31 de dezembro de 2023

São Silvestre e as lágrimas da Virgem

Danuta Wojciechowska, Lenda da noite de São Silvestre (2007)
EPÍGRAFE
Me ha acontecido a veces al afirmar que, si la ciencia de la cultura adoptara los métodos y el lenguaje de la química, sólo iba a descubrir, en el vivo conjunto por la cultura formado, dos «Cuerpos» simples: Grecia y Portugal. Grecia, sím-bolo del espíritu de lo clásico; Portugal, símbolo del espíritu,— que no es logos [razão], pero nous [espírito] de lo barroco. Y el resto, cuestión de dosis.
Eugénio d'Ors, El Barroco (1933)

Helénicas & Lusitanas

A afirmação que pedi emprestada a Eugenio d'Ors como epígrafe é contestada por muitos críticos, mas, o ter sido escrita em espanhol por um grande vulto da cultura catalã sabe muito bem ao nosso ego português de ouvir. Deixando de lado o enfoque contrastivo entre o barroco e o clássico para mergulhar nos domínios da arte em geral, aqueles em que as técnicas geradas pela criatividade humana se aplicam à variedade estética da linguagem, incluindo a verbalização escrita e oral, como poderá ser a nascida no seio da singularidade helénica antiga e atualizada pela imaginação tradicional lusitana.

Busquemos a ligação ancestral desses dois corpos simples num velho relato que Platão desenvolve no Timeu e Crítias. Refere-se ali à Atlântida, uma ilha-continente situada para além das Colunas de Hércules que terá desaparecido do noite para o dia há cerca de 9600 anos. Os eventos chegaram-lhe aos ouvidos inseridos numa longa cadeia de transmissão oral, iniciada por um sacerdote egípcio de Salís, que o confiou a Drópis e este ao avô de Crítias. De boca em boca, os ecos dum desastre natural remoto ganham pouco a pouco o contorno mítico dum castigo dos deuses aos pecados dos homens.

A ambição alentada pelos atlantes de desafiar os céus e conquistar o mundo despertou a ira do Olimpo. No mito platónico, os validos de Poseidon são derrotados pelos pupilos de Atena e a sua arrogância é afogada para sempre nas águas profundas do grande Mar Oceano. Na versão lendária madeirense, a Virgem Maria ouve as palavras piedosas de São Silvestre e oferece aos mortais a possibilidade de se remirem da sua altivez. A última noite do ano deveria assim marcar a fronteira entre o passado e o futuro, dando a todos a esperança duma vida melhor, afastada para sempre dos erros outrora cometidos. 

Das lágrimas de pesar derramadas pela mãe do salvador cristão no exato local onde perecera a Atlântida, surgiria a afortunada ilha da Madeira, por todos conhecida como Pérola do Atlântico. Em honra do papa que patrocinara o nascimento miraculoso do arquipélago oceânico, comemora-se todos os anos a Noite de São Silvestre, a assinalar a passagem do ano velho para o ano novo. E o fogo de artifício lançado a dar as boas vindas ao Ano Bom aí está também a lembrar as pérolas sagradas vertidas pela Virgem Maria. E assim a lenda filosófica helénica se tornou numa lenda etiológica lusitana.

24 de dezembro de 2023

Presépio minimalista à maneira algarvia

   O MENINO JESUS CÁ DE CASA   

Laranjas, searas, trono e menino

A vaca e o burro do presépio tradicional franciscano primam pela ausência nos evangelhos canónicos do Novo Testamento. Aliás, dois deles referem a Natividade, sendo omitida pelos restantes: Marcos e João saltam do anúncio de João Batista para o batismo de Jesus; Mateus inclui a vinda duns magos vindos do Oriente guiados por uma estrela; Lucas alude ao convite feito por um anjo a um grupo de pastores para visitarem o menino, que encontram envolto em panos, deitado numa manjedoura junto a José e Maria.

O quadro natalício assim traçado daria poucos elementos cénicos para de recrear o nascimento do Menino em Belém de Nazaré. Limitar-se-ia ao pai-mãe-filho, um ou outro guardador de rebanhos indefinidos e a um número indeterminado de peregrinos orientais destituídos da categoria real. Seria sempre possível imaginar umas casas espalhadas aqui e além, considerar um rio a atravessar a paisagem local e os habitantes locais a desempenharem as suas tarefas quotidianas. A falta da vaca e do burro pouca falta faria.

Mais restritivo do que a visão bíblica deste episódio natalício é a seguida pelos fiéis algarvios. Aqui, nem o musgo do pinhal a revestir os campos, nem a areia da praia a traçar os caminhos, nem o castelo altaneiro a demarcar o horizonte, obrigatórios no presépio estremenho da minha infância marcam presença. A liturgia católica cumpre-se com umas laranjas e umas searas de trigo a cercarem o trono e a figura tutelar do Menino Jesus. É quanto basta para garantir o alimento espiritual para todo o ano. Pro que conta, tem avonde!

19 de dezembro de 2023

É Natal e nunca estive tão só

ISABEL AGUIAR
26 Poemas 26 pinturas
(2015)

Último poema
É Natal, nunca estive tão só.
Nem sequer neva como nos versos
do Pessoa ou nos bosques
da Nova Inglaterra.
Deixo os olhos correr
entre o fulgor dos cravos
e os dióspiros ardendo na sombra.
Quem assim tem o verão
dentro de casa
não devia queixar-se de estar só,
não devia.

Eugénio de Andrade, Rente ao dizer – 1992

13 de dezembro de 2023

F. Scott Fitzgerald, o retrato cromatizado da ascensão e queda do Grande Gatsby

In my younger and more vulnerable years my father gave me some advice that I’ve been turning over in my mind ever since.
‒ Whenever you feel like criticizing any one ‒ he told me ‒, just remember that all the people in this world haven’t had the advantages that you’ve had.
He didn’t say any more but we’ve always been unusually communicative in a reserved way, and I understood that he meant a great deal more than that. In con-sequence I’m inclined to reserve all judgments, a habit that has opened up many curious natures to me and also made me the victim of not a few veteran bores.

A leitura dum livro começa obrigatoriamente pelo título que lhe foi dado. Alguns passam-nos completamente ao lado quando o vemos estampado na capa do exemplar que abriga, sugere e sintetiza os enredos que nos são oferecidas no seu interior. Outras, ao revés, começam desde logo a desvendar-nos os segredos que a trama discursiva nos promete revelar, se resolvermos transformar o impulso inicial e partir à aventura da descoberta. A sonoridade das palavras compostas no idioma original e na versão traduzida começaram a convidar-me há muito a satisfazer de vez a atração que a aliteração verbal conseguida por F. Scott Fitzgerald imprimira à vida inventada n'O grande Gatsby (1925) sem que, entretanto, o tivesse aberto, lido e arrumado calmamente numa estante cá de casa. Fi-lo agora numa edição de bolso, o tamanho ideal para alojar as obras maiores em espaços exíguos onde as impressões encadernadas de luxo deixaram de caber.

Antecedi o acesso às tramoias urdidas no romance quase centenário com uma leve lembrança da visão filmada há uma década precisa por Baz Luhrmann. Tive de acudir ao official trailer para recordar minimamente a tecedura narrativa ali concebida. De pouco me valeu. Para além do esplendor estravagante de algumas cenas, a memória recusou-se a fazer um armazenamento a longo prazo dos 142 minutos de imagens em movimento as então visionadas a cores num canal televisivo. Sem perda de tempo, lancei-me às 216 páginas impressas a preto e branco do tomo de pequeno porte trazido do escaparate duma livraria. Em nove únicos capítulos, o percurso de vida de Jay Gatsby foi-me revelado pelo olhar atento de observador de Nick Canaway, o vizinho provinciano do milionário subido a pulso que protagoniza o drama, representado no primeiro quartel do século xx entre os ficcionados West Egg e o East Egg da Long Island, nas imediações de Nova Iorque.

A história da ascensão e queda do Grande Gatsby levou cinco anos a erigir e três meses a ruir. É-nos revelada pelo testemunho subjetivo dum narrador-deuteragonista intra-homodiegético de focalização externa, i.e., um participante na intriga como personagem secundário que se limita a converter num retrato cromatizado os episódios que presenciou, os diálogos em que se viu envolvido e as versões que lhe foram confidenciadas. O insólito da situação vivida nesse verão extremamente quente de 1922 desenrola-se num conjunto muito escasso de espaços, com a ação centrada sobretudo nas mansões dos principais atores em palco, banhadas umas e outras pela fusão das águas salgadas do oceano com as doces oriundos dos rios que desaguam no extenso estuário do Sound. Tudo se resume ao fatídico cruzamento dos vértices dum duplo triângulo amoroso extraconjugal, que culmina com a saída de cena trágica de três dos seus intérpretes, incluindo o cabeça de cartaz que dá nome à peça.

Mais do que enveredar pelo roteiro clássico dum filme de Série B, pelo melodrama novelesco de faca e alguidar ou pelas vias trilhadas por uma mera comédia de enganos, o relato no seu todo resulta numa bem-lograda reconstituição das principais fases do sinuoso percurso existencial do biografado, pautadas todas elas pelo peculiar contexto histórico que marcou a época. Anos Loucos lhes chamaram alguns, para ilustrar o estilo de vida alienado e superficial então praticado pela designada Geração Perdida, aquela que criara os contrastes da Era do Jazz, que fazia tábua rasa da Lei Seca, que cultivava o esplendor estravagante da Art Déco e que guiava a passos largos a magnificência decadente dos Novos-Ricos para a Queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque no final da Década de 20. A escalada do herói/anti-herói central retratado dum zé-ninguém para um magnata de sucesso funciona como uma sátira a todos os gigantes com pés-de-barro colocados nos píncaros dum sucesso efémero alcançado na busca a todo o custo do materialismo insano contido no mítico Sonho Americano. A missão dos enunciadores do discurso chegara ao seu termo lógico. A rematar, ainda nos alertam para o facto de continuarmos a seguir os barcos contra a corrente, incessantemente puxados de volta ao passado. Uma advertência pretérita a alertar um porvir distante, que até pode ser o nosso.

7 de dezembro de 2023

Triangulações de paz em tempo de guerra cantadas em quatro línguas

   TORNERAI - LILI MARLEEN - WE'LL MEET AGAIN     

TORNERAI
Tornerai | da me | perchè l'unico sogno sei | del mio cuor | tornerai | tu perchè i senza tuoi | baci languidi | non vivrò | ho qui dentro ognor | la tua voce che dice tremando amor | tornerò perchè è tuo il mio cuor.
Nino Rastelli / Dino Olivieri (1937)
LILI MARLEEN
Vor der Kaserne | Vor dem großen Tor | Stand eine Laterne | Und steht sie noch davor | So woll'n wir uns da wiederseh'n | Bei der Laterne | wollen wir steh'n | Wie einst Lili Marleen.| | Uns're beiden Schatten | Sah'n wie einer aus | Daß wir so lieb uns hatten | Das sah man gleich daraus | Und alle Leute soll'n es seh'n | Wenn wir bei der Laterne steh'n | Wie einst Lili Marleen.|| Schon rief der Posten | Sie blasen Zapfenstreich | Es kann drei Tage kosten | Kam'rad, ich komm sogleich | Da sagten wir auf Wiedersehen | Wie gerne wollt ich mit dir geh'n | Mit dir Lili Marleen. || Deine Schritte kennt sie | Deinen schönen Gang | Alle Abend brennt sie, | Doch mich vergaß sie lang | Und sollte mir ein Leids gescheh'n | Wer wird bei der Laterne stehen | Mit dir Lili Marleen? || Aus dem stillen Raume | Aus der Erde Grund | Hebt mich wie im Traume | Dein verliebter Mund | Wenn sich die späten Nebel drehn | Werd' ich bei der Laterne steh'n | Wie einst Lili Marleen.
Norbert Schultze / Hans Leip (1915, 1937, 1939)
WE'LL MEET AGAIN
Let's say goodbye with a smile, dear | Just for a while dear we must part | Don't let this parting upset you | I'll not forget you, sweetheart || We'll meet again | Don't know where | Don't know when | But I know we'll meet again some sunny day || Keep smiling through | Just like you always do | 'Til the blue skies chase those dark clouds far away || And I will just say hello | To the folks that you know | Tell them you won't be long | They'll be happy to know | That as I saw you go | ou were singing this song || We'll meet again | Don't know where | Don't know when | But I know we'll meet again some sunny day || And I will just say hello | To the folks that you know | Tell them you won't be long | They'll be happy to know | That as I saw you go | You were singing this song | We'll meet again | Don't know where | Don't know when | But I know we'll meet again some sunny day.
Hughie Charles / Ross Parker (1939)

ENCONTROS - DESENCONTROS - REENCONTROS

Selecionar as canções duma vida é uma tarefa tão espinhosa como praticar o mesmo exercício a nível dos livros, dos filmes, das artes. Há sempre um ou outro título que fica de fora ou à espera de algum melhor que ocupe o lugar. Depois a cifra dos dias, meses e anos deixados para trás passa a superar em muito os que restam ainda pela frente. As hipóteses de encontrar a tal obra capaz de fazer a diferença do já escrito, rodado e olhado diminuem drasticamente. O mesmo se diga do cantado, escutado e trauteado. Deste modo, resolvi restringir o pódio a três únicos casos, unidos pelos tópicos poéticos dos regressos em tempo de guerra. Substitui entretanto as medalhas desportivas de ouro, prata e bronze, pelos discos de platina atribuídos pela indústria fonográfica, pelas cópias vendidas ao longo de décadas e décadas bem contadas e à espera de muitas outras que por aí virão.

A primeira ouvi-a cantar em francês por uma espanhola de Múrcia. A Mari Trini, sucederam-se muitas outras vozes provenientes das mais diversas nacionalidades e idiomas a interpretá-la, até chegar à de Rina Kelly, a cantora ítalo-gaulesa de Turim que gravou a versão original da icónica J'attendrai (1938), convertida de imediato num sucesso internacional durante a Segunda Guerra Mundial e num verdadeiro hino de resistência à ocupação germânica do país. De audição em audição, apercebi-me resultar essa chanson da feliz adaptação duma canzone popularizada em Itália pelo Trio Lescano e Quartetto Jazz Funaro, a Tornerai (1937), que Nino Rastelli e Dino Olivieri criaram inspirados no «Coro a bocca chiusa» da Madama Butterfly de Giacomo Puccini. E assim o «Tornerai da me perchè l'unico sogno sei del mio cuor» se transformou no «J'attendrai jour et nuit, j'attendrai toujours ton retour».

Descobri a história da segunda canção escolhida nas poltronas superdeslizantes do extinto cinema Londres, localizado então na avenida de Roma em Lisboa. Tive como contador privilegiado Rainer Werner Fassbinder, realizador Lili Marleen (1981) protagonizado por Hanna Schygulla, a intérprete dum Lied escrito por Hans Leipe e musicado por Norber Schultze no decorrer de dois conflitos bélicos travados à escala mundial. Até então identificava a composição com Marlene Dietrich, que os cantava tanto em inglês como em alemão. A semelhança sonora dos nomes terá ajudado nessa associação. Só mais tarde é que vim a devolver a Lale Andersen o lançamento absoluto da Lili Marleen (1939) num vinil de 78rpm da Electrola 6993. E os acordes musicais voltaram a soar com toda frescura do original que as palavras vertidas para todas as línguas continuam a fascinar-me sempre que as ouço.

Concluo a triangulação às separações forçadas e regressos adiados em forma de gritos cantados com o contributo britânico de Vera Lynn no We'll Meet Again (1939), um cântico de despedida antes da frente de batalha, idealizado por Hughie Charles e Ross Parker. Os encontros-desencontros-reencontros latentes na mais famosa song inglesa dos tempos da grande guerra civil europeia que incendiou o mundo continuam vivos na nossa memória coletiva. Chegam-nos sempre que os ecos distantes da barbárie Nazi são atualizados nas contendas marciais desencadeados dia após dia, noite após noite à escala planetária, reproduzidos todos eles em direto pelos canais televisivos globais postos à nossa disposição. Instantaneamente. Hora a hora, minuto a minuto, segundo a segundo. E a nós só nos resta perguntar até quando teremos de esperar por esse sol sem sombras evocado na canção.

1 de dezembro de 2023

Conexões e ruturas ibéricas

Portugalia & Hispania

Lucas Jansz Waghenaer, Europa Ocidental, 1588

Na visão centralista dos Áustrias, Castela e Leão imperavam nos seus domínios ibéricos herdados, conquistados e comprados, com uma espada erguida na mão direita e o globo terrestre na esquerda. O brasão de armas completo de Felipe II é elucidativo dessa realidade ilusória, que alentou o sonho hegemónico espanhol desde a subida ao trono português em 1580 até à queda de Filipe IV desse mesmo trono em 1640. Um elmo central a presidir e os laterais submissos a admirá-lo, ou seja, os dragões alados luso-aragoneses a prestarem vassalagem ao leão acastelado da soberania hispânica unificada.

Trezentos e cinquenta e cinco anos após a assinatura do tratado de Madrid em 1668, que pôs termo a vinte e oito anos de guerra (da Aclamação lhe chamaram na altura e da Restauração em tempos mais recentes), voltou a ouvir-se falar com insistência na hipotética reversão desta separação peninsular. Desconheço ao certo quantos portugueses aceitariam de bom grado esta segunda união ibérica, muito embora algumas sondagens de opinião efetuadas no país vizinho afirmem ser francamente favoráveis. Duvido. Presumo que o grau de aceitação espanhola possa ser superior à nossa. Alvitro.

As vantagens duma tal associação até poderiam ser úteis para ambas as partes, se entretanto as querelas separatistas que continuam a grassar do lado de da fronteira fossem debeladas de vez e as reservas levantadas do lado de cá não agudizassem ainda mais a situação. O problema da centralidade de Madrid (em detrimento de Lisboa/Barcelona), o predomínio do castelhano (em concorrência com o português/catalão), o regime político adotado (em oposição à república/monarquia). Admitir por fim que a unidade desejada terá de passar por um modelo federativo de estados independentes entre si.

Celebra-se hoje a independência da Casa de Bragança face à Casa de Áustria, efeméride festejada efusivamente pelos saudosistas duma Monarquia extinta e olhada com indiferença pelos cidadãos comuns da República vigente. Neste mesmo dia de há cinco anos, frui em Sevilha a chegada da reforma, aposentação ou jubilação, como se lhe queira chamar, consoante o gosto de cada um ou a casta profissional a que se pertença. Independência lhe chamo eu. Sem feriado nacional, sem drama pessoal, sem vivas ou bota-abaixo. Recebi-a de ânimo leve, braços abertos e votos de boas-vindas.