28 de setembro de 2023

Las rebeldías de Jeanette

Jeanette, Soy Rebelde Tour 2023 T-Shirt

«Yo soy rebelde | porque el mundo me ha hecho así | porque nadie me ha tratado con amor | porque nadie me ha querido nunca oír. | Yo soy rebelde | porque siempre sin razón | me negaron todo aquello que pedí | y me dieron solamente incomprensión || y quisiera ser como el niño aquel | como el hombre aquel que es feliz | y quisiera dar lo que hay en mi | todo a cambio de una amistad | y soñar | y vivir | y olvidar el rencor | y cantar | y reir | y sentir solo amor.»
Manuel Alejandro, Soy rebelde (1971)

Ecos lejanos de La Inglesita...

No início da década de 70, falhei umas apetecíveis férias de verão em Conil de la Frontera, uma estação balnear andaluza da Costa de la Luz, a dois passos de Cádiz e Gibraltar. O Botas de Santa Comba acabara de esticar o pernil cerca dum ano, mas a perpetuação do anquilosado império colonial português teimava em manter-se de pé e à custa de muitos balões de oxigénio, ministrados cirurgicamente em três frentes africanas de combate antiguerrilha independentista. A maioridade estava às portas e de mãos dadas com o serviço militar obrigatório, a impedirem-me de cruzar as estremas do Caia e rumar decididamente até às águas cálidas do sul ibérico.

Nesses tempos de espera prolongada por uma mudança que tardava a chegar, seguia com apreensão contida o evoluir da situação pouco invejada do tal jardim à beira-mar plantado. De Espanha não vinham nem bons ventos nem bons casamentos. Não vinha em bom rigor absolutamente nada. Os dois eviternos rivais de glórias perdidas no passado viviam de costas voltadas como se ignorassem a existência efetiva do outro. Um encontro recente numa estância termal alterara de modo radical as minhas ideias feitas e batidas sobre a realidade vivida do lado de da raia. Fiz amigos perenes naquele ambiente sulfuroso de águas mornas e conversas calorosas. 

Dias vêm, dias vão, salta-se à vez do lazer para o quefazer. Os meus ócios/negócios de estudante na grande cidade resumiam-se então a muito pouco. Omito-os. Recebi nesses dias uma lembrança dos meus amigos das termas com quem estabelecera um contacto que dura até hoje. Um disco que ocupava à data os tops musicais de vendas. Um sencillo 45rpm da desconhecidíssima Jeanette. Na Cara A do vinil, La Inglesita rendida à cultura espanhola interpretava uma muita juvenil Soy rebelde (1971). Como recado subliminar escreviam-me desde a margem interdita do além Caia que, de vez em quando, urgia exercer o direito capital a uma certa e acertada à rebeldia.

Quando voltei ao convívio adiado dos meus amigos em terras outrora vedadas, a fama efémera da jovem londrina radicada na pele de touro peninsular  se perdera muito na espuma dos dias. Os acordes das rebeldias adolescentes com que fora lançada permaneceram todavia gravados na memória coletiva das gentes. As palavras entoadas pela cantante hispano-britânica mantêm-se teimosamente no ar, de pedra e cal, sem darem o menor sinal de cair e a justificarem a realização dum world tour comemorativo do 50.º aniversário da sua criação. Mistério análogo à fugaz existência das estrelas-cadentesSurgem, brilham, morrem e renascem viçosas no ano seguinte.      

 

22 de setembro de 2023

Quartetos de cordas, rimas & luzes

Salvador Dalí,  La persistència de la memòria, 1931
[NY, Museum of Modern Art - MoMA ]
«O tempo presente e o tempo passado | Estão ambos talvez presentes no tempo futuro, | E o tempo futuro contido no tempo passado. | Se todo o tempo estiver eternamente presente | Todo o tempo é irredimível. | O que poderia ter sido é uma abstração | Permanecendo uma possibilidade perpétua | Somente num mundo de especulação. | O que poderia ter sido e o que foi | Apontam para um fim, que está sempre presente.»
T. S. Eliot, Quatro quartetos (1943: 1,1-11)

Tempo de ver, ouvir e sentir...

A televisão ainda nos pode surpreender quando menos se espera. Muito de tempos a tempos, tropeçamos inadvertidamente com um ou outro filme apetecível, perdido no meio de muitos outros de mediana ou nula qualidade que pululam nos mais de 300 canais postos à nossa disposição 24 horas por dia, em sinal aberto ou por cabo.

Num desses encontros imediatos dum qualquer grau indeterminado, deparei-me com um três em um como nos champôs em campanha de promoção, elaborado em torno de três quartetos com acordes filmados, declamados e tocados. Abençoada falta de sono que me permitiu insistir num zapping fortuito de resultado imprevisível.

Uma navegação rápida na Net lembrou-me ter sido a RTP a exibir A Late Quartet (2012) de Yaron Zilberman, apresentado como um quarteto único na página de divulgação da estação. A ideia de finitude temporal da história a ser assim anunciada ab initio aos potenciais telespetadores dos 105 minutos de duração da fita.

A sintonia mantida pelos executantes do Streichquartettt Nr 14 (1826) de Beethoven ameaça ruir após um quarto de século de sucessos ininterruptos. A saúde do violoncelista, a rivalidade dos violinistas e a crise conjugal dum deles com a violetista põe em risco a realização daquele que poderá ser o derradeiro e tardio concerto do grupo.

As dificuldades da peça musical em sete tempos são vencidos pela qualidade das execuções registadas na película. Convite para a ouvir na íntegra num outro contexto e proceder à leitura atenta dos Four Quartets (1943) de T. S. Eliot. Depois, felicitar o canal público televiso por nos permitir fruir de modo tripartido a cultura que nos é devida.

    QUARTETOS FILMADOS, DECLAMADOS & TOCADOS 

18 de setembro de 2023

Aldous Huxley e o admirável mundo novo onde existem tais criaturas

«“Who’s Miranda?” But the young man had evidently not heard the question. “O wonder!” he was saying; and his eyes shone, his face was brightly flushed. “How many goodly creatures are there here! How beauteous mankind is!” The flush suddenly deepened; he was thinking of Lenina, of an angel in bottle-green viscose, lustrous with youth and skin food, plump, benevolently smiling. His voice faltered. “O brave new world,” he began, then suddenly interrupted himself; the blood had left his cheeks; he was as pale as paper. […] “O brave new world,” he repeated. “O brave new world that has such people in it.»

Umberto Eco deixou registado no I mondi della fantascienza versão reduzida duma comunicação de 1984, proferida em Roma num convénio sobre ciências e ficção científica*  a circunstância de toda a criação literária se basear na delineação de mundos estruturalmente possíveis, fixando uma linha nem sempre nítida entre as condições factuais do mundo real e as contrafactuais do mundo imaginado. Essa fronteira torna-se particularmente visível em todos os relatos situados em cenários diferentes do nosso universo de referências quotidianas. Por outras palavras, aceitar, v.g., a existência possível de mundos alternativos (alotopias), paralelos (utopias), modificados (ucronias) ou antecipados (metatopias e metraconias), como variantes teóricas dos domínios tradicionais do maravilhoso, o palco privilegiado de ilusões consentidas, aquele onde se podem representar histórias fingidas como se fossem verdadeiras. 

Aldous Huxley inscreve toda a tessitura narrativa do Admirável mundo novo (1932) na órbita genérica polifacetada proposta pelo semiólogo e romancista italiano supra considerado, máxime no desenho duma sociedade futura totalitária fixada num Estado Mundial, fadada a fruir uma felicidade plena, modelar e perfeita, sem passar pelas agruras duma infelicidade malfeita, penosa e imperfeita. A predestinação dos cidadãos é instituída desde o momento da conceção in vitro no Centro de Incubação e de Condicionamento e o livre-arbítrio abolido desde o nascimento até à morte confortável num Hospital para Moribundos. Tudo se passa no decorrer dum aparente paraíso eutópico de seres autónomos superiores para um autêntico inferno distópico de seres autómatos inferiores. A pertença a uma dada casta social baseada na inteligência (Alfas-Betas-Gamas-Deltas-Epsilões), aceite de modo incondicional por todos, representa a espinha dorsal reinante nesse vindouro ano de 632NF/2540EC, aquele em que a divisa estatal da Comunidade Identidade  Estabilidade da Era de Nosso Ford se faz sentir em toda a sua integridade absoluta e imutável.

William Shakespeare salta do âmbito do teatro isabelino para a esfera do modernismo britânico e torna-se, de supetão, no mentor maior dum dos romances mais emblemáticos compostos durante a Grande Depressão (1929-1939), também tido como num dos precursores do movimento cyberpunk ou de enfoque crítico à alta tecnologia e à baixa qualidade de vida. Este processo de transferência temática, pautado por mais de três séculos de devir estético e literário, ganha visibilidade logo no título adoptado pelo texto mais recente, o admirável mundo novo descrito na Tempestade (1610-1611), uma das derradeiras peças urdidas pelo dramaturgo, situada numa ilha remota envolta no espírito das criaturas extraordinárias ali residentes. Acresce serem todas elas feitas da mesma substância dos deuses e estarem sujeitos às maquinações manipuladoras dum mago senhor de amplos poderes encantatórios, com os quais os imensos avanços científicos espargidos na utópica civilização ultraestruturada não cessam de surpreender os leitores dos nossos dias, mormente a eugenia reprodutiva, a hipnopedia continuada, a persuasão química, psicológica e subconsciente ou o comportamento condicionado.

Henry Ford converte-se, por sua vez, na figura de fundo fulcral desta fábula premonitória do porvir, com o estatuto messiânico quase divino de fundador duma nova ordem mundial, por ter popularizado na velha em que vivia os princípios básicos da linha de montagem, i.e., a massificação, a homogeneidade, a previsibilidade e o consumismo. Como contraponto desta entidade factual pretérita, junte-se a dupla ficcional formada pelo Alfa-Mais Bernardo Marx e pelo Selvagem John, oriundos do paradisíaco Mundo Novo sediado em Londres e do infernal Malpaís mantido como reserva no Novo México. Ambos se opõem às normas do regime totalitário impostas a nível global. O primeiro, por ter sido decantado com uma dose errada de álcool no pseudossangue, geradora dum condicionamento social deficiente; o segundo, por se sentir um intruso tanto na civilização primitiva onde nascera, como na moderna que o acolhera. A resistência destes dois dissidentes à ditadura do mundo perfeito de inspiração populista é aproveitada magistralmente pelo autor, para reduzir ao absurdo o sonho quimérico das sociedades tidas como modelo das demais, obtendo como resultado final a obra magna do romance distópico. Assim o ajuízam muitos dos seus leitores em cujo número me incluo, tornando este texto decididamente um dos livros da minha vida.

NOTA
* Umberto ECO, «I mondi della fantascienza», IN Sugli specchi e altri saggi. Milano: Bompiani, 1985 | «Os mundos da ficção científica», in Sobre os Espelhos e outros ensaios. Lisboa: Difel, 1989.

12 de setembro de 2023

Bordões, narizes-de-cera, sentenças de almanaque, rifões e provérbios avulsos

Magritte – Le pépé à la canne (1937)
bordão
Palavra ou locução esvaziada de sentido e sem função morfossintática, que se usa ou repete no discurso, geralmente de forma inconsciente ou automática, por vezes como forma de apoio em momentos de hesitação, esquecimento ou reformulação do pensamento.
TRANSFIGURAÇÕES
Diga-me cá, os outros sinais, também levam nomes latinos, como deleatur, Se os levam, ou levaram, não sei, não estou habilitado, talvez fossem tão difíceis de pronunciar que se perderam, Na noite dos tempos, desculpar-me-á se o contradigo, mas eu não empregaria a frase, Calculo que por ser lugar-comum, Nanja por isso, os lugares-comuns, as frases feitas, os bordões, os narizes-de-cera, as sentenças de almanaque, os rifões e provérbios, tudo pode aparecer como novidade, a questão está em saber manejar adequadamente as palavras que esteja antes e depois, Então por que não diria você noite dos tempos, Porque os tempos deixaram de ser noite de mesmos quando as pessoas co-meçaram a escrever, ou a emendar, torno a dizer, que é obra doutro requinte e outra transfiguração...
José Saramago, História do cerco de Lisboa (Lx: Caminho, 1989: 13)

BENGALAS, BENGALÕES & CAJADOS

Saramago centra-se numa única palavra de raiz latina e enquadra-a na categoria dos lugares-comuns, das frases-feitas, dos bordões, dos narizes-de-cera, das sentenças de almanaque, dos rifões e dos provérbios. Insere-a na órbita restrita da revisão tipográfica dum livro de história contado segundo as regras teóricas da ucronia. Gosto de imaginar os textos magníficos a que conseguiria dar corpo com as bengalas, bengalões e cajados mediáticos vigentes hoje em diaSó de pensá-lo já sinto um arrepio ao lembrar-me da sua partida há quase três décadas e meia. Fiquem então e agora o efetivamente e o por um lado e por outro lado como uma mera amostragem dos atuais clichés da moda, sendo que muitos outros,  estáexistem a dar com um pau e ao virar da esquina.

6 de setembro de 2023

Rotinas em contracorrente

Pam Wenger, Morning Routine (2020)
[Wall Art ‒ fineartamerica]

                   Noves fora nada...                    

Sometimes the writer must ask himself whether what he has written has any value except to himself...

Voltei às minhas rotinas em contracorrente do pós-férias de verão em tempos ditas grandes. Retomei o cantar & ouvir com horário fixo e mantive o ler & escrever e o blogar & comentar com horário livre.

Deitei para trás das costas os noves fora nada que já leva este espaço de histórias ditas em conta-corrente flexível e prossigo esta caminhada de anuário rumo à primeira década de vida real e virtual.

Peguei na reflexão do W. Somerset Maugham feita em jeito de Exame de Consciência e resolvi compor algumas palavras mais sobre o tudo e coisa nenhuma que vão tendo algum sentido para mim. Até ver.