30 de setembro de 2019

Hélia Correia, a demanda da terra prometida dum bailarino na batalha

«Considerai, portanto, os caminhantes como seres demitidos, como seres de fraca humanidade. Olhai-lhes para os pés e não vereis senão as grossas crostas defensivas, não vereis senão inchaço e lama. Alguma vez terão dançado aqueles pés, alguma vez se deitaram em mantas de algodão, alguma vez foram, sequer, beijados?»
Hélia Correia, Um bailarino na batalha (2018)
O historial dos grandes sistemas literários fundadores diz-nos que os seus primeiros passos se deram no seio dos textos versificados, para desse modo suprir a inexistência duma escrita funcional precisa de registar a língua oral utilizada na composição do efémero e, assim, garantir uma imortalidade apetecida nem sempre merecida. Entre nós tudo começa com as cantigas trovadorescas medievais a preceder as canções palacianas renascentistas e todos os demais cantos rimados de matriz variável que se lhes seguiram. A admissão de pleno direito dos textos prosificados no universo parnasiano das letras dá-se em data relativamente tardia, quando as crónicas e cronicões primitivos se transformam paulatinamente nos contos, novelas e romances que até nós chegaram. O desvio à linguagem rotineira do dia-a-dia ganha terreno e a prosa poética da ficção surge no horizonte a ombrear com a poesia integral da lírica.

Hélia Correia reúne em si a capacidade de se expressar com idêntica mestria criativa tanto num campo genérico como no outro. É o que acontece com Um bailarino na batalha (2018), o seu mais recente relato de dimensão épica com ressonância trágica. Fá-lo em estrofes de verso único e várias linhas de texto corrido com um epílogo rimado ou em parágrafos dialogados/monologados de dimensão variada. Centra-o na temática intemporal que tem movido o ser humano ao longo do seu devir existencial, na qualidade de homo viator em busca dum paraíso perdido ou por achar. Uma qualquer terra prometida pródiga em leite e mel ou dum almejado eldorado cheio de delícias e riquezas. Esse país de utopias possíveis até pode dar pelo nome de Europa, se o herói coletivo que o pretende alcançar for oriundo – como é o caso dum país em guerra situado no outro lado do mar, dum espaço de gentes sem pátria, dum mundo sem rei nem roque e com todo um deserto por atravessar.

Cenas pungentes destes nossos tempos que os jornais televisivos banalizaram nas suas transmissões diárias em horário nobre. O cheio de luz, a sempre bela, o primeiro raio da manhã, o de pouca estatura, o que se transformou, o afugentador de serpentes, os sem-família, os eunucos desistentes da virilidade sem semente para dar, as mulheres veladas e não-veladas com o manto da decência, os caminhantes anónimos ou com direito a nome e epíteto, novos e velhos, dançam a dança da supervivência nómada sem saber dançar, pesados como pedras, caminham em direção ao grande lago de água salgada que nunca chegam a vislumbrar. Naufragam na margem meridional duma terra de areias cinzentas sem lugar para a esperança e duma memória condenada ao esquecimento. Peregrinos errantes sem destino certo a fingir que têm uma história para contar e um público interessado em ouvi-la.

A sonoridade dramática da Odisseia homérica e do Êxodo bíblico ecoa nas páginas reais desta peregrinação atual protagonizada por pessoas concretas como todos nós. Só que no final desejado da viagem rumo à paz universal entre os homens não haverá nenhum lugar santo ou de veneração a esperá-los, nenhuma terra rica e generosa a recebê-los, nenhum jardim de deleites mil a premiá-los pelo esforço despendido. Os cavalos do Mediterrâneo, nem bravios nem secretos, passam pela vida rumo à linha de abate. Indiferentes. Dançam na guerra da sobrevivência com a mesma delicadeza e elevação de Nijinsky. Não sabem o que é a morte nem a temem. Caem na poeira da lide sem produzir um só grito. Silenciosos. Como bailarinos na batalha. E delicadamente a história acaba.

23 de setembro de 2019

Outonos em verso & tela

Abel Grimmer -  Outono (1607)


Uma névoa de outono...
Uma névoa de outono o ar raro vela,
Cores de meia-cor pairam no céu.
O que indistintamente se revela,
Árvores, casas, montes, nada é meu.
Sim, vejo-o, e pela vista sou seu dono.
Sim, sinto-o eu pelo coração, o como.
Mas entre mim e ver há um grande sono.
De sentir é só a janela a que eu assomo.
Amanhã, se estiver um dia igual,
Mas se for outro, porque é amanhã,
Terei outra verdade, universal,
E será como esta…

Fernando Pessoa | Alberto Caeiro, «Poesias inéditas» (1930-1935)

20 de setembro de 2019

A rota das especiarias de Magalhães

Mapa-múndi de Domingos Teixeira (1573)
«Mas é também razão que, no Ponente, | Dum Lusitano um feito inda vejais, | Que, de seu Rei mostrando-se agravado, | Caminho há de fazer nunca cuidado. || [...] || Ao longo desta costa, que tereis, | Irá buscando a parte mais remota | O Magalhães, no feito, com verdade, | Português, porém não na lealdade. || Desque passar a via mais que meia | Que ao Antártico Polo vai da Linha, | Dhũa estatura quase | giganteia | Homens verá, da terra ali vizinha; | E mais avante o Estreito que se arreia | Co nome dele agora, o qual caminha | pera outro mar e terra que fica onde | Com suas frias asas o Austro a esconde.»
Luís de Camões, Os Lusíadas (Lx: 1572)
[Canto X, 138: 4-8, 140: 4-8, 141: 1-8]
De mar em mar à volta do mundo...

A 20 de setembro de 1519, faz hoje 500 anos, zarpava Fernão de Magalhães do porto andaluz de Sanlúcar de Barrameda no encalço duma rota comercial alternativa para as ilhas das especiarias. Longe estaria dos seus intentos dar a volta ao mundo. Rumou para Sul contornando o continente americano até encontrar uma passagem estreita entre o Atlântico e o Pacífico, passou pelas Marianas e sucumbiu numa escaramuça com os nativos das Filipinas. Tudo ocorreu a 27 de abril de 1521, 585 dias depois de ter iniciado a mais famosa das suas viagens.

A expedição prosseguiu sob a capitania de Sebastián Elcano, que remataria o périplo a 8 de setembro de 1522. As dificuldades sentidas no Estreito de Magalhães aconselhou o novo comando eleito pela tripulação a sulcar o Índico e a dobrar o continente africano pelo Cabo da Boa Esperança. A esfericidade da terra e a contiguidade dos mares ficavam assim comprovados. Os caminhos das Índias passaram a dispor desde então de dois percursos oceânicos possíveis. O Oriental e o Ocidental, a unir os dois hemisférios que o tratado de Tordesilhas dividira.

Tem-se debatido muito se esta viagem não seria exclusivamente es-panhola, dado ter sido patrocinada pela Coroa de Castela. Guerras de alecrim e manjerona incapazes de retirar ao navegador português o mérito de ter sido o primeiro a dar uma volta completa ao globo terrestre, muito embora o tenha feito em duas etapas distintas: uma ao serviço de D. Manuel I, outra de Carlos Quinto, com interface situada nas Ilhas Molucas ou das especiarias. Empresa ibérica bem sucedida diríamos hoje, para assinalar com propriedade o processo de globalização então iniciado.
  

13 de setembro de 2019

Altruísmo e martírio do Infante Santo

Emblemática do Infante Dom Fernando
Armas da Ordem de Avis - Divisa - Brasão de Armas Pessoais
[Túmulo do Infante Dom Fernando na Capela Real do Mosteiro da Batalha]
AS QUINAS: D. FERNADO, INFANTE DE PORTUGAL
Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça | A sua santa guerra. | Indife-rente ao que há em conseguir | Sagrou-me seu em honra e em desgra-ça, | Às horas em que um frio vento passa | Por sobre a fria terra. || Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me | A fronte com o olhar; | E esta febre de Além, que me consome, | E este querer grandeza são seu nome | Dentro em mim a vibrar. || E eu vou, e a luz do gládio erguido dá | Em minha face calma. | Cheio de Deus, não temo o que virá, | Pois, venha o que vier, nunca será | Maior do que a minha alma.

Fernando Pessoa, Mensagem (1934: I, iii, 2, 1-15)
            Le bien me plet            

A monarquia portuguesa regista nos seus anais cinco processos bem-sucedidos de beatificação católica dos seus reais rebentos. Tantos quantos os dedos da mãoQuatro beatas e um beato que a vox populi se encarregou de incluir no rol dos santos sem terem passado por uma canonização formal da cúria romana. São elas as Infantas D. Sancha, D. Teresa e D. Mafalda, filhas de D. Sancho I, e a Princesa Santa Joana, filha de D. Afonso V. O único varão com honras de altar foi o Infante Santo Dom Fernando (1402-1443), oitavo filho de D. João I e D. Filipa de Lencastre, os reis de Boa Memória fundadores da Dinastia de Avis.

O mais jovem representante da Ínclita Geração seguiu o exemplo dos pais, irmãos e sobrinhos na elaboração da sua emblemática pessoal, enveredando pela simbologia medieval francesa do Roman de la Rose. Escolhe como corpo do brasão três ramos de roseira dispostos em círculos e como alma da divisa o lema Le bien me plet. O gosto de praticar o bem, de lutar contra todas as adversidades espinhosas da vida, dá forma ao ideal cavaleiresco veiculado pelos romans courtois então em voga. Altruísmo militante premonitório que o futuro mártir da cruzada no nascente Reino do Algarve de além-mar em África tão bem comprovaria.

O malogrado Cerco de Tânger (1437)* abriria as portas à veneração do segundo Mestre de Avis e irmão do Rei-Filósofo, do Infante de Sagres e do Príncipe das Sete Partidas. Durante o longo cativeiro marroquino, revelou-se um modelo de virtudes e de devoção cristã que o Papa Paulo II reconhecerá em 1470, poucos anos após a sua morte trágica em Fez. Cantado por Camões e Pessoa, merecerá entre outros a atenção de Calderón de la Barca, que lhe confere o estatuto de herói dramático no El príncipe constante y mártir de Portu-gal (1629), epíteto elucidativo para um sangue azul bem-aventurado da Igreja de Roma.

NOTA
(*) Início: 13 de setembro ; tréguas e negociações: 13 de outubro; tratado de paz: 17 de outubro.

9 de setembro de 2019

A lebre roubada de Albrecht Dürer

FELDHASE 
Albrecht Dürer, 1502

[Albertina, Wien]

        Ossem & Hildegarde        

   Ossem explique alors qu'avant de redevenir cornac, il avait une vie de rêve. Draps en satin, fruits et femmes à volonté.
     – Moi aussi j'avais une belle vie avant de me retrouver catin à Lisbonne, raconte Hildegarde. J'étais domestique chez un des plus grands artistes du monde. Il était doux, calme. Même quand il dessinait une touffe d'herbe, on sentait sa tendresse infinie envers le monde.
     – Et qu’est-ce qui c’est passé ?
   – Je me suis comportée comme la reine des idiotes. Je lui ai volé un lièvre. Enfin, une aquarelle de lièvre. On distinguait chaque poil de son pelage. Et je pouvais presque caresser ses oreilles du bout du doigt. La plus belle chose que j'ai jamais vue. Mais mon maître a remarqué sa disparition.
     – Ma pauvre, compatie Ossem. Il enlace l'ange blond. Dans sa poitrine, son cœur fait plus de bruit qu'un troupeau de gandas traversant la prairie.
     – « Si tu avais pris de l'argent dans ma bourse, je t'aurais pardonné. Mais une de mes œuvres, jamais ! » Il trouvait mon geste trop laid pour que je demeure sous son toit.
     Les yeux de Hildegarde se remplissent de regrets. Elle raconte comment elle marcha le long des routes boueuses, dormit dans des granges, dévora des pommes sures. Pour se remonter le moral, le soir, à la lueur d'une bougie, elle admirait son lièvre. Sans trop savoir pourquoi, elle se dirigea vers le sud. Mais un soir, juste après les Pyrénées, son ventre vide depuis plusieurs jours la fit trop souffrir. Alors, dans un village, elle échangea l'aquarelle contre un pot de lait et de la brioche. À force de mettre un pied devant l'autre, Hildegarde échoua à Lisbonne. Faire la catin, c'est ce qu'elle trouva de plus laid à faire.
     – Mais pourquoi ? demande Ossem.
     – Serre-moi dans bras, idiot.
    Et sous les yeux rieurs de Ganda, le minuscule Ossem étreint la grande Hildegarde. Leurs lèvres se rejoignent, se touchent. Les langues se dévorent. Ils se couchent à même la paille. Vu la différence de taille, l'Indien a l'impression de faire de l'alpinisme. Ils font l'amour dans la ménagerie, parmi les rugissements du lion, les fumets des zèbres et les cris stridents des singes. Ils s'aiment avec douceur, force et émerveillement.

Eugène, Ganda (Genève: Slatkine, 2018, 90-91)

6 de setembro de 2019

Historietas em contracorrente

P     E     N     T     A     G     R     A     M     A

cinco anos cumpridos no dia de hoje decidi abrir este blogue de contar historietas em contracorrente. O Pátio de Letras & Espaço de Memórias juntara-se ao crescente número de livrarias que o vento vai levando e o escrevinhador de textos depois de lidos os livros a cheirar a tinta mudou-se de armas e bagagens do Leya no Pátio para aqui. 

Iniciei estas Histórias d'Arthur d'Algarbe com uma conta-corrente em contracorrente. Seguiram-se outros microtextos publicados ao sabor da correnteUma aventura que conta com um acervo de 467 posts e se prepara para dar vida a muitos mais. Assim não me falte o engenho e arte que o gosto pela leitura e escrita está assegurado.

2 de setembro de 2019

Alan Hollinghurst, o livrinho de memórias e outras histórias do caso Sparsholt

“It is hard to do justice to old pleasures that cannot be revived - we seem half to disown our youthful selves, who loved and treasured them.” 
Alan Hollinghurst, The Sparsholt Affair (2017)
As antigas histórias de amor gregas que deram origem ao romance moderno relatavam os encontros-desencontros-reencontros dum jovem par de amantes, um herói e uma heroína obrigados a viver mil e uma aventuras peregrinas até alcançarem o final feliz canónico exigido pelo género. Depois o mundo latino introduziu o elemento homoerótico masculino, desfazendo de vez a ligação algo ambígua protagonizada por Aquiles e Pátroclo na Ilíada de Homero. No Satíricon de Petrónio, não há margem para dúvidas na relação de Encólpio e Ascilto, os anti-heróis centrais dessa sátira romana do tempo do imperador Nero. Este comportamento tido como desviante pela matriz judaico-cristã medieval será retomado nos séculos de ouro pelas novelas cortesãs barrocas, deslocando-se contudo para a esfera feminina. O desconforto sentido posteriormente pelas letras europeias de abordar a homossexualidade persiste ainda nos nossos dias das pós-modernidades, perfeitamente visível no modo pudico ou tabu de a encarar.

A temática gay entendida nas suas múltiplas facetas é tratada com mão de mestre por Alan Hollinghurst no meio milhar de páginas d'O caso Sparsholt (2017). O vencedor de alguns dos mais prestigiados prémios literários britânicos (Somerset Maugham Award, James Tait Black Memorial Prize e Man Booker Prize) reparte o romance por cinco blocos narrativos distintos, tantos quantos os momentos-chave escolhidos pelas várias instâncias enunciadoras, para relatar os factos vividos por três gerações de intervenientes na intriga, desde os primeiros tempos da Segunda Guerra Mundial até aos nossos dias. Tudo se inicia com um conjunto de episódios registados num livrinho de memórias centradas na Universidade de Oxford, numa altura em que o blitz e o blackout eram palavras de ordem nesse longínquo 1940. As histórias saltam para um ambiente mais tranquilo de férias na Cornualha, no verão de 1966. A ação muda-se para a Londres, durante a vigência da semana dos três dias de 1974, com uma visita breve de fim de semana ao País de Gales. Fixa-se na capital inglesa em 1995, num contexto artístico onde a pintura ocupa o primeiro plano. O descer do pano dá-se por volta de 2012, no mesmo palco citadino, onde as derradeiras cenas da peça se representaram.

Ao longo de quase três quartos de século, os ecos dum escândalo público de cariz sexual desviante dão corpo ao percurso existencial duma família, convertendo-a numa espécie de saga fragmentária produzida a várias vozes. O efeito de envelhecimento natural das personagens centrais/laterais é-nos transmitido através dos saltos estruturais que efetuam dumas décadas para as outras, deixando o preenchimento das lacunas intermédias ao cuidado dos leitores. Esforço constante de resolução facilitado pelo forte peso dialógico emprestado ao tecido discursivo. Os membros do Clube de Leitura, que frequentam o Clube Náutico e o Clube das Forças Armadas, aquele grupinho de habitués que dinamizam um Clube da Memória, para que a sua passagem pelo teatro secreto da vida deixe algumas marcas que mereçam ser lembradas. Mesmo aquelas que no seu tempo foram tidas como criminosas e que há muito deixaram de o ser. O reino da ambiguidade, das insinuações e das meias-palavras ou palavras inteiras, aparecem e desaparecem ao sabor do acaso exigido pelo momento, deixando atrás de si um rasto indelével de histórias improváveis vividas em épocas de apogeu/decadência no encalço determinado das seguintes.

Escrever um livro a partir dum caso de contornos eróticos singulares é um procedimento recorrente em ficção. O mais conhecido será, sem dúvida, Lazarilho de Tormes (1554), uma epístola breve dirigida a um destinatário desconhecido para justificar o processo de formação pícara do remetente. O romancista inglês vai mais além do que o no-velista castelhano. Esboça o perfil do herói/anti-herói que empresta o nome ao relato através de dois incidentes isolados de intimidades masculinas praticadas à margem da lei: um no recato estudantil dum campus universitário, outro nos bastidores da alta política nacional. O primeiro ficara restrito ao núcleo fechado dos amigos mais chegados, o segundo caíra nas garras da mediatização de efeitos imediatos e duradouros. O poder de atração exercido sobre todos e a capacidade de inspirar paixões em homens e mulheres, associado às suspeitas de corrupção e de comportamento indecoroso, convertem David Drummond Sparsholt no real «caso» de toda a saga. O glamour que o envolve vence o vazio cultural que o preenche. Virtualidade maior duma obra desenhada a partir dum leitmotiv comum a muitas outras, a demonstrar que no grande rio da literatura os afluentes são sempre bem-recebidos pelo grande curso de água que os leva até ao mar.