30 de julho de 2018

Va', pensiero, sull'ali dorate...

  Washington National Opera  

CORO DEGLI SCHIAVI EBREI
Va', pensiero, sull'ali dorate. | Va', ti posa sui clivi, sui colli, | Ove olezzano tepide e molli | L'aure dolci del suolo natal! | Del Giordano le rive saluta, | Di Sionne le torri atterrate. | O mia patria, sì bella e per-duta! | O membranza cara e fatal! | Arpa d'or dei fatidici vati, | Perché muta dal salice pendi? | Le memorie del petto riaccendi, | Ci favella del tempo che fu!O simile di solima ai fati,Traggi un suono di crudo lamento;O t'ispiri il signore un concento | Che ne infonda al patire virtù | Che ne infonda al patire virtù | Al patire virtù. 
VERDIANAS
Habituei-me a ouvir o Giuseppe Verdi nas temporadas líricas do Teatro Nacional de São Carlos, a que eu assistia invariavelmente nas récitas populares do Coliseu dos Recreios. Decorriam os últimos anos da década de 60 e os primeiros da de 70. O Ditador já havia caído da cadeira e o Delfim pouco duraria na cadeira do poder. A revolução dos Cravos foi em boa hora a culpada.

Tudo começou com um Rigoletto cantado pelo Álvaro Malta, prosseguiu com um Il Trovatore cantado pela Fiorenza Cossotto e terminou com uma Aida cantada já não sei bem por quem. A falta que os libretos perdidos fazem. Pelo meio ainda ficou uma La Traviata, levada à cena no Trindade pela Companhia Portuguesa de Ópera, cantada pelas duas irmãs Saque, a Elsa e a Zuleica.

Escapou-me até agora assistir à representação do Nabucco num espaço lírico. Os registos audiovisuais disponíveis tem suprido essa lacuna. O Coro degli schiavi ebrei ocupa uma posição cimeira nas minhas preferências melómanas. Cantei-o há pouco no derradeiro concerto organizado pelo grupo coral que integrei este ano. E nas próximas temporadas haverá mais. Va', pensiero, sull'ali dorate...

26 de julho de 2018

Gelados de verão e de todo o ano

JULY PARIS MAPS

 Rue Saint-Louis en l'Ile

Les sorbets de l'île Saint-Louis à Paris...
A primeira vez que pus os pés em Paris andei numa lufa-lufa dum lado para o outro. Em três dias palmilhei umas boas léguas bem-medidas de praças e pracetas, de ruas e ruelas, avenidas e alamedas. Um corre-corre sem parar por todos os recantos da Paname banhada pelas das duas margens do Sena. Fiquei-me pelos exteriores da Cidade-Luz, mochila às costas, sapatilhas nos pés e Guide Vert Michelin na mão.

Eu e os meus copains de route piquenicámos no Parc Monceau, no Jardin du Luxembourg e no Champ de Mars. A frescura das fontes e a sombra das árvores amenizaram a canícula estival reinante. Depois do sol se pôr e da lua se levantar, petiscámos nos bairros mais populares. Montmartre, Quartier Latin, Les Halles, Marais, Saint-Germain-des-Prés, Boul’Mich’, Champs Elysées. Um punhado de opções sedutoras ao virar da esquina.

A memória seletiva desse verão fixou-se no coração da velha Lutécia galo-romana. A sabedoria dos meus amigos parisienses levaram-me à Île Saint-Louis, mesmo ali ao lado da Île de la Cité, na pista dos mais famosos gelados da cidade, do país e quiçá do mundo. Saboreei uma meia dúzia dos noventa sabores oferecidos pela Maison Berthillon. Um festim refrescante para os sentidos que mais tarde ou mais cedo terei de repetir. Il le faut absolument.

20 de julho de 2018

Xavier de Langlais e os romances do Rei Arthur, dos Cavaleiros da Távola Redonda e da Demanda do Santo Graal

« Déjà il se réjouissait du plaisir de son aîné, car jamais on ne vit adolescent plus aimable et plus prompt à rendre service ; mais une déception l’attendait à Car-duel : la salle Keu avait laissé son épée était fermée à clef, l’écuyer qui en avait la garde s’étant lui-même rendu sur les remparts pour voir la mêlée. Arthur n’avait plus qu’à en prendre son parti... Keu ne se battrait pas ce jour-là. || Comme il repassait par la place de l’église, ses regards furent attirés par l’enclume qui étincelait sous les rayons du soleil couchant. Se souvenant qu’il n’avait pas encore tenté l’épreuve, il s’en approcha puis, par jeu, sans même mettre pied à terre, se pencha vers l’épée merveilleuse pour la saisir. Miracle ! à peine l’a-t-il touchée que, d’elle-même, l’épée jaillit tout entière hors du bloc d’acier et vient se placer dans sa main. || Ayant caché l’arme sous un pan de son manteau, Arthur regagna en hâte le lieu où il avait laissé son frère : " Je n’ai pas pu ramener ton épée mais je t’apporte celle de l’enclume ", lui dit-il en toute innocence. »
O mundo que nos rodeia está povoado de mistérios que as sucessivas gerações de homens têm vindo a explicar de modo parcelar através dos mitos. O desconhecido passou a ter sentidos sistematizados nos livros sagrados das religiões. Essas pequenas histórias globais foram depois associadas às lendas locais. Dizem que foi assim que nasceu a literatura. As grandes epopeias antigas e modernas são um exemplo acabado desta realidade. Assim aconteceu com Gilgamesh, o antigo rei de Uruk que os inventores sumério-acadianos de heróis divinos descreveram, em placas de argila com trinta e cinco séculos de existência, como o grande homem que não queria morrer e encetou uma longa viagem de aventuras para descobrir os segredos da vida eterna.

Os ecos distantes da Guerra de Troia (c. 1250 AEC) travada junto ao Helesponto chegaram aos ouvidos de Homero e Virgílio, que se limitaram a transformar os factos reais ocorridos num passado remoto nas peripécias imaginadas nas rapsódias helénicas da Ilíada-Odisseia (séc. VIII AEC) e nos cantos latinos da Eneida (séc. I AEC). Xavier de Langlais seguiu os mesmos trilhos dos seus ilustres antecessores greco-romanos para compor O romance do Rei Artur (1965-1971), tendo resgatado para a linguagem dos nossos dias a memória das sagas e gestas celtas ainda pagãs de resistência às invasões saxónicas (450-510) das duas Bretanhas, a insular e a armoricana, que antecederam a queda de Roma (476) e marcaram os alvores da cristianização europeia.

Os contos medievais de cavaleiros andantes e amor cortês foram revisitados, as redundâncias discursivas expurgadas, as lacunas entre episódios colmatadas e as contradições existentes entre as diversas versões escritas em verso e prosa resolvidas. As fontes literárias primitivas foram respeitadas na refundição-edição do novo conteor, quer a composta em latim pelo clérigo galo-bretão Geoffrey de Monmouth na Historia Regnum Britaniæ (1130-1136), quer a traduzida para francês antigo pelo poeta anglo-normando Wace no Roman de Brut (1150-1155). Acrescentaram-se alguns lances complementares produzidos sobretudo por Chréstien de Troyes na série de Romans de la Table Ronde (1170-1182/1190) e que dariam corpo à Vulgata e pós-Vulgata do ciclo arturiano.

A tarefa monumental de compilação de toda a matéria canónica foi efetuada em cinco etapas estando agora reunida em dois únicos volumes em tamanho de bolso. O primeiro remete-nos basicamente para as aventuras terrestres (Merlim e a juventude de Artur, os companheiros da Távola Redonda, os primeiros amores de Lancelot e da rainha Genebra e os feitos de Perceval e de Galaad) e o segundo para as aventuras celestiais (a demanda do Graal e o fim dos tempos aventurosos). As duas etapas fundamentais, em suma, da grande epopeia celta que perfazem, em suma, a primeira grande epopeia produzida pela matriz cultural judaico-cristã, aquela que abriria um caminho à vitória decisiva da modalidade romanesca nas letras europeias hodiernas.

Lidos os livros do livro, perguntamo-nos quem seria esse tal Rei Artur dos relatos que ouvimos contar desde a nossa mais tenra infância. O que significa a espada Excalibur, o vaso do Santo Graal, o castelo de Camelot ou a ilha de Avalon. Qual a importância de se ser o melhor cavaleiro do mundo. As respostas são variadas. Verosímeis umas, fantasiosas outras. Os especialistas têm revelado as mais díspares hipóteses interpretativas. As registadas nos anais da História e as gizadas para dar sentido à fábula. As tradições de galeses, córnicos, escoceses, logrenses, islandeses e bretões mantiveram no ar as suas memórias seculares, que os bardos antigos e modernos moldaram ao sabor do momento. E assim os mitos se fizeram lendas. E assim das lendas pariram a literatura.
1965         -         1967        -         1969       -         1971        -      1971

16 de julho de 2018

Cultura futebolística em trompe-l'œil

                   Felix Reidenbach, Deuses do Futebol (2006)                    
[Estação Central de Colónia]

ODE AO FUTEBOL

Retângulo verde, meio de sombra meio de sol
Vinte e dois em cuecas jogando futebol
Correndo, saltando, ziguezagueando ao som dum apito
Um homem magrito, também em cuecas
E mais dois carecas com uma bandeira
De cá para lá, de lá para cá
Bola ao centro, bola fora.
Fora o árbitro!
E a multidão, lá do peão
Gritava, berrava, gesticulava
E a bola coitada, rolava no verde
Rolava no pé, de cabeça em cabeça
A bola não perde, um minuto sequer
Zumbindo no ar como um besoiro,
Toda redonda, toda bonita
Vestida de coiro.
O árbitro corre, o árbitro apita
O público grita
Gooooolllllooooo!
Bola nas redes
Laranjadas, pirolitos,
Asneiras, palavrões
Damas frenéticas, gordas esqueléticas
esganiçadas aos gritos.
Todos à uma, todos ao um
Ao árbitro roubam o apito
Entra a guarda, entra a polícia
Os cavalos a correr, os senhores a esconder
Uma cabeça aqui, um pé acolá
Ancas, coxas, pernas, pé,
Cabeças no chão, cabeças de cavalo,
Cavalos sem cabeça, com os pés no ar
Fez-se em montão multidão.
E uma dama excitada, que era casada
Com um marinheiro distraído,
No meio da bancada que estava à cunha,
Tirou-lhe um olho, com a própria unha!
À unha, à unha!
Ânimos ao alto!
E no fim, perdeu-se o campeonato!

Tóssan
(1918-1991)

13 de julho de 2018

Sexta-feira 13

Jacques de Molay & Geoffroy de Charnay sur le bûcher

Maître de Virgile - Chroniques de France ou de St Denis  (c. 1380-1420)
[Londres - British Library - Royal MS 20 C vii f. 48r]

Filipe da Macedónia foi assassinado durante uma procissão, depois de ter posto a sua estátua pessoal junto às dos Doze Deuses. Jesus da Nazaré foi crucificado depois de ter ceado pela última vez com os Doze Apóstolos. O número irregular 13 terá funcionado, assim, como um sinal de infortúnio, de má sorte, aquele que anunciaria a evolução fatal para a morte. O final dum ciclo e o início dum outro. O desaparecimento do primeiro vai dar origem à ascensão do império de Alexandre Magno, o terceiro mais poderoso da história do mundo ocidental. A eliminação física do segundo vai possibilitar a criação espiritual do Cristianismo, até hoje mais numerosa religião monoteísta à escala global. Quæ bona sunt mala putare...

A associação deste número primo ao derradeiro dia útil da semana remonta a 13 de outubro de 1307, a sexta-feira aziaga em que os Cavaleiros Templários foram acusados de traição à Igreja Católica de Roma sediada em Avinhão por Clemente V, sob pressão de Filipe IV de França. O Trono e o Altar uniram as mãos, mandaram os seus membros para a prisão, por terem cometido os pecados da heresia, imoralidade e sodomia. Supliciaram-nos, condenaram-nos à fogueira e suprimiram a Ordem. Dizem as lendas que Jacques de Molay terá amaldiçoado os dois soberanos enquanto era queimado em Paris, garantindo que seriam julgados por Deus no prazo dum ano, o que de facto viria a acontecer. Qui volunt credunt...

9 de julho de 2018

Picasso e a Guernica a preto e branco com toques de bege e azul

 PABLO PICASSO - GUERNICA (1937) 

[Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía - Madrid]

Alegoria de guerra & paz

No ano em que a Guernica regressou a Espanha, fui visitá-la a Madrid. Estava então alojada provisoriamente no Casón del Buen Retiro, no coração da Cidade do Urso (1981-1992). Pintada por Pablo Picasso em 1937, na sequência do bombardeamento da cidade basca pelos aviões alemães da Legião Condor, ocorrida a 26 de abril desse ano, cumpriu um exílio forçado de 40 anos nos EUA, tendo ficado sob a guarda do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque, atualmente no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía (MNCARS). O impacto causado pela visão do quadro foi de tal modo avassaladora, que ainda hoje perdura na minha memória. Continuo a sentir muita dificuldade em olhá-lo em pormenor e a aceitar a ideia de se tratar do símbolo de paz ou de antiguerra. A imagem da devastação causada pelas forças nazis e falangistas a uma população indefesa continua a sobrepor-se a todas as interpre-tações entretanto apresentadas.

Muita tinta tem corrido na imprensa do outro lado da fronteira sobre a aprovada exumação de Francisco Franco do Valle de los Caídos, apesar da oposição irredutível dos familiares. A operação de purificação do espaço chegou a estar agendada para este mês de julho. A pesada resistência conservadora à deliberação tomada pelo governo de Pedro Sánchez tem sido pesada. Só se sabe de fonte segura que ocorrerá um destes dias. Nunca estive no monumento megalómano mandado erigir pelo Caudillo, para comemorar a vitória das forças nacionalistas contra as republicanas no final da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Talvez seja agora a altura exata de o fazer. Prestar homenagem a esse novo Memorial de Reconciliação e Paz. Aproveitar a viagem e fazer uma segunda visita ao grande mural cubista idealizado pelo mestre da arte moderna para dar uma visão global aos mártires de Guernica. A bagagem é de mão e o caminho fácil de fazer.

6 de julho de 2018

Peter Høeg, as investigações de Smilla Jaspersen sobre os mistérios da neve

Det fryser ekstraordinære 18 grader celcius, og det sner, og på det sprog som ikke mere er mit, er sneen qanik, store næsten vægtløse krystaller, der falder i stabler, og dækker jorden med et lag af pulveriseret, hvid frost.
Peter Høeg, Frøken Smillas fornemmelse for sne (1992)
Numa das minhas visitas a Copenhaga, tive um encontro inesperado numa das livrarias centrais de cidade, a Arnold Busck, na Købmagergade 49. Ia acompanhado duma amiga que ali vive há algumas décadas. Deu-me um toque no braço e perguntou-me se sabia quem era aquele sujeito de cachecol colorido enrolado à volta do pescoço à moda nórdica, que se encontrava a poucos metros de nós a folhear um qualquer livro de título indecifrável. Perante o meu ar de admiração, avançou tratar-se de Peter Høeg, um dos mais aclamados escritores locais do momento. Acabava de publicar um romance que já era bestseller numa trintena de países incluindo o nosso. Pasmei. Até já tinha sido adaptado ao cinema com um sucesso semelhante. Estava a referir-se a Smilla e os mistérios da neve (1992), que consegui encontrar com alguma facilidade no idioma nativo, não muito longe duma versão em inglês. Como o meu conhecimento do dinamarquês se restringe a uma dúzia de palavras mal-pronunciadas, resolvi procurar mais tarde uma tradução para português. Foi o que fiz. Depois deixei-o a repousar tranquilamente no meio de muitos parentes seus até que os dias quentes do Sul lhe ditaram o fim duma hibernação forçada de anos.

A capa-contracapa e badanas avançam logo pistas sobre a natureza da fábula. Filiam-na na esfera dos thrillers escandinavos, onde reina o suspense e o exotismo noir. A suspeita dum crime terrível ocorrida no seio da pequena comunidade esquimó da Gronelândia a viver em Copenhaga funciona como o leitmotiv que norteará a quase meia centena de páginas onde se urdirão todas as intrigas, maquinações, enredos e conspirações anunciados pelos editores nos locais de destaque referidos. A tarefa de desvendar os mistérios escondidos na neve estará a cargo da protagonista, cujo nome nos é revelado no título. Um policial, em suma, com cenário centrado em dois polos distintos do universo dinamarquês, a capital do reino e a antiga colónia dos mares do Norte. Uma informação tão circunstanciada da trama desencadeou um efeito inibidor na minha vontade de avançar com a leitura do livro. É que o efeito da surpresa me parecia seriamente ameaçada de morte. Após uma hesitação passageira, decidi-me pela visita completa a esse mundo branco desconhecido de secretismos revelados em primeira mão e na primeira pessoa. Não me arrependi de o ter feito. Os publicitários nem sempre são tão exagerados como os pintam.

O testemunho pessoal relatado por Smilla Qaavigaaq Jaspersen distribui-se por seis partes, agrupadas em três blocos temáticos: a cidade, o mar e o gelo. As deambulações reflexivas proferidas propiciam-nos uma quase visita guiada pelas ruas, ruelas, praças,  pracetas, avenidas e alamedas de København. A ficção acaba por nos conduzir a espaços emblemáticos tantas vezes percorridos em visitas reais. A Christianshavn, o Kongens Have, o Kongens Nytorv, o Hotel d'Angleterre e La Brioche d'Or, o Dyrehaven, a Frelserkirke e o Amaliansborg. Depois dirigimo-nos para o porto. Embarcamos no Kronos, transpomos o estreito de Øresund, deixamos o Báltico e navegamos pelas águas oceânicas do Atlântico e do Ártico. O estreito de Helsingør-Helsingborg e o castelo de Kronborg ficam para trás e entramos na toponímia algo exótica dum navio de grande cabotagem preparado para as rotas geladas da Grønland. A voz feminina da protagonista-narradora continua a marcar o discurso mas começa a confundir-se com a do autor-romancista, que, antes de se dedicar à arte da escrita, já abraçara as atividades de bailarino, ator, marinheiro e alpinista. Toda uma experiência de vida vivida emprestada às vidas imaginadas.

Um miúdo de seis anos caiu do telhado dum prédio de sete andares e estatelou-se no chão sem vida. A testemunhar essa escalada insensata, ficaram registadas na neve as suas pegadas de criança. O inquérito oficial arrolou o desfecho trágico verificado na categoria dos acidentes. Tudo ficaria por aí se o suspeita de assassinato não tivesse surgido como uma hipótese tornada certeza. É que a vítima tinha pavor às alturas e nunca teria subido até àquele local de livre e espontânea vontade. Assim o pensou a vizinha, convertida em investigadora por conta própria do enigma e relatora dos resultados obtidos. No final, tudo se resolve ou quase tudo. Nessa perseguição sem tréguas para encontrar uma solução plausível do insólito, os perigos sem fim encontrados em cada esquina surgem em catadupa, como cogumelos bravios em terreno propício. Os arrepios causados pelas peripécias de percurso só não atingem um grau maior, porque sabemos tratar-se duma ficção realista verbalizada por um eu singular concreto, humano, abrangido pelas leis do natural, obrigado a sobreviver até ao derradeiro parágrafo, período e palavra escrita em letra de imprensa. E nada mais fica por dizer quando não há mais nada para dizer.

2 de julho de 2018

La sagesse du muletier et les diseurs de vers

Nasreddin Hodja - Miniatura dum manuscrito do séc. xvii
[Istanbul, Topkapı Sarayı Müzesi - Cat. No. 2142]

Les sauterelles et les moutons
On me demande pourquoi je me lamente sur mon sort,
Comme si jamais avant je n’avais souffert des sauterelles !
Il est vrai qu’elles avaient envahi mon champ l’année dernière,
Mais celles de l'année dernière ne dévoraient pas les moutons. 

Les agneaux et les loups
Vos lèvres se sont frôlées, puis se sont écartées,
Comme si vous aviez épuisé votre part de bonheur et que vous aviez peur d'empiéter déjà sur celle des autres,
Vous étiez innocents ? De quoi préserve-t-elle, l'innocence ?
Même le Créateur nous dit d'égorger les agneaux pour nos réjouissances.
Jamais les loups...

La femme et les rêves
La femme de tes rêves est l’épouse d’un autre, mais ce dernier l’a chassée de ses rêves.
La femme de tes rêves est l'esclave d'un marin. Il était ivre le jour où il l'a achetée sur le marché d'Erzerum, et en se réveillant il ne l'a plus reconnue.
La femme de tes rêves est une fugitive, comme tu l'as été, et vous avez cherché refuge l'un vers l'autre.

Le bateau et l'amant
Quand le bateau l’attendait au port, tu l’as cherchée pour lui dire adieu.
Mais de cet adieu-là, ton amante ne voulait pas.

L'absent et l'ami
Pour tous les autres, tu es l’absent, mais je suis l’ami qui sait.
À leur insu tu as couru sur le chemin du père meurtrier, vers la côte.
Elle t'attend, la fille au trésor, dans son île : et ses cheveux ont toujours la couleur du soleil d’occident.

Amin Maalouf, Le Rocher de Tanios
(Paris : Grasset & Fasquelle, 1993,  pp. 64, 139, 198, 200-201, 278)