26 de fevereiro de 2021

Os olhares coloridos da imaginação

O SENTIDO DOS SENTIDOS: VISÃO

Dizem que o arco-íris ou arco-da-velha tem sete cores ou até mais. Para mim só têm três e nem sempre bem distintas. Parece-me distinguir o vermelho, o amarelo e o azul, que julgo ficar nos extremos do espetro solar refratado ou refletido sobre as nuvens e que os meus olhos de daltónico moderado conseguem enxergar. Não tenho como comprová-lo de ciência segura ou se estou a confundi-lo com o laranjaverdeanil-violeta, que dizem fazer-lhes companhia depois duma tempestade húmida passar e se começa a restabelecer a paz ou aliança entre o céu e a terra. Áureos eram os tempos da televisão a preto e branco a jogar com o cinzento claro e escuro, num fundo indefinido de 1001 cores projetadas no pequeno ecrã. 

Em tempos tive uma televisão modelo caixote, apesar de já ser a cores. Um dia cansou-se e deu o pio mestre. Substitui-a por uma outra já de plasma toda cheia de nove horas, mas continuei a ver as legendas desfocadas como na antiga. Depois descobri que o defeito não era do aparelho mas da vista cansada. Foi a partir daí que passei a usar óculos progressivos. O sentido dos sentidos prega-nos destas partidas, como ver pinturas impressionistas sob o efeito das anestesias gerais ou de ver imagens luminosas durante a correção clínica às cataratas. Alucinações coloridas da imaginação que depois não soube reproduzir com pincel e aguarelapor ignorância total dos cromatismos percecionados em momentos muito especiais.

23 de fevereiro de 2021

Abelhas, vespas & companhia

JOANA VIEGAS
Palácio de Seteais
(2014)

Ferroadas voadoras...

1. História de mel amargo
Andou por aí à solta um grupo tresmalhado de abelhas, vespas ou primas próximas dumas e doutras e ferroou em vários locais uma vizinha nossa, que teve de recorrer ao serviço hospitalar. À parte dos inchaços e vermelhões acostumados em casos que tais, o fait divers passou ao rol daqueles episódios caricatos que mais tarde dá vontade de rir a contar. Lembro-me de algumas delas pessoais e ter-me-ei esquecido de algumas mais sem direito a esta historieta de ferroadas voadoras. 

2. História do chafariz d'el-Rei
Em miúdo e graúdo sofri alguns desses ataques aéreos, mas tive sempre tratamento caseiro, rápido e eficiente. No largo das brincadeiras junto ao chafariz d'el-Rei, nas bancadas da praça da fruta, um ou outra que entrou pelo quintal dentro. O segredo então era deixá-las esvoaçar dum lado para o outro sem as incomodar. O pior é quando as perturbamos sem as ter visto. Fui ferroado várias vezes e pronto. Nas mãos, na cara, nas pernas. Sobrevivi sempre para recordar como foi.

3. História do vespeiro da Lourinhã
E houve aquela vez que em estava a brincar com as molas de roupa em casa da minha avó. Estava de calções e sentado no chão a apanhar ar junto à janela entreaberta. Subitamente senti uma dor lancinante nas partes pudendas. Tinha sido uma vespa que se escapara dum candeeiro público colocado naquele primeiro andar. Passou-me com o toque duma faca fria na zona afetada. Adormeci de seguida e acordei curado. Remédio santo sem sequelas a apoquentar-me a memória.

4. História do piquenique de Seteais
O mais recente episódio ocorreu ainda em meados dos anos 70 na serra de Sintra, num piquenique de colegas nos jardins do Palácio de Seteais. Depois de estendida a toalha e disposta a merenda, sentei-me em cima dum vespeiro camuflado na relva viçosa da vasta pradaria. Aos sete ais da lenda juntaram-se os ais adicionais das mordidas. Não me recordo como mitiguei então a dor e o inchaço, mas decerto não foi com a lâmina duma faca de cozinha nem com a ajuda da avó...    

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19 de fevereiro de 2021

Lawrence Durrell, Mountolive: o terceiro ato do Quarteto de Alexandria

«“How do you spell love in Alexandria? - he said at last, softly. - That is the question. Sleeplessness, loneliness, bonheur, chagrin... I do not want to harm or annoy her, but I feel that somehow, somewhere, she must need me as I need her.”»
Lawrence Durrell, Mountolive (1958: x)

O encenador-romancista surpreende o público-leitor quando altera o registo discursivo ao abrir o terceiro ato d'O quarteto de Alexandria, dedicado agora a Mountolive (1958), o embaixador britânico no Egito que revive o seu amor de juventude com Leila, casada com Faltaus, patriarca dos Hosnani. Um novo-velho triângulo amoroso que o tempo de representação-leitura se encarregará de esclarecer-resolver. A subjetividade assumida de Darley é substituída pela objetividade possível duma voz off, de fundo ou de bastidores, a única capaz de reproduzir com verosimilhança e fidelidade os monólogos interiores dos atores-personagens e de transmitir os pensamentos mais íntimos de todos eles. A boca de cena conduz-nos o olhar para uma canoa de fundo chato que leva o ainda jovem secretário pelos canais salobros do Mariótis, o lago de águas turvas e plena de ilhotas franjadas de canaviais e vida selvagem. Está-se na época da caçada anual de aves e a ação vai começar, fora do ambiente inicial até aí seguido da ilha isolada do mar Egeu.

O protagonismo do até então narrador apaga-se quase por completo nas cenas iniciais do relato. Só volta a ser referido muito de raspão já a representação vai bastante adiantada, para reaparecer depois muito timidamente daí para a frente, como mero interveniente sem relevo especial no evoluir dos eventos revelados. O mesmo se pode dizer dalguns dos seus amigos mais chegados. O centro do interesse da efabulação transforma-os em meros figurantes, trocando-os amiúde por alguns outros do círculo de conhecimentos do novo herói da série, aquele que empresta o nome à terceira fase deste contínuo de palavras convocadas para um quase roman-fleuve, embora a instância autoral se negue a admiti-lo perentoriamente. Justine, Nissan e Narouz estão no fulcro de tudo e por razões até então desconhecidas: o pacto diabólico planeado pelo casal Hosnani e correligionários clandestinos da conspiração copta sobre a questão da Palestina, nas vésperas do grande conflito mundial que alteraria para sempre a relação periclitante entre as nações a nível local-global e estabeleceria uma outra ordem entre todas elas.

Já referi anteriormente o predomínio da descrição sobre a narração, na prodigiosa técnica do emissor externo nos transmitir a ilusão de estarmos a presenciar como testemunhas oculares aquilo que ele nos quer mostrar e pretensamente está a ver, a ouvir e a sentir. A sociedade multiétnica de Alexandria, os hábitos, crenças e línguas dos seus habitantes: turcos e judeus, árabes e coptas, sírios e arménios, italianos e gregos, franceses e ingleses, para além dos próprios egípcios. Faz-nos um retrato pormenorizado das águas castanhas do Nilo e das verdes do Mariótis, dos edifícios de tijolo cor de sangue de boi, dos comboios violeta rangendo na linha do horizonte, da miragem dos mirantes cor de pérola, da cidade luminosa de sombras esculpidas, da orla do deserto e da Grande Corniche. Com frequência, a entidade ficcional patenteia o seu conhecimento de tudo e de todos e transfere o seu papel de condutor do discurso aos atores participantes nas cenas em palco. Leva-os a revelar os seus segredos mais profundos, a produzir longas digressões, a dialogar uns com os outros sobre arte, literatura, filosofia, religião, magia, política, economia, geografia, história, diplomacia. Um sem-número de temas apresentados sob a forma de memórias, cartas, reflexões, cadernos, diários, romances ou de viva voz em animadas partilha de ideias.

A atuação de Sir David Mountolive está a chegar ao fim, momento ideal para trocar Alexandria pelo Cairo e depois zarpar rumo a outro país, a outros destinos, representar Sua Majestade Britânica junto de outros estados, em busca de outros deveres-razões-amizades diplomáticas. A anteceder esse quadro final do drama-romance, o encenador-fabulador ainda brinda o espetador-leitor com outros episódios laterais que pela riqueza dos recursos seguidos, com a sonoridade das palavras selecionadas, com os sentidos obscuros das frases proferidas, enriquecem o contínuo fluir da ficção e transformam esta parcela da trilogia inicial na mais sarcástica e demolidora de todas elas, desmistificadora dos carateres de uns e sublimadora de outros. A história surpreendente da reconstituição plástica da rapariga sem nariz, da profecia da cigana ao sapo ruivo ou da ironia trágica do assassinato do irmão errado, o funeral com que o pano desce sobre as tábuas da ribalta e as luzes da plateia se acendem.                                                                      

16 de fevereiro de 2021

O entrudo ficou em casa num dia assim

MARIA HELENA VIEIRA DA SILVA
Ballet ou Les Arlequins
(1946)

Pierrot, Colombina & Arlequim

Segundo se julga saber, a palavra Carnaval provém da expressão latina carne, vale!, pelo italiano carnevale, com o sentido de «adeus, carne!», i.e., representava a última terça-feira do período litúrgico que mediava o Dia de Reis e a Quaresma. A abstinência começava na quarta-feira de Cinzas seguinte, substituindo as grandes festividades pagãs de despedida aos excessos da véspera e prolongar-se-ia por mais quarenta dias (quadragesima dies) até ao domingo de Páscoa. Também é conhecido por Entrudo, designação derivada da palavra latina introitus, a simbolizar a preparação para a mais importante celebração do calendário cristão.

Com raízes na antiga tradição ática dos hinos a Dioniso-Baco e do Canto de Aldeia, os folguedos, farras, festins, folias e pândegas mil andaram sempre ligados aos mais diversos disfarces, na tentativa de se fingir ser aquilo que não se é ou se tem pudor de assumir no resto do ano. Nos cortejos de rua multiplicam-se os mascarados, munidos duma caraça, máscara ou mascarilha de cartão ou com a cara profusamente pintada, caraterizada ou maquillée. As crianças apreciam especialmente transformarem-se por um só dia que seja nas mais diversificadas personagens de fantasia a enriquecer o seu imaginário infantil de faz de conta.

No Renascimento italiano, a camada menos instruída da população, desconhecedora da língua tida na época como universal, substituiu o latim da comédia erudita pelo vulgar italiano da Commedia dell'Arte também chamada Commedia all'Improviso e Commedia a Sogetto. As companhias familiares praticavam a itinerância de cidade em cidade. Deslocavam-se de carroça, tal como o fizera Téspis na Ática do séc.  AEC, representavam em pequenos palcos rudimentares instalados nas ruas e praças públicas, interagiam com o público exercendo a arte do improviso, limitando-se a seguir as linhas gerais dum roteiro simplificado. 

A criançada apropriou-se ao longo dos tempos de algumas das figuras-tipo dessa representação dramática. A riqueza cromática do seu vestuário e dos motivos que lhe dão forma estará na origem dessa preferência multissecular. Entre essas caricaturas da vida humana, foi-se destacando o triângulo amoroso constituído por Colombina, enamorada de Arlequim e amada por Pierrot. A vingança deste último sobre o rival está-se a manifestar sem dó nem piedade esta terça-feira gorda de jejum. Roubou-lhe o Carnaval pelo segundo ano consecutivo, depois de este lhe ter roubado a musa da sua paixão. Cá se fazem cá se pagam.      

11 de fevereiro de 2021

Gatinhar, caminhar & arrastar

Édipo e a Esfinge de Tebas

Figura vermelha em vaso grego (c. 480-470 AEC.)
[Museus do Vaticano] 

« τί ἐστιν ὃ μίαν ἔχον φωνὴν τετράπουν καὶ δίπουν καὶ τρίπουν γίνεται »
Ψευδο-Απολλόδωρος - Βιβλιοθήκη (III, 5, 8)
[Qual é o ser que, dotado duma só voz, tem quatro pernas pela manhã, duas ao meio-dia e três à noite? ]
Pseudo-Apolodoro, Biblioteca (III, 5, 8)

Enigma da inflexível cantora da cidadela de Cadmo

Se a memória me não falha, ouvi falar pela primeira vez de Édipo no secundário. Terá sido nas aulas de História ministradas pelo professor Bento Monteiro, um dos meus mestres maiores da minha formação académica pré-universitária. Veio a propósito dos mistérios ligados aos monstros fabulosos com rosto humano e corpo de leão alado, imaginados pelos mitos e contramitos do mundo helénico. Mais do que o incesto trágico, a cegueira autopunitiva, o suicídio materno ou parricídio invito, sensibilizaram-me sobretudo as palavras ocultas no enigma proferido pela Esfinge de Tebas.

Decifra-me ou devoro-te! Vociferava a cantora inflexível, traiçoeira e impiedosa, carcereira da cidadela grega fundada por Cadmo. E o filho abandonado ao nascer por Jocasta e Laio encontrou a solução para a charada mortal, eliminou com uma flechada ou obrigou-a a despenhar-se dum alto penhasco e tornou-se Rei de Tebas. O ser dotado duma só voz era o Homem, que na primeira infância se limita a gatinhar com as mãos e os pés, depois em criança e adulto aprende a caminhar com as duas pernas e finalmente na velhice recorre a um bordão para não me arrastar.

Comecei a andar numa idade que não sei precisar. participei nesse processoatravés da observação das tentativas lentas e contidas, feita de avanços e recuos das minhas filhas e neto. Um entorse ou algo semelhante que me passou de raspão obrigou-me a valer-me dum bastão ortopédico com luz e ponteira. Édipo não escapou ao oráculo de Delfos de matar o pai e casar com a mãe, mas teve coragem de enfrentar a autopunição que a si mesmo se impusera. De facto, o livre-arbítrio só falha no ato de nascer, crescer e envelhecer, para o qual não temos forma conhecida de evitar.

7 de fevereiro de 2021

Moinhos de vento

             MOINHOS  DA  BORDINHEIRA             
[Estremadura: Lisboa - Torres Vedras]
URBAN SKETCHERS PORTUGAL: DESENHAR MOINHOS - PEDRO ALVES
Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento...
PROVÉRBIO CHINÊS

Nos tempos da minha meninice estremenha, passava grande parte das minhas férias grandes, médias e pequenas na Lourinhã, a meia dúzia de passos do mar. Daqui é originária a minha família materna, local de casamento dos meus pais e de naturalidade do meu irmão. Eu acabei por ser gerado e criado nas Caldas da Rainha, nado no Hospital de Santo Isidoro, agora transformado na Biblioteca da Escola Superior de Artes e Design. Premonições longínquas.

Poucas memórias guardo da infância pré-escolar que passei na cidade natal. Os meus pensamentos mais remotos estão reunidos no espaço restrito do casario da vila e dos casais dos lugarejos que a rodeiam. Lembro-me das visitas ao local onde se erguia o castelo há muito demolido, à igreja românica então encerrada, às merendas com primos e mano no pinhal grande, nas cheias do rio local, nas idas em grupo à praia da Areia Branca. Ressonâncias distantes.

Com a avó Cristina, cruzei campos e veredas, galguei montes e colinas, venci  trilhos e atalhos, traçados a perder de vista por miría-des de pés. Navios em terra com o mar à vista. À ida levávamos um saco de trigo em grão. No regresso trazíamos o saco cheio de farinha moída. Pelo meio do caminho ainda apanhávamos serralhas e erva-agulha para os coelhos e caruma e pinhas para o lume. Economia doméstica doutros tempos. Reminiscências longevas.

Evocações que me trouxeram os aromas perdidos da farinha de trigo torrada numa frigideira a encher o prato cavalinho do dejejum matinal. As farinhas Amparo, Predileta e 33 viriam mais tarde com o chamado progresso. O coelho caseiro guisado no tacho com batatas, depois de engordado com a erva rasteira dos caminhos do moinho de vento da minha infância. Tudo preparado à antiga no enorme fogão de lenha da cozinha. Fragrâncias pantagruélicas.

Depois de ter sido achincalhada durante longas décadas como a Terra da Loba, agora é apelidada como a Terra dos Dinossauros. Sempre a crescer em bravura e tamanho. Depois da Estremadura ter sido considerada uma das regiões litorais dos moinhos de vento, passou a ser a região dos moinhos eólicos. Sai o trigo moído e entram as energias renovadas. Abençoada nortada que tão útil é. E depois dizem que tudo o vento levou. Maledicências ancilosadas.

Eólicas - Casalinhos de Alfaiata - André D. B.

4 de fevereiro de 2021

Principado da Beira

«Mappas do Reino de Portugal e suas conquistas» 

Collegidos por Diogo Barbosa Machado (c. 1729-1730)

bei·ra
(origem duvidosa)
nome feminino
Faixa de terra junto a uma extensão de água.


Um príncipe herdeiro com um principado honorífico...

Já disse por aqui ter sido a Estremadura a marca defensiva entre o Norte da Reconquista Cristã e o Sul da Conquista Muçulmana. Nas estremas das duas faixas limítrofes rivais, ficavam o Condado Portu-calense e os Reinos Taifas, limitados transversalmente pelos rios Douro e Tejo. E assim as fronteiras do futuro Reyno de Portugal se foram fazendo. Sempre em linha reta, ao longo da costa atlântica, em direção imparável ao mar do al-Gharb al-'Andalus, no golfo magrebi-no, mesmo ali às portas do Mediterrâneo islâmico.

A progressão vitoriosa das forças lusitanas e a ampliação do território recuperado pelas armas aos invasores sarracenos obrigou a uma sucessiva reorganização do território. A zona tampão estremenha deslocou-se até à linha do Sado e deixou a descoberto toda a margem direita do Mondego, dando origem à Província das Beiras. Os antigos lugares interiores da beira da serra da Estrela passaram também a incluir a beira litoral oceânica desde o Porto à Figueira da Foz, transformando-se assim na maior região do país.

Com o estatuto que a dimensão espacial lhe conferira, Dom João IV converteu essa banda central no Principado da Beira, uma entidade honorífica cujo titular sucederia ao Monarca, e se chamaria Príncipe do Brasil se fosse um filho ou Princesa da Beira se fosse uma filha. Mais tarde, Dom João V reservou esta honraria em exclusivo para o varão mais velho do herdeiro presuntivo do trono, passando este a designar-se por vontade expressa de Dom João VI por Príncipe Real de Portugal, logo após a independência do Brasil.

O título de Príncipe foi introduzido entre nós por via inglesa, quando Dom Duarte quis distinguir o primogénito dos irmãos, os Infantes a quem outorgou a honraria nobiliárquica de Duque, também a criação do Principado e Príncipe da Beira deve ter seguido a mesma fonte de inspiração, à semelhança dos seus primos da Casa de Lencastre, que contavam com o Principado e Príncipe de Gales e para ombrear com os Principados e Príncipes das Astúrias em Castela, de Girona em Aragão e de Viana em Navarra.

O título de Príncipe da Beira é usado pelo primogénito do Duque de Bragança e Príncipe Real, apesar da titularia monárquica ter sido abolida pela República. Adotou como brasão de armas o escudo real, diferenciado por um lambel de prata de três pés, cada um carregado com uma rosa vermelha abotoada a ouro, provavelmente em memória de rainha Dona Filipa de Lencastre. O conjunto é encimado por uma coroa fechada de três arcos de pérolas visíveis e um invisível. Enfim, com papas e bolos se enganam os tolos...
Brasão de armas do Príncipe da Beira
 a ladear a rosa e o emblema dos Lencastre de Coimbra

1 de fevereiro de 2021

Lawrence Durrell, Balthazar: o segundo ato do Quarteto de Alexandria

“I picture you, wise one, poring over Moeurs, the diaries of Justine, Nessim, etc., imagining that the truth is to be found in them. Wrong! Wrong! A diary is the last place to go if you wish to seek the truth about a person. Nobody dares to make the final confession to themselves on paper: or at least, not about love. Do you know whom Justine really loved? You believed it was yourself, did you not? Confess!”
Lawrence Durrell, Balthazar (1958: I, i)

Deixaram de se ouvir as pancadinhas de Moliére para dar início ao segundo ato d'O quarteto de Alexandria. Lawrence Durrell dedica-o a Balthazar (1958), nome do romance e do médico místico entendido nos princípios da Cabala, que empresta o seu ponto de vista sobre os factos ocorridos nesses anos 30 na capital de verão do Egito. Quando o pano de cena sobe e eu reabro o volume que trouxe duma livraria num intervalo de confinamentos forçados, reencontro o jovem narrador amante de Justine numa ilha isolada do mar Egeu, provavelmente grega, na companhia da filha de Melissa e Nessim. Saberemos na reta final do relato chamar-se Darley, sem direito para já a mais pormenores onomásticos. É aí nesse retiro privilegiado, que o exilado voluntário ou convalescente de paixões passadas e amores cruzados recebe a visita inesperada do amigo que o título ao livro e o ajuda a entender muitos dos enigmas em aberto e abre as portas a outros mais. Uma conversa rápida antes de prosseguir viagem para Esmirna, na Turquia, deixa-lhe o manuscrito comentado de Justine, qual palimpsesto coberto de notas quase ilegíveis, perguntas e respostas registadas à mão com cores diferentes ou mesmo datilografadas.

Os retratos pormenorizados de amantes, amigos e conhecidos, com maior ou menor relevo nas cenas representadas, são retocados ao mínimo pormenor com a mestria de quem descreve uma situação como se a estivesse a pintar. Tintas, tons, cores, matizes vernizes dispostos na paleta da escrita. O destino dos quatro elementos fulcrais da ação são apresentados com visões alternativas, onde lhes falta ainda uma definição satisfatória que os tomos seguintes da série talvez lhe . A partida de Justine para a Palestina e de Melissa para Jerusalém fica ainda por entender na sua totalidade. O mesmo se diga do aprendiz de amor, envolvido em relações traçadas de forma poligonal de resultados tão devastadores. A longa analepse registada em forma de memorial não datado e acrónico, entendida como uma muito completa recuperação/reparação de subjetividades narrativas debitadas ou de regresso/restituição de verdades parce-larmente reveladas, ajuda a esguardar com uma atenção redobrada tanto as linhas-mestras de comportamento do quarteto protagonista como da própria Alexandria, a capital da memória por excelência.

A transferência de perspetiva de Darley para os demais testemunhos coligidos por Balthazar chega a dar-nos a sensação de ter atingido um conhecimento perfeito dos factos sem atingir a omnisciência ideal. Mas as falas transcritas pelo relator à distância são tão subjetivas como as atualizadas pelo corretor de serviço. Serão sempre meras in-terpretações duma multidão de vozes de primeira pessoa a imitarem uma terceira de duvidosa fiabilidade, porque proferidas também elas por personagens a todos os títulos convencionais. As verdades do mundo real e da imaginação obedecem todas aos princípios rígidos da relatividade restrita ou alargada. As informações fornecidas em segunda mão pelo confidente e revisor do caderno de notas, que nos é dado a conhecer em formato impresso, transforma-se aos poucos numa história curiosa contada por camadas sucessivas, constituindo uma série de relatos irmãos feitos de painéis rolantes e em tempos diferentes. Essa a técnica de Pursewarden, um dos escritores com algum destaque na ficção, acaba por ser seguida por Lawrence Durrell na tentativa de fugir à ordem sequencial do romance canonizado e temporalmente saturado dos seus dias.

O público imaginário deste drama em quatro atos já se move na plateia. Um novo intervalo avizinha-se. Agora que as festas cristãs coptas de Sitna Mariana já chegaram ao fim e as máscaras com sentido trágico já descobriram os rostos encobertos, agora que nos é revelado uma nova disposição quadrangular dos desencontros amorosos de Justine com Nessim, Persewarden e Clea, agora que se complicou a comédia essencial das relações humanas, é tempo de desentorpecer as pernas por um instante e ganhar fôlego para novas revelações que se adivinham quando as tais pancadinhas de Molière se voltarem a escutar, as luzes se apagarem e o pano de cena de novo subir. O ambiente está preparado na folha de sala que tenho entre mãos para contemplar as imagens refletidas neste espelho multifacetado, feito de histórias contadas e recontadas, deste prisma feito de palavras desenhadas como se de cristal de vidro fino e brilhante se tratasse.