26 de março de 2021

Reino do Algarve

Lucas Janszoon Waghenaer 
(c. 1600)

Um reino sem rei...

Sou de Lisboa, estudei no Porto, vivo em Coimbra, estou no Algarve. Nesta perspetiva, fica-se sem se saber ao certo se se está em Lagos ou em Portimão, em Silves ou em Olhão, em Vila Real de Santo António ou qualquer outra parte da extinta província e atual região do distrito de Faro. De repente, o Algarve transformou-se na maior cidade do país, numa metrópole sem o ser, com o tamanho dum velho reino sem rei, a persistir nos tempos de hoje no seio duma república há mais duma década centenária.

A unificação das antigas taifas de Silves, Tavira e Santa Maria do Algarve, inseridas no Gharb al-Andaluz muçulmano do Califado de Córdova e do Império Almorávida, deu origem ao Reino do Algarve, conquistado em momentos distintos pelas armas cristãs, com início no reinado de Dom Sancho I (1189) e concluído no de Dom Afonso III (1249), que se intitularam respetivamente Rei de Portugal, de Silves e do Algarve e Rei de Portugal e do Algarve. 

O segundo Reino da Coroa de Portugal, também disputado pela de Castela, será separado do Reino de Niebla por Afonso X que o lega em testamento ao neto Dom Dinis, pelo tratado de Badajoz (1267). Mais tarde, com a conquista das praças de Marrocos, foi ampliado pelos Avis para Reino dos Algarves, d'Aquém e d'Além-mar em África, integrando ainda no tempo dos Bragança o efémero Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815-1822).

A singularidade da integração da taifa de Santa Maria do Algarve na Coroa Portuguesa deu-lhe o estatuto de reino de direito, nominal, sem instituições, foros, privilégios ou autonomia, um mero título honorífico e nada mais. Sa'id b HarunMuhammad al-Mu'tasim foram os seus únicos emires, não voltando a ter um rei próprio. Caso à parte no mapa administrativo do país, apesar de no referendo de 1998 ter dito não à regionalizaçãoVá-se lá entender porquê.


      BRASÕES DE ARMAS & ESTANDARTE DO REINO DO ALGARVE    
Johannes Janssonius, Atlas Contractus, 1666 
Francisco Coelho, Thesouro de Nobreza, 1675
VABL Design,  Armas Reino de Algarve, 2019

21 de março de 2021

Dia Mundial da Poesia


Al certamen en la canonización de San Reimundo,
donde se mandó se alabase la castidad del santo en dejar al Rey porque no dejaba su dama, cuando para huir echó la capa en el mar y navegó sobre ella. Mandóse que el soneto fuese en portugués y que comparase la castidad del santo con alguno de los patriarcas del Antiguo Testamento 
 
Se casto ao bom Joseph nomea a fama,
só porque lá no meio da sua idade,
único exemplo foi da castidade,
de cujo nome o santo autor o chama;
se mais naon fizo que fugir da dama,
lançando a capa co suma honestidade
nas taon inmigas maons que à sua vontade
lhe quiseram forçar na branda cama,
melhor, Raimundo, a fama casta é vossa,
pois que naon só fugis da que vos segue,
mais também da que segue ao Rei furiosa.
Ele lançou a capa à que o persegue;
vós, pela naon olhar na lusuriosa
maon, a lançaes no mar onde navegue.

Don Francisco de Quevedo y Villegas 
Las tres Musas últimas castellanas.
Segunda cumbre del Parnaso español (1670)

17 de março de 2021

El Greco e o enterro miraculoso do Senhor Conde de Orgaz em Toledo

            EL GRECO            
Δομήνικος Θεοτοκόπουλος - Doménikos Theotokópoulos 
«El Entierro del Señor de Orgaz»

  Maneirismo místico toledano  

Toledo é conhecida como a cidade das três religiões: a muçulmana, a judaica e a cristã. A cidade mítica da tolerância medieval, anterior à Inquisição, é também a cidade das ciências e do espírito, assente na arquitetura, astronomia, filosofia, matemática e medicina, em grande parte devido à escola de tradutores que dominavam o árabe e o verteram para latim. A cidade imperial de Afonso X, o Sábio, é também a cidade de confluência dos artistas e das artes, aquela que Doménikos Theotokópoulos, El Greco, escolheu para viver e criar, rodeado da cultura hispânica dos minaretes e dos campanários, das fortificações mudéjares e das igrejas góticas, das ruelas tortuosas e inspiradoras, encontro de rotas a ligar a tradição oriental pretérita à ocidental nascente.

Visitei a cidade várias vezes. Numa delas, dediquei parte do dia a olhar de perto El Entierro del Señor / Conde de Orgaz, uma das telas mais famosas do grande mestre da pintura maneirista greco-castelhana, exposta desde a sua criação na Capilla de la Conceptión da Iglesia de Santo Tomé. Paguei o ingresso, dei uma volta pelo templo e sentei-me num banco corrido a observar o quadro monumental que ali me levara. Aproveitei para ouvir atentamente as descrições proferidas em diversos idiomas pelos guias turísticos que por ali passaram. No final, tirei as minhas próprias ilações do que vira, baseado nos conhecimentos que já dispunha e no cruzamento de informações nem sempre coincidentes ali transmitidas pelos cicerones de turno.          

Dizem os meus olhos que a representação icónica está repartida por dois planos distintos da existência humana. No superior vislumbramos um cenário celeste da vida eterna, regido por Jesus Cristo rodeado de Anjos e Bem-Aventurados. A seus pés figuram ainda a Virgem Maria e São João Batista, ladeados por São Pedro e São Paulo. Recebem na sua companhia a alma de Gonzalo Ruiz de Toledo, Senhor da cidade de Orgaz, benfeitor da Igreja, por si reedificada e ampliada. No inferior representa-se o enterro daquele que fornece o nome ao óleo e tema central da mesma. A colocação no túmulo é feita por Santo Agostinho e Santo Estêvão, que desceram à terra para honrar o piedoso cavaleiro, na presença duma procissão de fiéis que assistem ao ofício divino.

Regressei à cidade outras vezes, com passagens mais ou menos prolongadas, mas não voltei a visitar o retábulo colocado por cima do túmulo do benemérito falecido 250 anos antes de ter sido retratado. Ao longo dos anos tive ocasião de admirar outras obras do autor nos mais diversos locais. Os exemplares expostos na catedral de Toledo, nos museus do Prado em Madrid e Provincial de Belas Artes de Sevilha, na National Gallery em Londres e até no Palácio da Ajuda em Lisboa, foram incapazes de marcar a minha memória do mesmo modo e intensidade como o daquele préstimo fúnebre milagroso fixado num painel pintado por um dos maiores criadores plásticos de todos os tempos. Amor à primeira vista. Paixão para toda a vida. Em arte tudo é possível.

12 de março de 2021

Carlos Ruiz Zafón, o regresso póstumo a Barcelona, a cidade de vapor e do cemitério dos livros esquecidos

«Años más tarde, en su lecho de muerte, el viejo Sempere habría de explicar cómo en aquel instante creyó ver que Andreas Corelli derramaba una lágrima que al golpear la tumba de Cervantes se convirtió en piedra. Supo entonces que sobre aquella roca empezaría a construir un santuario, un cementerio de ideas e invenciones, de palabras y prodigios que crecería sobre las cenizas del Príncipe de Parnaso, y que algún día albergaría la mayor de las bibliotecas, aquella en la que toda obra perseguida o despreciada por la ignorancia y la malicia de los hombres iría a parar a la espera de volver a encontrar al lector que todo libro lleva dentro.
Amigo Cervantes dijo al despedirse. Bienvenido al Cementerio de los Libros Olvidados.»
Carlos Ruiz Zafón, «El Príncipe de Parnaso» IN La ciudad de vapor (2020)

No intervalo de confinamentos quando as livrarias estavam abertas ao público, entrei numa para adquirir a derradeira obra de Carlos Ruiz Zafón, A cidade de vapor (2020), uma compilação póstuma muito esperada de todos os contos do autor, alguns deles inéditos, acabada de sair com a chancela da Editorial Planeta. Não havia nem a versão original pretendida nem ma quiseram encomendar enquanto durasse a pandemia que ainda anda por aí à solta. Voltei para casa com outro livro debaixo do braço e voltei ao ataque agora pela via da compra indireta em-linha. Recebi-o ao fim de pouco tempo sem problemas de permeio. E aqui está ele ao de mim a convidar-me a abri-lo, a folheá-lo, a deliciar-me com as palavras de fantasia que só o seu criador sabia escolher. Inigualáveis, irrepetíveis, incomparáveis.

Lidos os contos e regressado à cidade dos malditos, das névoas e neblinas, das penumbras e nevoeiros, à cidade de vapor, a sensação sentida é a do puro prazer que só experimenta quem tem um amor muito especial pelos livros e pelos universos fingidos feitos à medida do mundo real que pisamos. Neste caso concreto, o criador das fábulas contadas de vidas imaginadas assenta arraial em Barcelona com um pulo rápido a Madrid, num período de tempo que vai desde os Séculos de Ouro dos Áustrias aos dias conturbados da Guerra Civil Espanhola dos Borbones, da II República e da ditadura franquista. Fá-lo num estilo eclético, onde predominam as luzes e as trevas, feito à medida das ficções juvenis de aprendizagem, de contexto histórico, ao jeito gótico de amores, mistérios e aventuras peregrinas, com pinceladas de thriler policial e político, de fantasia pura a roçar o estranho e o maravilhoso, da paródia e do pastiche, do relato dentro do relato. Émile de Rosiers Castellaine, o editor dos textos, considera o estilo zafoniano muito próximo do dickensiano e do borgiano, que podemos observar em mais duma passagem, sem deixar de traçar a sua marca pessoal muito particular. Inebriante, imbatível, indescritível.

Nestes onze fragmentos de dimensão variável, voltamos a tropeçar com atores, cenários e tramas já tratados em momentos anteriores. Por vezes dá-nos a sensação de estarmos na presença de episódios perdidos ou de fácil integração na tessitura narrativa da Trilogia da neblina ou na saga do Cemitério dos livros esquecidos, ou muito próximos da Marina, a obra preferida do autor. O primeiro reencontro é o de David Martín, que nos é apresentado ainda criança e em modo de memórias dum embrionário contador de histórias e protagonista d'O jogo do Anjo. Já com o estatuto de escritor de sucesso fugidio, é citado em forma de epígrafe extraída dum fragmento perdido d'O prisioneiro do Céu, uma das suas obras publicadasSeguem-se outros nomes familiares da tetralogia, muito embora situados em tempos distintos, como será o caso de dois fazedores de livros, sediados junto à porta de Santa Ana. O quatrocentista Raimundo de Sempere, criador duma biblioteca secreta, verdadeiro labirinto ou cidade do livro, que abrigasse as obras proibidas pelo grande inquisidor Jorge de León; e o seiscentista Antoni de Sempere, editor duma fictícia tragédia em três atos e uma epístola de Miguel de Cervantes, intitulada Um poeta nos infernos. As figuras do irónico Sancho de la Torre e do enigmático signore Corelli completam o quadro. Imparável, incrível, invencível.

O ambiente que vai das páginas inaugurais d'A sombra do vento às derradeiras d'O labirinto dos espíritos, num contínuo de sucessos editoriais sem paralelo que faltaram aos criadores de ficções criados pela ficção do mais bem-sucedido escritor catalão de todos os tempos. O cenário das Ramblas barcelonesas, as referências à Igreja de Santa Maria do Mar ou da Catedral-Basílica Metropolitana da Santa Cruz e Santa Eulália, bem como à catedral de ferro da estação de França, ao templo expiatório da sagrada Família ou ao parque Güell de Antoni Gaudí, à Vía Layetana, ao Barrio de la Ribera ou ao Ensanche não voltarão a servir de palco a mais nenhuma história de Carlos Ruiz Zafón. É tempo de dizer adeus a novos textos deste fabricante por excelência de sucessos literários. Agora só nos resta voltar à companhia dos consagrados, aqueles que pertencerão sempre a um grande Parnaso dos Livros Imortais. Inesquecíveis, indestrutíveis, inolvidáveis.

8 de março de 2021

As três rainhas

DAMAS DE AZUL

Τοιχογραφία με γυναίκες στο Ανάκτορο της Κνωσού
[Fresco do palácio de Knossos - Creta - Grécia (1700-1300 AEC)]

Princesas, Infantas, Rainhas & Cortesãs...

Diz-se que a nobreza tinha o sangue azul porque não necessitava de se expor diariamente aos raios ultravioletas do Sol. Sobretudo as titulares de mais alto estatuto, que abrangia as princesas, infantas e rainhas nascidas em berço de ouro e lençóis de cetim, mas também as cortesãs deitadas nos leitos reais despidas das sedas e pedrarias que antes as cobriam. A pele dum branco imaculado dava a sensação das veias cerúleas serem percorridas por um líquido vital diferente do vermelho vivo da restante plebe. Tudo isto nos tempos áureos em que os banhos de mar e a obtenção dum bronzeado perfeito não estavam ainda na moda como acontece nos dias de hoje e o moreno efémero de verão é cobiçado por todos, pelos filhos de algo ou de quem quer que seja.

As cabeças coroadas ou a elas associadas também não terão fugido a esta regra nos 770 anos que a Monarquia Lusitana geriu os destinos dum Reino agora convertido em boa hora numa República. Entre 1140 e 1910, anos em que Dom Afonso Henriques se autointitula Rei dos Portugueses e Dom Manuel II foi destronado, sentaram-se junto do soberano 36 soberanas, se as contas me não falham, 33 rainhas estrangeiras provenientes duma dúzia de cortes europeias de aquém e além-Pirenéus, sobrando três únicas rainhas consorte nadas e criadas em território nacional, escassíssimo número para tão extensa lista de alianças matrimoniais de estado, que geraram tantos príncipes, infantes e reis, quase todos eles portugueses a meio gás.

Dona Leonor Teles de Menezes (c.1350-1386), a quem Fernão Lopes apelidou de Aleivosa na Crónica de El-Rei D. Fernando e na primeira parte da Crónica de El-Rei D. João I de Boa Memória, pelo seu comportamento leviano medido à luz dos padrões vigentes na época. Por motivos de ordem estritamente política, separou-se do primeiro marido de quem tinha um filho, para se matrimoniar em segredo com Dom Fernando. Quando enviuvou, foi governadora e regente do reino, em nome da filha menor, Dona Beatriz, casada com o rei Dom João I de Castela, e assumiu a sua ligação com o Conde Andeiro. Odiada por tudo e por todos, foi uma das principais causadoras da crise de 1383-85, que substituiria a dinastia de Borgonha pela de Avis.

Dona Isabel de Coimbra (1432-1455) é a menos conhecida das três rainhas mas simultaneamente aquela que mereceria ser designada de Desejada, pela paixão que despertou no consorte, o rei Dom Afonso V, seu primo direito, por serem ambos netos de Dom João I, o Mestre, de Avis e de Dona Filipa de Lencastre. Eram também filhos da Ínclita Geração, ele do rei Dom Duarte, o Eloquente, ela de Dom Pedro, o infante das Sete Partidas. A guerra fratricida instigada pelo duque de Bragança, levaria à morte do pai na batalha de Alfarrobeira, travada contra as forças reais. A sua fidelidade e amor ao marido permitiu-lhe reabilitar o bom nome do progenitor e a trasladação do seu corpo para o Mosteiro da Batalha, onde jaz na capela do fundador.

Dona Leonor de Lencastre (1458-1525), a Rainha Velha dos autos de Gil Vicente, mecenas e humanista, promotora do manuelino, fundadora da Misericórdia de Lisboa e do Hospital Termal das Caldas da Rainha, continua a ser a mais conhecida das três, merecendo o epíteto de Princesa Perfeitíssima. Prima e nora da anterior, a infanta casou-se com o futuro rei Dom João II, primo e neto como ela de Dom Duarte. A execução do irmão e do cunhado por motivos políticos, bem como a morte trágica do filho amarguraram-lhe o resto da vida, dificultando a relação com o marido. Dizem as más-línguas que o terá mandado envenenar. O Renascimento no seu melhor, a lembrar-nos por A+B que não há bela sem senão ou que no melhor pano cai a nódoa.

OLHARES DAS TRÊS RAINHAS 
 A Aleivosa (Em frente) – A Desejada (Para baixo) –A Perfeitíssima (para cima)

6 de março de 2021

Uma saída luminosa

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
L’issue lumineuse (1983-1986)
[Collection privée, Paris]


... une ouverture vers l'extérieur, une sortie, une issue...

« Un paysage abstrait : au centre supérieur de cette composition, faite d’un empilement de rectangles rouges et ocre sur la gauche, plus blancs et irréguliers à mesure qu’on va vers le centre et la droite du tableau, l’œil est attiré par un espace blanc, une sorte de fenêtre carrée, qui s’ouvrirait vers un autre espace, extérieur, lumineux, un volume en forme de cube. Cette impression première correspond au titre du tableau de Maria Helena Vieira da Silva intitulé L’Issue lumineuse. Que ce carré ou ce cube blanc évoque un fenêtre, ou une ouverture vers l'extérieur, une sortie, une " issue ", comme le suggère le titre, suppose que ces strates colorées soient une architecture intérieure, mur ou panneau rayonnages de livres entassés, par exemple. La haute colonne lumineuse, à droite du carré, de même que les petits rectangles verticaux, à l’extrême droite, ouvertures ou pavés de verre, confirment cette référence à l’architecture : Le peintre, faisant alterner des volumes clairs et des masses sombres, définit plusieurs espaces dans le tableau, particulièrement en son centre dont la perspective nous introduit à un au-delà de la toile. C’est donc une idée de seuil, de passage d’un espace à un autre, qui domine cette peinture à l’huile, exécutée entre 1983 et 1986 sur une toile rectangulaire d’assez grande dimension (10 cm de hauteur et 97 cm de largeur), dont la verticalité est rythmée par cinq colonnes, verticales elles aussi, mais irrégulières, remplies de strates parallélépipédiques horizontales : la diversité des couleurs et du monde d’intrication des formes donne une sensation de désordre organisé, mais peut-être surtout de liberté. La partie centrale du tableau, sur toute la largeur, est plus irrégulièrement disposée, autour du carré lumineux, puisque les rectangles horizontaux, qui apparaissent au centre et soulignent l’arrête inférieure du carré, rencontrent les hauts rectangles verticaux qui en marquent les arrêtes latérales et sont prolongés par des stratifications plus irrégulières. La structuration de cette diversité formelle se fait plutôt par la couleur, et l’opposition entre des masses contrastées, sombres à gauche, claires à droite»

Agnès Verlet, « L'issue lumineuse de Maria Elena Vieira da Silva » (frag.), IN Pierre Péju, La petite Chartreuse (Paris: Gallimard, 2002, 2006, pp. 159-160)

Obs.:
Ekphrasis duma tela luminosa de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), no dia em que se cumprem 29 anos da sua entrada na imortalidade... 

1 de março de 2021

Lawrence Durrell, Clea: o quarto ato do Quarteto de Alexandria


«“He gave a croaky sob and crawled out from between the sheets, looking ridiculous in his long woollen combinations, to hunt for a handkerchief in the chest of drawers. To the mirror he said: The most tender, the most tragic of illusions is perhaps to believe that our actions can add or subtract from the total quantity of good and evil in the world.”»
Lawrence Durrell, Clea (1960: iv)

A Grécia Antiga foi a criadora absoluta da Tragédia e do Romance. É sabido longa data. O género dramático surgiu dos hinos dedicados a Dioniso, o deus de origem tebana que nasceu duas vezes; o género diegético, mais tardio, constitui uma evolução natural da Epopeia ver-sificada para a prosificada. Tanto um como outro tratam de assuntos idênticos, divergindo no facto do primeiro se limitar a mostrar os even-tos pretéritos num teatro (local público onde se vê) e o segundo de os contar através das imagens verbais impressas num livro (local individual onde se lê). O quarteto de Alexandria de Lawrence Durrell participa destas duas caraterísticas formais: é uma sucessão de ficções que são descritas e narradas por intermédio do mediador autoral. Acresce que este não se exime de transcrever um ou outro poema disperso de autores da sua predileção, sobretudo os de Konstantinos Kaváfys, poeta grego da cidade por si traduzidos-adaptados, parafraseados-transcritos na íntegra em anexos finais, entre outros ingleses, como George Darley, numa referência irónica ao narrador homónimo das duas primeiras partes da obra e também desta Clea (1960), a quarta e última etapa da saga.

A ligação de todos estes episódios do quotidiano atual ao universo helénico clássico está constantemente a ser lembrado. Os aspetos de encenação teatral aparecem amiúde no texto, com um enfoque muito especial no caráter funesto dos episódios qualificados de trágicos. A estrutura seguida também nos remete para essa imitação do mundo real das pessoas de carne e osso nas páginas dum livro de papel e tinta. Por altura das festividades anuais dedicadas ao filho de Sémele e Zeus, eram apresentadas a concurso três tetralogias dramáticas, constituídas por três tragédias e um drama satírico, que podiam ou não seguir uma linha condutora unitária ou tratar de assuntos distintos. Se me é permitido estabelecer alguns paralelismos distanciados 2600 anos no tempo entre o modo de recordar os mitos do período áureo ateniense (sécs. ⅵ-ⅴ AEC) e os fragmentos de vidas vividas coligidos muito recentemente (séc. ⅹⅹ EC), diria que a trilogia inicial Justine-Balthazar-Mountolive se incluiria no grupo das tragédias, pelo seu caráter mais contundente de levantamento de problemas de difícil resolução imediata pela vontade humana, e Clea o remate do quarte-to alexandrino, pelo seu caráter mais festivo e alegre, corolário lógico da tetralogia. Um par de heroínas e um par de heróis. Mais uma vez a simplicidade dos inventores absolutos da literatura ocidental.

Quando as cortinas sobem pela última vez nas páginas impressas da ficção, retomamos as primeiras aberturas, mas em sentido inverso. Depois de passar uma temporada imprecisa numa das Cícladas gregas, Darley prepara-se para regressar a Alexandria a convite de Nessim. Leva consigo a filha que este tivera com Melissa. A entrada no porto é feito em ritmo de hino triunfal sob um bombardeamento da II Guerra Mundial. Esta, que até aí só tinha sido referida de raspão, surge logo nas primeiras cenas dignas duma descrição épica ou dum párodo dramático da condição humana. Os ecos da conceção cénica dos quatro relatos maiores com título de capa e folha de rosto voltam a manifestar-se no final de cada uma delas, entendidas como um todo com identidade própria. Ao cortejo rítmico de entrada corresponde sempre um canto rítmico de saída do coro ou êxodo de despedida. O narrador-corifeu subjetivo da peça-relato, cumprido o seu destino na antiga terra de faraós, de ter resolvido os problemas existenciais das memórias de amores antigos, aos amigos e lugares da cidade que fora sua durante o longo período de aprendizagens juvenis, vira costas ao Oriente e dirige-se ao Ocidente. A passagem simbólica pela ilha anónima perdida do mar Egeu. A circularidade do percurso diegético-dramático estava concluído. Leva consigo a imagem redentora de Clea que espera reencontrar, mais cedo que tarde, em Paris, para reconstruirem em conjunto uma vida nova ou uma nova fase da mesma.

À imagem do Rei Édipo (c. 429/425 AEC) de Sófocles, que percorre um árduo e longo processo de autoconhecimento, também Darley efetua o seu com os restantes parceiros de caminhada, sem todavia enveredar pela autopunição. Os tempos são outros e a catarse faz-se por meios menos invasivos, através da autópsia exaustiva das ruínas de amores-paixões-amizades deixadas para trás. Na autocrítica de-sapiedada aos seus comportamentos pretéritos de aprendizagem, no autorretrato irónico caricaturado como se tratasse dum epitáfio registado num espelho com espuma de barbear. No fundo, resulta numa reflexão pessoal do próprio autor romancista-encenador, que desenha na personalidade controversa de Pursewarden uma espécie de alter ego literário, sobretudo em «Os meus diálogos mudos com Frei Burro», um trecho dos cadernos, uma verdadeira diatribe sobre a escrita do romance subvencionado e produzido acriticamente por uma cultura puritana, cheia de sarro e ignorante da arte. Para tal, contribuiu a experiência individual de alguém que viveu vários anos na Grécia, repartido pela ilha de Corfu e pela capital Atenas, de ter vivido a parte final da guerra no Egito e de se ter depois instalado definitivamente em França, vivências que se deixam ver ao longo do texto, designadamente nos idiomas registados no relato. E, assim, o cidadão britânico nascido na Índia se converteu no grande cronista do Quarteto de Alexandria.