26 de novembro de 2018

Henrik Nilsson, um piano em Sesimbra e outras histórias portuguesas contadas em sueco

«En skugga rörde sig. Kanske var det en människa [...] Varje dag badar vi i okunskapen om oss själva.»
Henrik Nilsson, Nätterna, Verónica (2006)
Numa passagem rápida por terras escandinavas, soube da existência dumas histórias situadas em cenários portugueses, idealizadas em forma de conto por um jovem escritor sueco. Sete, para ser mais preciso. Tantos como os dias da criação. De regresso ao palco retangular da ação diegética, dirigi-me ao Pátio de Letras, abrimos em conjunto o mundo em gavetas e topámos a seleta pesquisada, uma partitura assinada por Henrik Nilsson com a designação genérica de Um piano em Sesimbra (2006).

Percorridas as páginas que dão corpo à obra, lidas as imitações de vida nelas contidas, detetei ainda umas historietas adicionais inse-ridas no relato com que abre a compilação. Aquelas que um escritor da capital ouve contar numa noite passada inesperadamente na As-sociação Mourense para Narração Noturna. Um sono inoportuno im-pedira-o de abandonar o comboio no destino programado e obrigara-o a descer n’A última estação da linha. O cego que encontrara junto às sombras da rua, a mulher estrangeira que vira num bar da cidade e o homem que olhava pela janela da sala, tomaram a palavra, centra-ram-se no tema proposto «perder-se» e contaram um a um, até ao amanhecer, a história d’«A mulher dos passos lentos», a história d’«Os rostos» e a história das «Notas perdidas».

O impulso de revelar todos os pormenores das histórias contidas no primeiro conto deste livro de contos é enorme. Todavia, o bom senso necessário nestas ocasiões foi mais forte e impediu-me de revelar os seus segredos assim sem mais nem menos. Que a viagem de cada leitor pelo universo das letras feitas palavras se faça na íntegra, sem interferências estranhas e dispensáveis. Que a paráfrase não substitua a frase. Que a clonagem bem intencionada não mate a surpresa da descoberta pessoal. Fascinante, única, irrepetível. Sensações que a verdadeira arte nos pode e sabe transmitir.

As noites, Verónica, que dão título à versão original da coletânea, levam-nos aos encontros casuais dum investigador português e duma funcionária da limpeza angolana, tidos na sala de leitura da Sociedade de Geografia de Lisboa, e dos diálogos noturnos travados entre mapas, globos, manuscritos e atlas referentes a um império perdido. A versão traduzida remete-nos, em contrapartida, para Um piano em Sesimbra e para as deslocações que um juiz viúvo alfacinha efetua todos os sábados a essa vila piscatória da península de Setúbal, em busca da sonoridade sempre renovada da segunda balada de Chopin, executada por um misterioso pianista, enquanto degusta uma tradicional sapateira.

O protagonismo da grande cidade das muitas colinas, banhada pelas águas azul-esverdeadas do grande rio que lhe traça os limites com a outra banda, é confirmado nos restantes episódios do quotidiano convocados pela ficção. As ruas, praças, avenidas e bairros transformam-se em cenários privilegiados das gentes anónimas que a povoam. Por vezes ganham uma identidade passageira numa personagem que se destaca numa história contada. Os pormenores descritivos que suspendem o tempo encarregam-se de criar a tal expetativa tópica dos filmes de mistério. A secretária dum astrólogo angolano especialista em Aconselhamento espiritual, que vive uma experiência insólita de desespero existencial nos labirintos de Alfama. O despachante alfandegário quase falido que rouba espelhos das casas de banho dos Cargueiros ancorados no cais do Tejo. O vendedor de canais de televisão que imagina uma história de amor e morte vivida n’O terramoto de 1755. O silêncio de Adriana, assumido depois de se ter perdido a confiança no passado e não haver mais nada para dizer.

A habitual autopromoção registada nas badanas e contracapa do livro afirma tratar-se dum conjunto de contos extraordinários, gisados por um autor aplaudido unanimemente pela crítica especializada do país do Prémio Nobel da Literatura. Não duvido da justeza desse juízo de valor, muito embora desconheça a existência doutros títulos que tenha publicado desde então. Espero que a qualidade documentada neste universo narrativo de estreia não fique congelada num tempo cada vez mais passado sem promessas à vista de futuro. Há tantos casos desses por aí que tememos estar na presença de mais um desses sucessos meteóricos de repetição adiada. O ritmo da fábula é forte, a prosa vigorosa, o estilo original. Que venham mais histórias com final suspenso, para que o leitor tome conta do repto, asas à imaginação e se ponha a preencher lacunas e a substituir reticên-cias por pontos finais.

NOTA
Não voltei a ter notícias literárias deste jovem escritor sueco natural de Malmö, desde que há cinco anos o vi traduzido em português, o li com muitos prazer e compus estas notas tornadas públicas no Pátio de Letras. É pena. Trago-o para aqui numa altura em que me apeteceu voltar à sua companhia e ao modo como soube transmitir por escrito a sua sensibilidade artística bebida no nosso país.

19 de novembro de 2018

Cultura e civilização do local e do global

ΤΑΥΡΟΜΑΧΊΑ – TAUROMAQUIA
Fresco do Palácio Minoico de Cnossos (c. 1600-1450 AEC)
[Museu Arqueológico de Heraklion - Creta, Grécia]
«Cultura opõe-se a natura ou natureza, isto é, abrange todos aqueles objetos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito. A fala é já condição de cultura. Por ela se comunicam emoções ou conceções mentais. A religião, a arte, o desporto, o luxo, a ciência e a tecnologia são produtos da cultura.»
António José Saraiva. Cultura. (Lisboa: Difusão Cultural, 1993, p. 11)
Cultura
A cultura surgiu com o homem assim que aprendeu a falar e segue-o para todos os lugares onde ponha os pés. É o seu cartão de visita. Aquele que o diferencia dos restantes seres vivos. É a vontade subjetiva e voluntária de cada um de nós exercer em liberdade a sua identidade pessoal. Unitária. Aplica-se às pessoas tomadas isolada-mente, às marcas específicas que caraterizam um povo ou a um período particular do seu devir comum.

Civilização
A civilização surgiu com a cidade e é tendencialmente a melhor forma de gerir a cultura como um todo. O singular fez-se plural. A liberdade absoluta dos indivíduos sujeitou-se à liberdade relativa da socieda-deA práxis do estado de direito é estabelecida e fixada nas leis escri-tas que regem o dia-a-dia dos cidadãos. Coletiva. Adapta-se à realida-de objetiva do instante e rende-se à vontade dos tempos. Mantém-se o que está bem. Altera-se o que está mal.

Local & Global
A luta de galos, a caça à raposa, os gansos do fois-gras, as cobaias de laboratório, as corridas de touros e tutti quanti são formas assumi-das de cultura. Vias distintas de expressão humana. Goste-se ou não. Assim a guerra e paz. Verso e reverso duma moeda. O local e o global nem sempre se dão as mãosModos alternativos de civilização. Bons e maus. FatalmenteConduta, habilidade, ciência, talento, ofícioArte ancestral de ser e de agir dos povos.

13 de novembro de 2018

Os talantes de benfazer do Infante de Sagres e os talentos de os realizar...

Emblemática do Infante Dom Henrique
GOMES EANES DE ZURARA (c. 1410-1474?)
 «Frontispício» da Crónica dos feitos da Guiné (1453)
[Paris: Bibliothèque nationale de France - Ms. Portugais 41, 5v]
A CABEÇA DO GRIFO: O INFANTE D. HENRIQUE
Em seu trono entre o brilho das esferas, | Com seu manto de noite e solidão, | Tem aos pés o mar novo e as mortas eras — | O único imperador que tem, deveras, | O globo mundo em sua mão.
Fernando Pessoa, Mensagem (1934: I, v, 1)
     Talant de biẽ faire    

Dom Henrique é sem grande margem de dúvida o mais popular representante da Ínclita Geração de Altos Infantes, cantada por Luís de Camões n'Os Lusíadas (1572: IV, 50, 8), sendo também uma das figuras nacionais mais conhecidas além-fronteira. O Navegador lhe chamaram os historiadores alemães no Séc. XIX. Mais pelo fo-mento das viagens de descoberta de novas terras e novas gentes do que pelas travessias que tenha feito do Mar Oceano. Ter-se-á limitado a cruzar umas quantas vezes o estreito guardado pelas Colunas de Hércules e sempre que necessário o Mar da Palha formado pelas águas calmas do Tejo.

O quarto filho varão de Dom João Primeiro e de Dona Filipa de Lencastre, os fundadores da Dinastia de Avis, escolheu como alma da divisa o Talant de bien faire [= desejo de benfazer]. Terá sido inspi-rado pela cultura angevina da mãe, descendente dos Plantegenêt, que levaram para os domínios ingleses o francês como língua de corte. Pintou o emblema de azul, branco e negro, a simbolizar as fron-teiras infinitas do tudo e do nada. Associou esta paleta cromática ao verde dos ramos de carrasqueiro entrelaçados num anel, a apontar para a força generosa e invencível que permite a comunicação entre o céu e a terra.           

Essa ânsia de cometer grandes proezas foi largamente realizado ao longo da vida associando a palavra algo rara de talante com a mais comum nos nossos dias de talento ou capacidade de realização. Agraciado pelo pai com o título de Duque de Viseu, seria ainda Senhor da Covilhã, Donatário da Madeira, Mestre da Ordem de Cristo, Governador de Ceuta, Cavaleiro da Ordem da Jarreteira e Protetor da Universidade de Lisboa. Entre outras honrarias, avulta a de Infante de Sagres, promontorium sacrum do Reino do Algarve onde expirou a 13 de novembro de 1460. O mote da sua divisa pes-soal cumpria-se à letra.

7 de novembro de 2018

As Romas imperiais de Rómulo e Remo, de Constantino Magno e dos Romanov

       MOSCOVIA VRBS METROPOLIS TOTIUS RUSSIÆ ALBÆ      

Georg Braun & Frans Hogenberg - Civitates Orbis Terrarum - Cologne, 1617

ROMA
Rezam as lendas que a Roma Antiga terá sido fundada no Palatino por Rómulo e Remo, os dois irmãos gémeos aleitados por uma loba e descendentes remotos de Eneias, herói troiano que Virgílio cantou na Eneida (séc. I AEC). A data simbólica escolhida por Marco Terêncio Varrão para celebrar o Dias Natali Romæ recaiu a 21 de abril de 753 AEC, por coincidir com as festividades pastoris de Pales. As sete colinas iniciais estenderam rapidamente o seu domínio por toda a bacia mediterrânica, que batizaram de Mare Nostrum. A queda da cidade deu-se a 4 de setembro de 476 EC, quando o imperador Rómulo Augústulo foi destronado por Odoacro em Ravena. O Império Romano do Ocidente dava origem ao Império Romano do Oriente. A Idade Antiga cedia passo à Idade Média. Roma sobreviveria por mais mil anos em Constantinopla, no Corno de Ouro, banhada pelas duas margens do Mar de Mármara.

CONSTANTINOPLA
A Nova Roma, Bizâncio, Constantinopla ou Istambul foi erigida por Constantino-o-Grande em 330 EC. A dimensão desmedida para a época do território aconselhou-o a estabelecer uma segunda capital a Oriente, na confluência da Europa e da Ásia, facilitando-lhe assim o acesso às fronteiras do Danúbio e do Eufrates. A administração e milícia  foram reestruturadas, o latim foi substituído pelo grego e o politeísmo romano cedeu passo à ortodoxia cristã. Os alicerces da România ou Império Bizantino estavam concluídos. Dizem as más línguas que nas vésperas da conquista otomana, em 29 de maio de 1453, os seguidores do Basileu discutiam a quantia que deveriam despender com a defesa da cidade, sem terem chegado a um consenso salvador. Será talvez esta a versão mais apropriada para designar a tal querela centrada na determinação do sexo dos anjos e que a memória dos povos crismou de bizantinice.

MOSCOVO
A Terceira Roma nasceu do prestígio que Roma e Constantinopla exerceram nos senhores de Moscóvia. O título imperial de Cæsar deriva de Júlio César, que passa a ser utilizado no Império Russo para designar o soberano ou Czar. Como se tal não bastasse, a dinastia reinante adotou o nome de Romanov, por se considerar descendente do ditador e general romano, cuja linha genealógica fictícia foi tacitamente traçada e dada como factual. Essa titulação manteve-se até à queda da monarquia e Revolução de Outubro de 1917*. Os herdeiros da tradição latino-bizantina foram destronados e posteriormente executados. Moscovo continua imponente a governar milhões de cidadãos distribuídos pela Eurásia sem ter originado uma Quarta Roma. Os imperadores de antanho são parra que já deu uva e os novíssimos senhores do mundo passaram a exercer o poder por processos tais que nem a Maquiavel lembraria.

NOTA
(*) - Revolução de Outubro: 25 de novembro de 1917 (calendário juliano); 7 de novembro de 2017 (calendário gregoriano). 


1 de novembro de 2018

E o grande terramoto começou...

Os pecados dos homens & a terra em fúria

Lillias tirou uma das peras do avental e preparou-se para voltar para trás. Dera somente uns passos quando foi atirada para o chão, e o grande terramoto começou.

A terra estava em fúria, qual um touro varado por petardos numa are-na. Muitos iriam realmente interpretar aquelas convulsões como re-volta moral da natureza, ante os pecados que os humanos andavam cometendo. Muitos acharam que o bom Deus do Papa castigava Lisboa pela sua submissão aos heréticos ingleses. Equivalente enle-vo punitivo ocupava os jornais dos protestantes. Tinham sido poupa-dos quase todos, contando entre eles menos de cem vítimas, porque em boa verdade aquele desastre se dirigia apenas aos papistas, como um solene aviso do Senhor.

Lillias julgou-se em cima de um ser vivo, porque parecia haver um sentimento na forma como o chão se debatia. Aquilo que dentro dele se revolvia levava-o a rugir, ferido de morte. Escancarou uma enorme goela na encosta onde Lillias havia de encontrar-se, se tivesse avançado um minuto antes. A lama negra fumegava, como o bolo de alguma monstruosa digestão. O enxofre vinha diretamente arremessado do inferno.

Lillias pensou nas peras e no pão que lhe tinham caído do avental. Não conseguia pensar em mais nada. O estômago ocupava o centro do seu mundo. Tocou na trouxa que trazia na cintura, mas logo se esqueceu de Santa Brígida. Também a alma estava concentrada na preocupação com a comida.

Com o segundo abalo, desistiu. Sentou-se a espera de que o chão, por baixo dela, se abrisse, e a mão dos mortos se estendesse e a puxasse para a sua companhia. A sua educação religiosa fora apenas formal, feita de ritos e certo despotismo de palavras. Não esperaria ver no fim do mundo o supremo Juiz cobrindo os céus.

Dava por si sozinha e desvalida, uma pequena criatura mais, no meio das ervas e dos roedores. Ouvia os gritos da cidade ao longe. Corriam pelo ar, em vez dos pássaros que tinham procurado o vale de Alcântara e não mais se mexeram todo o dia. Lillias pensou que os vermes sairiam dos túneis subterrâneos. Pôs-se de pé, para que eles a não tomassem por um cadáver. Viu no horizonte, acima de Lisboa, uma poeira imóvel, como um escudo. Mas, no campo deserto, o sol mantinha a sua desusada intensidade. Lillias sentia sede. E o seu medo transformava-se em ânsia de animal, numa necessidade de achar água.
Hélia Correia, Lillias Fraser (Lx. 2001; 2003: 85-86)