28 de janeiro de 2022

O regresso da cassete estafada e disco riscado, qual fénix ávis única renascida

Fenix auis vnica
Hartmann Schedel – Schedelsche Weltchronik – 1493
PHÉNIX
Le phénix, suivant ce qu'en ont rapporté Hérodote et Plutarque, est un oiseau mythique, d'origine éthiopienne, d'une splendeur sans égale, doué d'une extraor-dinaire longévité, et qui a le pouvoir, après s'être consumé sur un bûcher, de re-naître de ses cendres. Quand l'heure de sa mort approche, il se construit un nid de brindilles parfumées où de sa propre chaleur il se consume. Les aspects du symbolisme apparaissent donc clairement : résurrection et immortalité, résur-gence cyclique.
Chevalier-Cheerbrant, Dictionnaire des symboles. Paris: Laffont/Jupiter, 1982,747b

VIRA O DISCO E TOCA O MESMO

O circo desceu à cidade, organizou arruadas na malha urbana, subiu a palanques de gritar slogans, instalou bancadas de banha-da-cobra, recorreu à árvore das patacas e prometeu mundos e fundos, a torto e a direito. Pegou em palavras de ordem vazias trazidas doutras visitas cíclicas ao burgo, decalcadas a papel químico e gritadas a plenos pulmões como em dia de estreia absoluta. Estimado público, meninos e meninas, damas e cavalheiros, é entrar é entrar, que o espetáculo vai começar e a todos vai contentar.

A cassete estafada voltou a dar voz aos fala-barato do viró disco e toca o mesmo. A esperteza saloia de chicos, chiquinhos e chicões tornou a destilar ódios de estimação, em lutas renhidas de galos, galinhos e galuchos. As línguas de trapo de palmo e meio insuflaram bagatelas pejadas com chavões, chavinhas e chavetas da ordem, a encher chouriças com conversas da treta e lavagem ao cérebro de vinil riscado, num zig-zag banal e contínuo dum blá-blá-blá já dito e dum patati-patatá já ouvido de fénix renascida.

O circo vai dar o último espetáculo e a feira sazonal vai zarpar para outros arraiais de triturar palavras. Para trás deixará uma mancheia de mezinhas universais aptas a debelar todos os males físicos e morais que nos afligem nestes nossos tempos agitados. Das promoções do unto milagroso feito com enxúndia de serpente, panaceia infalível para resolver de vez a totalidade dos problemas presentes, passados e vindouros, ficará o engodo das esferográficas manhosas que de quando em quando até escrevem, ou talvez não...

HERGÉ
Les aventures de Tintin
« Les cigares du pharaon »
(1934)

24 de janeiro de 2022

Les beaux cheveux de la fille de l'ancien professeur de dessin

Histoire exemplaire...

« Un ancien professeur de dessin de ma grand-mère avait eu d'une maîtresse obscure une fille. La mère mourut peu de temps après la naissance de l'enfant et le professeur de dessin en eut un chagrin tel qu'il ne survécut pas long-temps. Dans les derniers mois de sa vie, ma grand-mère et quelques dames de Combray, qui n'avaient jamais voulu faire même allusion devant leur profes-seur à cette femme avec laquelle d'ailleurs il n'avait pas officiellement vécu et n'avait eu que peu de relations, songèrent à assurer le sort de la petite fille en se cotisant pour lui faire une rente viagère. Ce fut ma grand-mère qui le pro-posa, certaines amies se firent tirer l'oreille, cette petite fille était-elle vrai-ment si intéressante, était-elle seulement la fille de celui qui s'en croyait le père ; avec des femmes comme était la mère. On n'est jamais sûr. Enfin on se décida. La petite fille vint remercier. Elle était laide et d'une ressemblance avec le vieux maître de dessin qui ôta tous les doutes ; comme ses cheveux étaient tout ce qu'elle avait de bien, une dame dit au père qui l'avait conduite : Comme elle a de beaux cheveux . Et pensant que maintenant, la femme coupable étant morte et le professeur à demi-mort, une allusion à ce passé qu'on avait toujours feint d'ignorer n'avait plus de conséquence, ma grand-mère ajouta : “ Ça doit être de famille. Est-ce que sa mère avait ces beaux cheveux-là ? ” “ Je ne sais pas, répondit naïvement le père. Je ne l'ai jamais vue qu'en chapeau. ” »

MARCEL PROUST
À l'ombre des jeunes filles en fleurs
Paris: Folio Classique, 2019 (II, 604-605)

18 de janeiro de 2022

Os cromos dos cromos

HISTÓRIA DE PORTUGAL
 [Lisboa: Agência Portuguesa de Revistas, 1953]

cro·mo

(grego khrôma, -atos, cor)
Desenho impresso a cores.
Pessoa que tem um comportamento considerado estranho, excêntrico ou ridículo.
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Chegou às minhas mãos uma caderneta da História de Portugal em cromos. Trouxe-me à memória a febre colecionista desse tipo de desenhos impressos a cores que invadiu parte da minha meninice. Nunca fui um cromo dos cromos mas deixei-me envolver pela tarefa durante os tempos do primário. A atividade foi rápida a chegar e célere a partir. Veio com força por altura da terceira classe e zarpou de mansinho no final da quarta sem vontade de voltar.

Há muito tempo que perdi o paradeiro das 204 vinhetas coladas a preceito no local devido. A azáfama começava com a abertura das carteiras compradas avulso e com três exemplares no interior. No início era tudo muito fácil, depois havia o problema das repetições e o afã renhido de trocar os cromos duplicados pelos cromos em falta. Sempre os mesmos, uns e outros. A Agência Portuguesa de Revistas sabia muito bem como fazer render a fruta.

Com a ajuda do proprietário da Livraria Silva Santos e a permuta constante com os colegas de escola, lá consegui chegar ao número mágico dos já não sei quantos cromos mais difíceis de encontrar, o tal que me permitia solicitá-los diretamente à editora. Completei o álbum e parti para outras aventuras consideradas à época mais interessantes ou menos trabalhosas. Pontos de vista impostos pela idade. O álbum lá ficou esquecido até hoje. Quem diria...

12 de janeiro de 2022

José Saramago, as intermitências da morte parada ou da vida suspensa

«No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às nor-mas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspetos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos qua-renta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com to-das as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e noturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidentes de automóvel tão frequentes em oca-siões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desa-fiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.»
José Saramago,  As intermitências da morte (2005)

Resolvi retomar a leitura d'As intermitências da morte (2005) quando se inicia a celebração do primeiro centenário do nascimento de José Saramago (1922-2010), talvez por ser o romance onde o autor aborda dum modo mais incisivo a temática da finitude humana. A morte que alimenta a vida e a vida que alimenta a morte, a lembrar-nos o quão inseparáveis são uma da outra, tal como o verso e o reverso duma mesma moeda. Quando uma falta, a outra perde o sentido de existir, convertendo-se num paradoxo que a liberdade criadora da poesia integral ou da prosa poética viabilizam, com recurso aos preceitos retóricos da alegoria, a expressão verbal ou plástica duma realidade abstrata através duma realidade concreta.

No primeiro dia dum qualquer ano sem registo visível no calendário, ninguém morreu naquele reino anónimo de raias geográficas ignotas e vizinhos obscuros. Nesse mundo alternativo tão próprio da alotopia, o tal onde se passam coisas impossíveis de visualizar no nosso. Ali, os animais e os objetos continuam a carecer do dom da fala, os magos, as fadas e as varinhas de condão nem sequer são aludidos, mas onde o insólito se manifesta quando a morte se veste de gente, assume a forma de mulher e por fadiga ou mero capricho  interrompe por períodos intermitentes o ciclo natural da vida-morte, aquele que vai inexoravelmente do berço até à tumba. No final do relato, feito de metáforas continuadas, parece apaixonar-se por um violoncelista de orquestra, deita-se com ele na cama e até consegue dormir um sono descansado de duração imprevisível. A culpa terá sido do desenho melódico da suite número seis de Bach ou do modo como o instrumentista anónimo a executara. Vá-se lá saber ao certo se se terá tratado do poder imortal da música ou do efeito vitorioso do amor. Seja como for, a verdade é que tal como na passagem do ano velho para o novo, no dia seguinte ninguém morreu. Os extremos a tocarem-se no início e final do romance. 

José Saramago está sempre a surpreender-me a cada momento. Das leituras às releituras, sempre algo a acrescentar ao dito ou por dizer. Sinal de imortalidade tão querida das boas e más utopias. Nas primeiras, as eutópicas, anseia-se pelo elixir da vida eterna a alentar o mito da eterna juventude. Nas segundas, as distópicas, o sonho de luz radiosa converte-se num pesadelo de trevas abissais, quando a ausência da morte deixa de garantir a qualidade de vida perene. É que nos contramitos, não se defunta e estica o pernil, mas envelhece-se ininterruptamente cada dia, a degradação física entra em cena e o desejo de passar desta para melhor ganha protagonismo. A vida suspensa ou morte parada perde o sentido de ser e o recurso à morte assistida instala-se, a provar por A+B que quando se fala de matar e dar a morte nos estamos a referir a duas realidades distintas.

Na ficção ideada  década e meia, tinha de se cruzar a fronteira em segredo, com ou sem recorrer às máphias geradas pela crise, com o simples propósito de morrer em paz e sem dor num país vizinho. Hoje em dia, a realidade continua a ser mais ou menos a mesma. Assim haja poder financeiro para o fazer. A acherontia atropos, a borboleta da caveira no dorso entendida como mensageira da morte solicitada e sempre adiada, continua a esvoaçar como um anjo da escuridão dum lado para o outro desde 1995, ano em que se iniciou entre nós o debate sobre a despenalização da morte medicamente assistida ou eutanásia. Uma palavra maldita difícil de proferir por quem lhe custa a entender o peso do livre-arbítrio que assiste a quem a invoca. As partidas de xadrez executadas pela forças de poder instituído continuam os seus jogos, joguinhos e jogatinas de diversão pura para assim levar a água ao seu moinho. Uma corrida de estafetas entre as decisões da Assembleia da República, as dúvidas do Presidente da República e as hesitações do Tribunal Constitucional. Mutatis mutandi e por redução ao absurdo, os queixumes à greve da morte romanesca são alimentadas pelos negócios funerários, pelos hospitais públicos e privados, pelos lares do feliz ocaso de terceira e quarta idades, pelas seguradoras, pelas igrejas, pelos filósofos, políticos e teólogos, fazendo coro num muro das lamentações de causas perdidas daquele país de fábula, com tantos pontos em comum com o mundo factual existente fora das páginas dum livro.

O desenho narrativo das intermitências da morte impede a inserção da história inverídica no círculo estrito duma pandemia verídica. Falta-lhe o caráter universal, alargado e simultâneo. Foge também à alçada dum vulgar surto infecioso, duma epidemia geral ou duma endemia local, por carecer duma origem natural, aquela que ao invés de matar condena o paciente a uma vida sem morte à vista. Lidos e relidos os livros, fica-se com a certeza que a vida para além da morte é possível. Assim se tenha engenho e arte comprovadas e obras valorosas para festejar a imortalidade conquistada e merecida.

Acherontia atropos
(borboleta-caveira)