28 de junho de 2018

María Dolores Pradera: toda una vida...

Ouvi pela primeira vez uma das mais entrañables vozes da canção hispânica em meados da década de 70. Encontrava-me então a passar férias de verão em casa duns amigos meus extremeños que conhecera no final dos anos 60. Enquanto arrumávamos a mesa da sala dum pequeno almoço tardio ou a preparávamos para uma qualquer outra refeição da tarde, ligámos a televisão. No ecrã surgiu a mira técnica da RTVE pintada ainda a preto e branco. O silêncio foi quebrado pelas palavras cantadas por María Dolores Pradera: Amanecí otra vez entre tus brazos...

Foi amor à primeira vista, de tiro e queda, um flechazo. A voz sem rosto que ouvi nesse entardecer de agosto ficou gravada na minha memória até hoje. Voltei ao seu convívio através dos registos em vinil, cassete, CD e vídeo. Boleros, rancheras, corridos, milongas, habaneras, coplas, pasodobles, zambas, fados. a vira na RTP sem saber quem era e com a voz dobrada na Inês de Castro (1945) de Leitão de Barros. Encarnava o papel de D. Constanza Manuel, a rainha consorte repudiada de Castela e princesa mal-amada de Portugal. Cómo han pasado los años...

E a voz sem rosto da cantiga juntou-se ao rosto sem voz do filme e formou um todo que me acompanhou ano após ano, década após década. Ininterruptamente. Sem vacilar. E das rádios e das televisões, e dos discos e dos palcos, passou decididamente para a blogosfera. Invadiu a Net. Tem um lugar destacado no YouTube. Rendeu-se às redes sociais e ganhou uma página no Facebook. Partiu sem regresso aos 93 anos sem dizer adeus. Soube-o através dos canais à dimensão global deste nosso mundo virtual. Deixou-nos a voz e o rosto na memória. Toda una vida...

22 de junho de 2018

Aromas e sabores das maçãs proibidas e cobiçadas, símbolos de amor e morte

«Tal como a macieira entre as árvores da floresta | é o meu amado entre os jovens. | Anseio sentar-me à sua sombra, | que o seu fruto é doce na minha boca. || Leve-me para a sala do banquete, | e se erga diante de mim a sua bandeira de amor. || Sustentem-me como bolos de passas, | fortaleçam-me com maçãs, | porque eu desfaleço de amor...»
Cântico dos Cânticos (Ct 2, 3-5) 
Contam os mitos antigos feitos lendas que  no fim do mundo, onde a terra e o mar se encontram, existiu um pomar divino plantado pela rainha do Olimpo, irmã e esposa de Zeus. Estava guardado por uma serpente gigantesca de fulvo dorso e era conhecido pelo Jardim das Hespérides ou dos Imortais, porque cresciam no seu interior as maçãs de ouro, as tais que garantiam a quem as possuísse a eterna juventude. Por altura das bodas de Thétis e Peleu, a Discórdia apareceu sem ser convidada no meio da cerimónia e ofereceu um desses frutos cobiçados à mais bela das deusas presentes. A rivalidade entre Hera, Atena e Afrodite conduziriam ao Julgamento de Páris, ao Rapto de Helena e à Guerra de Troia. Mas isso já são outras histórias a que Homero deu a forma de epopeia.

No outro lado do mundo, perto do local onde o sol surge todas as manhãs, também terá havido um Jardim das Delícias ou do Éden. Foi plantado por Javé, aquele que terá dado origem a tudo o que existe. Destinou-o ao primeiro homem e à primeira mulher por si criados. Fez deles seus guardiões eternos. Podiam comer os frutos ali postos ao seu dispor menos as maçãs fornecidas pela árvore do conhecimento. O aroma emanado desse pomo proibido fazia adivinhar que o seu sabor lhe não ficaria atrás. Eva deixou-se tentar pela serpente e deu-o a comer a Adão. O resultado da desobediência foi a sua expulsão do Paraíso Terrestre. Foram condenados aos ditames do bem e ao mal, situados entre a vida e a morte. Histórias da justiça divina tornadas exemplares no livro dos livros sagrados.

Há muitos anos, vivia num país distante uma princesa chamada Branca de Neve. Quando a mãe morreu, o pai voltou a casar-se. Os ciúmes da nova rainha pela beleza da enteada não tardaram. Resolveu eliminá-la fisicamente para assim assegurar o afeto exclusivo do rei. Tal como costuma acontecer nestes relatos, a vítima escapou à morte. Abandonada no meio da floresta do reino, foi recebida por sete anões, com quem passou a morar. A teia narrativa prossegue com mil e uma peripécias, gizadas ao sabor da imaginação do contador de serviço. Pelo meio fala-se dum espelho encantado, da maldade da madrasta e do poder letal duma maçã mágica. Refere-se ainda o beijo de amor dum príncipe perfeito, que dará um final feliz a um conto infantil conhecido de todos.

As alegorias com maçãs têm proliferado ao longo dos tempos, de levante a poente, de norte a sul, ou nesse país de fantasia ou do faz-de-conta. Referem-se a um fruto que a ciência remeteu para a categoria dos pseudofrutos, por crescer num tecido adjacente ao ovário da flor. Depois descobrimos que o Pomo da Discórdia seria uma «laranja», que o grego atual designa por πορτοκαλί (portucali), e que o nome latino do Fruto Proibido, malum, tanto pode significar «maçã» como «mal». Do que não restam dúvidas, é que a semente do livre-arbítrio helénico de Páris ou judaico de Adão formam um pentagrama simbólico perfeito do amor e do saber imortais. Que Eva e Helena o neguem se puderem. Que a Branca de Neve e o Príncipe Perfeito das histórias de fadas o façam também se souberem.

                P E N T A G R A M A             

18 de junho de 2018

Kazuo Ishiguro e os despojos do dia dum mordomo inglês perfeito

«It is sometimes said that butlers only truly exist in England. Other countries, whatever title is actually used, have only manservants. I tend to believe this is true. Continentals are unable to be butlers because they are as a breed incapable of the emotional restraint which only the English race are capable of. Continentals - and by and large the Celts, as you will no doubt agree - are as a rule unable to control themselves in moments of a strong emotion, and are thus unable to maintain a professional demeanour other than in the least challenging of situations. If I may return to my earlier metaphor - you will excuse my putting it so coarsely - they are like a man who will, at the slightest provocation, tear off his suit and his shirt and run about screaming. In a word, "dignity" is beyond such persons. We English have an important advantage over foreigners in this respect and it is for this reason that when you think of a great butler, he is bound, almost by definition, to be an Englishman.»
Kazuo Ishiguro, The Remains of the Day (1989)
A Academia Sueca anunciou que adiaria por um ano a atribuição do prémio Nobel da Literatura 2018. O motivo de tal decisão deve-se a uma guerra interna desencadeada por alguns dos seus membros. Fala-se em escândalos de favorecimento e doutros assuntos mais cabeludos. Perante um tal panorama, somos levados a olhar apreensivamente para a lista completa dos já laureados nesta categoria e a encarar com alguma perplexidade o grau de isenção seguida pelos ilustres académicos na hora de tornarem público o seu veredito. A fama alcançada nessas ocasiões de vanglória é muitas vezes efémera, as obras deixam de ser visitadas pelos leitores e os autores sobreviventes ao esquecimento resultam escassos. Kazuo Ishiguro estará por ventura nesta última categoria. Como só li até ao momento Os despojos do dia (1989), é-me difícil ajuizar o conjunto da sua produção, lacuna que espero colmatar em breve. Pela parte que me toca, parece ser já um bom sinal de confiança na qualidade intrínseca de toda ela. A ver vamos.

Comecei pelas reflexões memorialistas dum mordomo inglês perfeito, idealizadas pelo romancista, contista e guionista britânico de nacionalidade japonesa, por me ter sido dito tratar-se da sua magnum opera. Confiei no alvitre, segui em frente e fiquei satisfeito. A ação decorre no Sudoeste da Grã-Bretanha, numa qualquer semana de julho de 1956. James Stevens, o protagonista-relator, aproveita a ausência do atual proprietário da Darlington Hall, congressista aposentado americano Mr. Farraday, para empreender uma excursão recreativa pelo West Country, ao volante do Ford que o amo lhe emprestara para tal fim. Na linha de chegada, estará Miss Kenton, ex-governanta da casa senhorial, com quem marcara um encontro semiprofissional/semipessoal. Nas seis etapas que dura a viagem, terá ocasião de descrever os principais pontos do país por onde foi passando, confrontando a sua visão pragmática com a que Jane Symons inscrevera pedagogicamente na The wonder of England. Ficção na ficção. Toque de verosimilhança na elaboração dum relato de viagens, em que os factos imaginados se cruzam constantemente com os acontecidos. Os destinos das personagens inventadas dão as mãos aos destinos possíveis das personalidades históricas convocadas. São chamadas uma a uma ao convívio da velha mansão aristocrática, pertença então de Lord Darlington, nos anos que mediaram o final da Grande Guerra (1918) e o rescaldo da Segunda Guerra Mundial (1953). A deslocação pelos condados de Wiltshire, Dorset, Somerset, Doven e Cornwall são um pretexto para o protagonista elaborar o balanço da sua carreira e traçar o retrato do país onde a exercera. A revisitação crítica à primeira metade do século passado entra em cena. A morte anunciada duma certa forma de estar no mundo e o nascimento de formas alternativas de o gizar tomam forma à medida que a viagem se vai fazendo.

Nas pausas da jornada, interroga-se sobre um conjunto de questões consideradas por si como de transcendente importância para definir o seu desempenho profissional, tais como aferir a pertinência do domínio dos ditos espirituosos e respetivas réplicas, determinar quais os procedimentos mais adequados para garantir a limpeza e brilho das pratas, identificar as potencialidades existentes na literatura sentimental, compreender de que é composta a dignidade que conduzirá um grande mordomo a servir um grande senhor. Todos estes temas de meditação são largamente desenvolvidos  ao longo do relato. Monólogos interiores passados a escrito no caderno de bordo à compita com diálogos travados noutras ocasiões com os seus parceiros de ofício. O confronto com outras mansões acaba por se impor. A Easterly House, Charleville House ou a Loughborough House estão nesse rol, tais como a Grandchester Lodge ou Branbury Castel, são palco de disputas, controvérsias, dissidências, desacordos e discórdias. Nada que um mordomo filho de mordomo não aprecie.

A crise vivida pela Alemanha nas décadas que se seguiram à assinatura do Tratado de Versalhes acaba por tomar conta das recordações do narrador-viajante, que as transfere para as páginas do seu diário pessoal. O tal que nós lemos, de mão beijada, sob a forma dum romance laureado pelo Booker Prize de ficção (1989), ou podemos visionar em adaptação cinematográfica de James Ivory (1993). A personalidade do aristocrata inglês a quem serviu durante trinta e cinco anos vai sendo revelada ao sabor da pena. Lentamente. Com todo o vagar exigido pelas circunstâncias. O antissemitismo latente de Sua Senhoria é apresentado como um acidente de percurso e a simpatia que nutria pelos ideais nazis entendida como um equívoco. Estes e outros pormenores criteriosamente escolhidos mais não fazem do que anunciar e clarificar o final triste a que esse grande homem foi condenado nos restantes dias de vida. No termo da visita, o motorista-mordomo encontra-se com a antiga governanta da casa senhorial que serviram com toda a dedicação exigida na época. Nada mais há a dizer sobre os despojos dos dias e dos anos de submissão a uma ordem social perdida. Ficou tudo dito sem possibilidade de correção ou remissão. Duas vidas perdidas para a vida a juntarem-se a muitas outras envolvidas pelas teias do ser e do parecer, apagadas pelas tradições herdadas ou fabricadas à medida. Os dois regressam a casa e nós fechamos a contragosto o livro que nos acompanhou enquanto viajámos na sua companhia por este mundo do faz-de-conta a que chamamos literatura.

13 de junho de 2018

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar...

 Almada Negreiros, Retrato de Fernando Pessoa, 1954  
As pátrias da língua...
Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintática, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.

Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se mistu-ram e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mes-mas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.

Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa seleta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.

Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

Fernando Pessoa, Livro do desassossego. Lisboa: Assírio & Alvim, 2014, pp. 217-219.
[Publicado em Descobrimento. Revista de ortografia portuguesa, N.º 3, 1931, pp. 409-410 ]

10 de junho de 2018

Floresça, fale, cante, ouça-se e viva a portuguesa língua...


A PERO D’ANDRADE

Caminha.


CARTA III.

Floreça, fale, cante, ouçaʃe, & viua
A Portugueʃa lingua, & jà onde for
Senhora vâ de ʃi ʃoberba, & altiua.
Se tèqui eʃteve baixa, & ʃem louuor,
Culpa he dos que a mal exercitâram,
Eʃquecimento noʃʃo, & deʃamor.
Mas tu farâs, que os que a mal julgarâm,
E inda as eʃtranhas linguas mais deʃejam,
Confeʃʃem cedo ant’ella quanto errâram.
E os que deʃpois de noós vierem, vejam
Quanto ʃe trabalhou por ʃeu proueito,
Porque elles pera os outros aʃsi ʃejam…

DEDICADOS POR SEV FILHO
Miguel Leite Ferreira, ao Principe D.
PHILIPPE noʃʃo ʃenhor.

EM LISBOA
Impreʃʃo com licença, Por Pedro Crasbeeck.
M. D. XCVIII.
Com Priuilegio. A cuʃta de Eʃteuão Lopez Liureiro.

4 de junho de 2018

Crónica primaveril duma taça de cerejas

UM MONTE DE CEREJAS 
Quem quer uma quer um cento

A passagem lenta dos frios invernais para a canícula estival faz-se através do vermelho carnudo, suculento e sensual da cereja. Os chapéus-de-chuva fecham-se e os chapéus-de-sol abrem-se. Os tempos do negócio cedem passo aos tempos do ócio.       

E as cerejas são como as palavras, atrás dumas outras vêm. A cesta pintada pela Josefa d'Óbidos torna-se numa taça perfumada de cerejas. Primaveril. A linguagem dos sentidos com todos os sentidos consentidos e a gosto. E a natureza-morta ganha vida.

Juventude, doçura, sensualidade, fertilidade, efemeridade, pureza, inocência, fragilidade, felicidade, amor, esperança e nascimento cabem todos numa mão-cheia de cerejas. Cada fruto um mundo de sabores exóticos a festejar a plenitude do ser e do estar.