de salvar o mundo. Tudo mentira afinal, como é usual acontecer na ficção. Ignoramos os seus nomes e dos restantes in-tervenientes da confabulação mental. Tudo se passa como se esti-véssemos num conto infantil, onde as personagens são identificadas através das suas particularidades específicas de heróis e heroínas, de aliados e rivais.

A queda anunciada no título decorre no interior dum comboio fantas-ma que percorre uma rota desconhecida rumo a um destino incerto, qual Nave de Loucos ou Barca de Caronte. Neste último caso, o vendedor de botões de punho até pode ser confundido com o barqueiro de Hades, aquele que conduz os passageiros involuntários numa derradeira viagem para o Tártaro, na outra margem do Estige e do Aqueronte, na fronteira mítica da vida e da morte. Este o cenário escolhido pelo emissor externo do relato para pôr a nu este nosso mundo contemporâneo em que vivemos, onde a esperança de sobrevivência se encontra mergulhada num universo de sombras, decadência e amoralidade.

2 de maio de 2019

Cinquecento anni della morte di Leonardo da Vinci

AUTORITRATTO
(circa 1510-1515)
[Torino, Biblioteca Reale]
Non ho offeso Dio e gli uomini, perché il mio lavoro non ha raggiunto la qualità che avrebbe dovuto avere.
Leonardo da Vinci
Ultime parole prima di morire, 2 maggio 1519
Quando viajo por aí fora, deixo sempre por ver um ou outro recanto interessante para alimentar a vontade de regressar mais tarde ou mais cedo, para assim poder visitá-lo com todo o pormenor exigido. A estratégia tem sido bem sucedida e continua a ser implementada sem vacilação em várias investidas.   

Leonardo da Vinci (1452-1519) antecedeu-me meio milénio na data de nascimento e partiu com 67 anos, tantos quantos os que acabei de celebrar dias em Florença, a sua cidade natal, e onde se destacou como cientista, matemático, engenheiro, inventor, anatomista, pintor, escultor, arquiteto, botânico, poeta e músico.

A obra do vulto maior do Alto Renascimento toscano está dispersa por todo o mundo culto. A dificuldade de a admirar nos locais públicos e privados que atualmente a detém torna-se particularmente difícil. As comemorações dos 500 anos da sua morte reuniu algumas delas sem atingir completamente o pleno expositivo.

Tenho de voltar a Itália para ver a Ultima Cena na Santa Maria delle Grazie di Milano, o Uomo Vitruviano na Gallerie dell'Accademia di Venezia ou o Autoritratto na Biblioteca Reale di Torino. Tenho de voltar a França para ver a La Belle Ferronnière, o Ritratto di Isabella d'Este ou a La Gioconda no Musée du Louvre.

Tenho de o fazer no inverno para evitar as multidões de verão. Cotejar o sorriso enigmático da Mona Lisa del Giocondo de Paris com o olhar sereno de La dama con l'ermellino de Cracóvia. Tenho de visitar todas as donne e madonne possíveis e pedir-lhes a fare da parte mia gli auguri di buon compleanno a Leonardo.

     La dama con l'ermellino (1485-1490)                       Mona Lisa del Giocondo (1503-1506)
     Muzeum Narodowe, Krakowie                                         Musée du Louvre, Paris