31 de maio de 2021

George Orwell, mil novecentos e oitenta e quatro, o ano de todas as tiranias ditatoriais e delírios distópicos

 
“Now I will tell you the answer to my question. It is this. The Party seeks power entirely for its own sake. We are not interested in the good of others; we are interested solely in power, pure power. What pure power means you will understand presently. We are different from the oligarchies of the past in that we know what we are doing. All the others, even those who resembled ourselves, were cowards and hypocrites. The German Nazis and the Russian Communists came very close to us in their methods, but they never had the courage to recognize their own motives. They pretended, perhaps they even believed, that they had seized power unwillingly and for a limited time, and that just around the corner there lay a paradise where human beings would be free and equal. We are not like that. We know that no one ever seizes power with the intention of relinquishing it. Power is not a means; it is an end. One does not establish a dictatorship in order to safeguard a revolution; one makes the revolution in order to establish the dictatorship. The object of persecution is persecution. The object of torture is torture. The object of power is power. Now you begin to understand me.”
George Orwell, Nineteen eighty-four (1949)

No início da década de oitenta, aquela que acolheu o ano apontado por George Orwell no Mil novecentos e oitenta e quatro (1949) para datar a mais negra tirania ditatorial que o mundo alguma vez vira, construíra e consentira, as vitrinas das livrarias encheram-se de novas edições, reedições e reimpressões efetuadas em todos os idiomas da cultura literária. Dava-se assim visibilidade ao universo autocrático dirigido pelo Partido do Grande Irmão, o líder real ou imaginário de rosto enorme e farto bigode preto, de beleza austera e olhar sobranceiro, representado nos telecrãs colocados no alto de cada esquina daquele estado despótico, controlado pela Polícia do Pensamento, regido pelo Ministério da Verdade e expresso em novilíngua, a destruidora de palavras inúteis da obsoleta velhilíngua.

O conceito preconizado por Platão na República (c. 379 AEC), dum mundo perfeito e possível a erigir num futuro próximo, ganhou um fôlego muito especial no século ⅩⅥ, quando Thomas Morus na Utopia (1516) o situa no seu tempo, muito embora deixasse pouco clara a sua localização exata. Depois dessa variante humanista, a nova série genérica não deixou de ser cultivada um pouco por todo o lado até chegar aos nossos dias com alguns ajustes de percurso. O caráter eutópico da primeira geração edénica ideal cede passo às atuais antecipações cronotópicas de sociedades globais, de fortíssimo sinal distópico, infalíveis, politicamente hierarquizadas e controladas com mão de ferro por uma pequena casta privilegiada. O totalitarismo imposto pela força repressiva do aparelho governativo e persuasiva do medo, do ódio e da dor ganha terreno sobre o cooperativismo igualitário e a predestinação substitui integralmente o que restava do moribundo livre-arbítrio individual.

Lidos os livros, aquele que esteve para se chamar O último homem na Europa, composto por Eric Blair, o nome de batismo de George Orwell, e a Teoria e prática do coletivismo oligárquico, atribuído ao fictício Emmanuel Goldstein, bem como o Apêndice: os princípios da novilíngua, elaborado pelo próprio romancista, fica-se de posse de todos os elementos necessários para inserir a obra no seio da sátira política, vestida com a roupagem dum aviso à navegação sobre os perigos reais dum regime totalitário erigido à escala mundial, à sombra ideológica do SOCING, o todo-poderoso Partido único da Oceânia, um dos três superestados em que o mundo à data estava dividido, em permanente e aleatória guerra ora com a Eurásia ora com a Lestásia. Por outras palavras, o conjunto de países que em tempos haviam pertencido ao espaço anglo-americano, a grande parte do continente euroasiático e às diversas parcelas geográficas do Extremo Oriente de influência sino-japonesa. Todos pretendiam conquistar sem grande sucesso o designado quadrilátero irregular, cujos vértices passavam por Tânger, Brazaville, Darwin e Hong-Kong, assim como da calote glaciar do Polo Norte.

A história de Winston Smith, o último homem, o derradeiro guardião do espírito humano, o sobrevivente isolado duma raça extinta, funciona como um ser solitário fora da nova ordem estabelecida à escala planetária, candidato privilegiado a um apagamento definitivo, a ser evaporado, segundo a gíria então em vigor naquele universo regido pelos três slogans sintetizados no duplopensar oficial, emanados pelos canais bempensantes contra a crimideia, manipuladores da informação, fabricantes da fraude consciente e controladores da realidade dos Ministérios da Paz, da Verdade, do Amor e da Riqueza: a Guerra é Paz, a Liberdade é Escravidão, a Ignorância é Força. Finda a leitura dos escritos premonitórios do corpus romanesco referidos, associados ao fragmento biobibliográfico composto por Bernard Crick, no George Orwell, A Life (1980), incluído na edição seguida, podemos reafirmar, a uma distância confortável de décadas da sua conceção (1943), redação (1947-1948) e publicação (1949), que os mais sinistros cenários antecipados para esse ano simbólico de 1984 se não chegaram a concretizar, muito embora os perigos avançados continuem à espera da melhor oportunidade para se manifestarem em toda a sua plenitude. Candidatos a Grande Irmão (Big Brother), não escasseiam por aí. Os telejornais televisivos são pródigos em apresentá-los todas as noites. Basta estar atento.

27 de maio de 2021

Historietas de hospital

Vincent van Gogh
Afdeling in het ziekenhuis in Arles (1989)

Lembrando cenas de enfermaria de um mês...

As unhas do Zé Coxo
Durante a minha última passagem pelo CHUA fui vizinho contíguo de enfermaria do Zé Coxo, antigo pescador da Fuzeta com um palmarés impressionante por outros mares atlânticos da costa de Marrocos e Mauritânia. O apodo deve-se ao facto dum problema de diabetes o ter privado duma perna. Desta feita, a maleita obrigara-o à amputação dos dedos do pé restante. Com um sorriso nos lábios e indiferente às dores que sentia, o espírito otimista que o caraterizava levou-o a comentar: «Agora, pelo menos, já não tenho de cortar as unhas dos pés».

O Filho do Desenfiado
Mesmo em frente do Zé Coxo, ficava a cama dum outro pescador mais jovem a que chamei Desenfiado, por passar o dia em lugar incerto e só regressar para dormir. Gabava-se de não ter estudado nem precisar de o fazer. O filho mais velho ganhava 7000€ por mês num clube da 2.ª divisão sem precisar de ir à escola. Na véspera de ser operado a um braço que tinha superenfeixado, desapareceu sem dizer água-vai. Preferiu brindar-nos com aquelas palavras futeboleiras registadas com as peculiares metáforas visuais das histórias aos quadradinhos: «👾❓➕❗💀🔱👿».

A Princesa das Astúrias
No meu mais recente internamento hospitalar, voltei a encontrar-me com figuras conhecidas há cerca dum ano. Médicos e enfermeiros à parte, refiro aqui a mais alegre das auxiliares de serviço. Trata todos por Príncipes e guardou para si mesma o título de Princesa das Astúrias. Numa das suas conversas habituais, confidenciou-me o seu desgosto profundo por não ter podido seguir a carreira militar. Um cancro na tiroide impedira-a de concretizar o seu sonho. Sente-se todavia realizada: «Assim, substituí a guerra que visa a morte pela guerra que visa a vida».

A Mulher Barbeira
Na segunda quinzena de abril fui de novo visitado por uma das barbeiras do hospital. Reconheceu-me de imediato, decerto por ser dos poucos a aceitarem os seus serviços de rapadoura oficial dos pelos da cara. Repetiu um par de vezes a arte de me arrancar a barba como se estivesse a cortar relva com uma sachola. Aguentei estoicamente como se nada fosse, porque no final da faina fiquei sempre com uma sensação plena de leveza. É que depois da tempestade vem a bonança. Despedi-me até nunca mais. Limitou-se a responder: «Assim espero!».

21 de maio de 2021

Fitas & Escritas

« Un jour, parlant à Florinde, appuyés tous deux sur une fenestre, lui tint tels propos : “ Madame, je vous prie me vouloir conseiller lequel vaut le mieux, ou parler ou mourir ? ” Florinde lui répondit promptement : « Je conseillerai tou-jours à mes amis de parler et non de mourir; car il y a peu de paroles qui ne se puissent amender, mais la vie perduë ne se peut recouvrer. — Vous me promettez doncques, dist Amadour, que non seulement vous ne serez marrie des propos que je vous veux dire, mais ny estonnée, jusqu'à ce qu'en entendiez la fin. ” Elle lui répondit : “ Dites ce qu'il vous plaira, car, si vous m'étonnez, nul autre m'assurera. ” »
Marguerite de Navarre, L'Heptaméron des nouvelles (1559)
[Premiere Journée, 10e nouvelle]
É melhor falar ou morrer?
filmes que se veem uma única vez e ficam gravados no nosso imaginário para toda a vida. Outros, pelo contrário, por mais que se vejam, nunca conseguem transmitir uma única ideia que mereça a pena recordar. Dos livros e doutras formas de criação artística pode dizer-se precisamente o mesmo. Neste momento, fico-me com as imagens em movimento associadas a uma coletânea de contos renascentista que a república das letras regista como uma obra de referência digna de ocupar um lugar de destaque no Parnaso, a residência de Apolo e das suas nove Musas.

Num habitual zapping rápido de exploração, deparei-me com um título que me despertou desde logo a atenção. Tratava-se do Call me by your name (2017), uma película de Luca Guadagnino, numa adaptação do romance homónimo de André Aciman. Não resisti à sua visualização integral e não me arrependo de o ter feito. Os especialistas integram a obra no universo de inspiração gay, o que não foge em muito à realidade, mas que pessoalmente prefiro considerar como uma abordagem à iniciação sexual-amorosa dum adolescente de 17 anos de origem judaica.

Com ação centrada na Lombardia, província de Cremona no norte da Itália, corria o ano de 1983, a história é-nos transmitida com diálogos travados em inglês, francês e italiano, com o recurso pontual a outros idiomas. Será o caso da leitura dum breve extrato d'O Heptaméron de Margarida de Navarra, versão alemã parafraseada livremente para a língua inglesa predominante e ponto de partida de todo o argumento cinematográfico. Fixei a pergunta que uma das personagens da 10.ª novela da coletânea coloca e que no português das legendas corresponde a algo como: É melhor falar ou morrer?

Elio resolve falar e dizer a Oliver o que sentia e o caso entre os dois aconteceu. Passaram a assumir o nome um do outro, a demonstrar que enquanto a sua história durasse eram um e um só para o que desse e para o que viesse. Demonstra também que a lição colhida num roman courtois pode influenciar o desencadear duma paixão contada com as técnicas muito particulares emprestadas às fitas e às escritas a uma distância de quase cinco séculos de devir histórico e literário. Se a imortalidade duma obra tivesse de ser comprovada este seria sem dúvida um bom exemplo.

17 de maio de 2021

Farewell to the last Prince Consort

KNAVE OF COLLARS
From The Cloisters Playing Cards | South Netherlandish
[NY -  THE MET - c. 1475-80 ]

Valete - Dama - Rei 
Nos baralhos de jogar, as cartas têm valores diferentes, consoante a importância crescente dos números nelas registado ou da posição hierárquica das figuras que as compõem. Nas famílias reais, se excluirmos o Rei (King), a Dama (Queen) chama-se Rainha e o Valete (Jack) quase nunca chega a Rei. Quando muito, pode ser promovido a Príncipe Consorte. Assim tem acontecido nos últimos tempos nos Reinos onde a monarquia ainda teima em persistir.

Depois do desaparecimento do último consorte europeu, parece que vivemos numa monarquia universal regido pela Rainha Isabel II a partir do Reino Unido, com maior ou menor incidência na meia centena de países da Commonwealth que ela tutela. Entre 9 e 17 de abril deste ano, datas da morte e funeral de Filipe Mountbatten, Duque de Edimburgo, os mass media não têm parado, até que outro trespasse, divórcio ou escândalo real os volte a animar.

O problema dos príncipes consortes não se deverá colocar nos próximos tempos, dado que três gerações de Reis soberanos estão garantidas pelas leis da progenitura masculina. A ver vamos com o caso da consorte do atual Príncipe de Gales, quando ascender ao trono. Rainha ou mera Princesa Consorte, haverá que aguardar para saber qual a sorte de Camilla Rosemary Shand, atual Duquesa da Cornualha, de Rothesay e de Edimburgo. Quem viver verá.

13 de maio de 2021

Karen Blixen, uma história imortal da baronesa contadora de histórias

„Jeg holder ikke af opspind, jeg holder ikke af profetier. Det er forrykt og uanstændigt at give sig af med uvirkelige ting. Jeg holder mig til virkeligheden. Jeg skal sørge for at forvandle dette stykke opspind til virkelighed
Karen Blixen, Den udødelige historie (1958)

O meu fascínio pela escrita de Karen Christetze Dinesen é antigo e perene. Data do início dos anos oitenta, quando visitei a Dinamarca pela primeira vez. Lidos os livros disponíveis no mercado, me resta voltar às segundas e terceiras leituras que nos trazem sempre algo de novo a explorar desse manancial singular que nos legou, em parte já editado com caráter póstumo. Recomecei a viagem com a História Imortal, um dos cinco contos inseridos na coletânea Anecdotes of Destiny / Skæbne-Anekdoter (1958) e mais tarde impressos avulso.

O exemplar que tenho comigo corresponde à mais antiga tradução portuguesa feita e publicada entre nós da obra da grande contadora de histórias de inspiração gótica, a quem alguém considerou com legítima razão a Sherazade do Século Vinte. Foi-me oferecido pela Sílvia S., residente no país e profunda admiradora da Baronesa Blixen-Finecke, aquando do lançamento pela Assírio & Alvim em 1985 do relato. Escrito originalmente em dinamarquês e vertido depois pela autora para inglês, ou vice-versa, as duas variantes divergem nos pormenores, mantendo, todavia, uma estrutura narrativa idêntica. Para conciliar em parte as discrepâncias encontradas, a versão composta e prefaciada por Aníbal Fernandes seguiu de muito perto a fonte gaulesa que vertera diretamente da escandinava em detrimento da britânica.

Condicionada pelo seu estatuto de mulher, a contista-novelista recorreu a diversos pseudónimos para tornar pública a sua produção literária. O mais divulgado foi o de Isak Dinesen, mas também o de Osceola e Pierre Andrézel, tendência masculinizante mais seguro na época para garantir algum sucesso editorial, prática que as modernas edições têm vindo a desfazer, substituindo-os a todos eles pelo de Karen Blixen, um semiortónimo pelo qual a Baronesa passou a ser reconhecida nos dias de hoje no universo das letras tomadas a nível internacional.

Cruzadas todas as lições disponíveis do texto, incluindo a adaptação cinematográfica de Orson Welles de 1969, fica-nos como pano de fundo o conto que Mr. Clay, um poderoso comerciante de chá de Cantão, mão de ferro e espírito avarento, ouvira em tempos sobre um marinheiro que fora abordado à chegada a um porto por um velho muito rico e lhe propusera, a troco de cinco guinéus, engravidar a jovem esposa que até ao momento lhe não dera nenhum filho a quem deixar a sua imensa fortuna. Ao aperceber-se tratar-se duma ficção repetida de boca em boca como uma anedota em que ninguém acreditava de facto, resolveu torná-la realidade, porque detestava profecias e não era de acreditar em fábulas imaginárias. Assim o pensou, assim o fez, transformando esse seu projeto numa verdadeira história imortal.

Os pormenores seguem nas oito dezenas de páginas imaginadas pela ilustre aristocrata de Rungstedlund, nas imediações de Copenhaga, aquela que esteve casada com um barão sueco, que teve e viu falir uma plantação de café no Quénia e que para sobreviver financeiramente foi obrigada a dedicar-se à literatura aquando do seu regresso ao país natal. Em boa hora o tomou essa decisão, dado a vida do café ser efémera, desaparecendo para sempre depois de plantado, processado, torrado, fervido e bebido, enquanto a vida dum conto bem contado renasce em cada momento que o lemos, podendo ascender à esfera superior da eternidade. Assim aconteceu com esta história imortal cuja perenidade já vinha registada no próprio título com que foi composto, impresso e oferecido aos leitores, que somos todos nós.

9 de maio de 2021

A Europa das Luzes no dia que lhe é dedicado

NASA
Satellite view of Europe at night
Iluminismo, Lumières, Aufklärung, Enligthment: O fenómeno das Luzes, longe de ser nacional, singular e segmentar, apresenta-se como europeu.
Jacqueline Russ, A aventura do pensamento europeu (1995)

Olho e volto a olhar para a Europa noturna captada por um satélite da Nasa e, por mais que olhe e reolhe, não vejo nenhuma princesa, ninfa ou deusa deitada como nos garantiam as velhas lendas etiológicas helénicas. Não vejo e nunca verei, a menos que se trate duma versão atualizada, concebida à maneira cubista da modernidade pictórica, seguindo o modelo dos seus mais destacados cultores. Ou, então, reconhecer que a tecnologia que hoje em dia nos rege tem o condão de transformar os mitos em contramitos.

Observo e volto a observar a tal fenícia de origem argiva raptada por Zeus e, nos locais anatómicos onde deveria encontrar os braços, e enxergo algo semelhante a uma bota na península italiana e uma espécie de coto na península dinamarquesa. Quanto às pernas e pés da célebre heroína de sangue real, topo com uma sorte de barbatana na península escandinava. Só a península ibérica se parece com um rosto, mais com o pintado por Picasso na Guernica do que a descrita por Ovídio nas Metamorfoses.

Analiso e volto a analisar a imagem aérea dum continente tido por alguns como divino para alguns e só vislumbro luzes. As que se veem à noite e sentem com os restantes sentidos durante o dia. As fronteiras do antigo Império Romano estão bem iluminadas na fronteira oriental, perdendo-se em intensidade na parte nascente da Eurásia, mantendo um brilho ainda considerável nas margens do Mediterrâneo Norte e do Mar Oceano, quase desaparecendo na vertente africana do Velho Mundo Greco-Latino.

Miro e volto a mirar a filha de reis e amada do pai dos deuses e só lobrigo o fulgor olímpico que lhe foi dado pelo senhor dos trovões numa altura em que o divino se unia ao secular. Fonte de luz iluminista que deu novas formas de encarar o mundo e de o tornar mais ameno para quem nele vive. No dia em que se celebra o Dia da Europa, esperemos que esta filosofia baseada na razão e liberdade persista para sempre, imortal, como soía acontecer com os descendentes de Cronos, o deus primordial do tempo.

5 de maio de 2021

Histórias da Língua

«Em 1297, findado o processo de Reconquista, D. Dinis, monarca e grande mecenas da literatura trovadoresca, adotou o português como língua do reino de Portugal, assim como seu avô Afonso X, o Sábio (1221-1284), monarca de Leão e Castela, anos antes fizera com o castelhano, ao mandar redigir na língua grandes obras históricas, astronómicas e legais. O caráter oficial possibilitou ao português seu desenvolvimento autónomo em relação ao galego, língua esta que, em virtude da expansão territorial portuguesa e da dominação castelhana, perdeu a importância literária de outrora.»
R. Costa; e L. Vecovi, «Ainda suspira a última flor do Lácio?» (2015)

  Dia Mundial da Língua Portuguesa  

Fala-se muito tempo na integração do Português no seio das línguas oficiais da ONU, dado ser a mais difundida no Hemisfério Sul e a terceira no Ocidental, para além de ser a sexta a nível global. A grande objeção situar-se-ia nas divergências escritas que separavam as normas escritas portuguesa e brasileira, problema resolvido com o Acordo Ortográfico de 1990, que agora o mundo lusófono interpreta à sua maneira, não afastando as habituais questiúnculas atávicas de lana-caprina que nos caraterizam. Como se as diferenças existentes entre o francês europeu e o canadiano, o inglês britânico e o ianque ou o castelhano peninsular e o hispano-americano tenham impedido a sua oficialização pelos estados-membros que o constituem

A iniciativa até é louvável mas algo difícil de concretizar como tem vindo a ser demonstrado. Nem a eleição de António Guterres como nono Secretário-geral da Organização das Nações Unidas em 2017 resolveu o impasse. Aliás, seria muito pouco espetável que fora do espaço da lusofonia as suas intervenções internacionais passassem a ser proferidas na língua materna no desempenho das suas funções. Fá-lo-ia tanto como grande parte dos deputados nacionais ao Parlamento Europeu o fazem no seio da União Europeia, muito embora o Português seja um dos seus idiomas oficiais, preferindo fazê-lo em Inglês, mesmo após a consecução do Brexit e da saída subsequente do Reino Unido da associação de países em 2020. 

Polémicas à parte, celebra-se hoje nos nove países da CPLP, o Dia Mundial da Língua Portuguesa, instituída em 2019 pela Unesco. Data recente em comparação com a própria idade do idioma, difícil de achar, embora disponhamos de alguns dados para a sua identificação relativa. Sabe-se, por exemplo, cumprir-se agora o 725.º aniversário da sua adoção como língua oficial das chancelarias régias de Dom Dinis, ocorrida em 1297. Todavia, parece que desde 1255 Dom Afonso III já o fazia a par do Latim. Depois, consideremos ainda os documentos mais antigos redigidos em vernáculo, como a Notícia de Fiadores de 1175, lavrada no reinado de Dom Afonso Henriques. Mais ano menos ano, aqui ficam os meus votos de parabéns.