29 de janeiro de 2020

Os olhares da dama com arminho olhados por Leonardo da Vinci

LEONARDO DA VINCI
«Dama con l'ermellino» (c. 1490)
[Muzeum Książąt Czartoryskich w Krakowie]

Em setembro de 2013, La dama con l'ermellino de Leonardo da Vinci estava a deixar-se olhar por quem a olhava no Zamek Królewski na Wawelu de Cracóvia. Olhar oblíquo o dela, a desviar-se dos olhares dos mirones oriundos dos quatro cantos do mundo. Olhei-a também eu no fundo duma sala meio escura daquele que dizem ser o mais belo castelo real da Polónia. Dirigi o meu olhar para aquela que dizem ser Cecilia Gallerani, a amante do duque Ludovico Sforza de Milão, Il Moro. Olhei-a com mais uma boa dezena doutros olhares, impedidos todos eles de fotografar aquele olhar distante registado pela paleta do retratista nell'ultimo decennio del Quattrocento.      

A Dama com arminho regressou ao Muzeum Książąt Czartoryskich de Cracóvia, concluídas que estão as obras de renovação do mais emblemático museu da cidade. Durante uma década afastou-se 1200 metros a pé da sua residência habitual. Um aventura de nada para quem se viu perdida e achada, roubada e recuperada, admira-da e cobiçada. Voltou sempre incólume e disposta a deixar-se olhar sem se dignar olhar-nos. Viajante de muitas viagens previstas e im-previstas, talvez tenha viajado  este ano para o Louvre, onde o quinto centenário da imortalidade de Leonardo da Vinci se celebra à grande e à francesa em Paris. Os olhares de quem olham agradeceriam.

23 de janeiro de 2020

Laurent Binet: encontros, desencontros e reencontros ucrónicos de civilizações

« “ Sire, puisque Dieu vous a conféré cette grâce immense de vous élever par-dessus tous les rois et princes de la chrétienté à une puissance que jusqu'ici n'a possédée que votre prédécesseur Charlemagne, vous êtes sur la voie de la monarchie universelle, vous allez réunir toute la chrétienté sous la même houlette. ” || C’est en ces mots que l’archevêque de Mayence Albert de Brandebourg, oncle de Joachim-Hector, lui-même margrave et électeur de Brandebourg, accueillit Atahualpa dans le temple d'Aix-la-Chapelle, sous un immense lustre en cuivre doré, au pied des statues de saint Paul à la croix et de saint Pierre à la clé (deux idoles populaires dans ces pays), pour lui remettre solennellement les attributs de la dignité impériale. » 
Laurent Binet, Civilizations (2019) pp. 274-275
A ucronia literária instala-se no momento em que os eventos narra-dos fogem à verdade histórica documentada nos anais oficiais e en-tram no universo paralelo da fantasia pura e simples da história alter-nativa, hipotética ou especulativa gizada de vez em vez pela ficção. Conjeturar, à boa maneira de George Steiner n'O transporte para San Cristóbal de A. H. (1979), a fuga de Adolfo Hitler para a floresta Amazónica após a queda de Berlim. Demonstrar, como o fez José Saramago na História do cerco de Lisboa (1989), que a cidade podia ter sido tomada por D. Afonso Henriques aos Mouros sem a ajuda dos Cruzados. Defender que D. Sebastião logrou sobreviver à batalha de Alcácer-Quibir, tal como Catherine Clément se atreveu a avançar nas Dez mil guitarras (2010).

A atração por esta modalidade poética de reescrever o percurso mile-nar dos homens parece ter conquistado a verve criativa de Laurent Binet. Após ter convertido n'A sétima função da linguagem (2015) a morte acidental de Roland Barthes num complot internacional, surge agora com um megaprojeto manipulador da realidade factual dado à luz nas Civilizations (2019). O local sai de cena e entra o global. O processo de contrafação das fontes escritas que os séculos nos legaram começa com uma saga de Freydis Eriksdottir, prossegue com o diário fragmentário de Cristóvão Colombo, amplia-se com as crónicas de Atahualpa e culmina com as aventuras de Cervantes. O caráter apócrifo de cada um destes documentos elaborados pelas diversas instâncias discursivas convocadas é claro e não merece nenhum reparo em especial. Só assim as premissas teóricas do género se concretizam e se pode contrapor o não-tempo imaginado pelo faz-de-conta ao tempo real efetivamente acontecido.

Atribuir a um romance francês um título em inglês causou-me uma certa estranheza que me levou a averiguar a causa do insólito. O mistério acaba, quando descobri que o autor se limitara a aplicar no universo das letras as regras dum jogo de vídeo criado em 1991 por Sid Meier. Nesta Civilization, a estratégia a seguir consiste em incor-porar e expandir uma civilização histórica, a fim de superar as rivais. A ideia tinha sido esboçada em 1989 por Roberto Bolaño O Terceiro Reich, quando os wargames da Segunda Guerra Mundial são recri-ados pelo protagonista com os hexágonos e fichas das batalhas tra-vadas num tabuleiro. Laurent Binet vai mais longe do que o novelista chileno. Concretiza a dimensão ucrónica em toda a trama textualA filha de Erik-o-Vermelho desiste de regressar à Escandinávia e ruma em direção a Cuba, México, Panamá e Peru. O descobridor genovês da América alcança as ilhas do mar das Caraíbas mas é vencido pelos povos locais e impedido de regressar a Castela. O Sapa Inca das Quatro Regiões atravessa o grande mar Oceano, desembarca em Lisboa e conquista o velho continente, que converte na Quinta Região do Império do Sol. O biógrafo do Don Quijote torna-se num peregrino europeu da fortuna com destino final nos territórios aztecas dos adoradores da Serpente Emplumada. A inversão surpreendente de factos notáveis ocorridos nos dois hemisfério terrestres separados pelo Atlântico não impediram a Académie française de lhe atribuir o Grand prix du roman nesse mesmo ano do lançamento da obra.  

A posse dos cavalos, do uso do ferro e dos anticorpos legados pelos visitantes vikings e castelhanos desde o ano mil deram aos índios de além-mar todas as condições de invadir as terras do deus pregado, da bolacha branca e da beberagem vermelha, de derrotar sem apelo nem agravo Carlos V e Francisco I. D. João III e Henrique VIII sa-em mais ou menos incólumes desta mundialização de sentido ame-ríndio. A nova ordem planetária imposta pelo Filho do Sol difere pouco da que encontrou nos Países do Levante. A Inquisição dos vencidos é substituída em poucas colheitas pelas Pirâmides dos vencedores e fica tudo na mesma. O não-tempo da ucronia e o não-espaço da utopia geram todavia uma realidade alternativa decisiva nos universos das letras e das artes, revelados nas folhas que falam de Cervantes e nas pinturas mágicas de El GrecoNesta luta de titãs regida pelas rodelas de metal e bastões de fogo, a força livre da cultura tem o poder de resistir à força bruta das civilizações. Mensagem de esperança difícil de encontrar nas histórias acontecidas mas perfeitamente viável nas histórias imaginadas.

19 de janeiro de 2020

Com a voz te pinto, com os olhos te digo

ALBERTO PÉSSIMO
26 Poemas 26 pinturas
(2015)
A pergunta de Stevens
Tragam-me o rio até à porta.
Deixem-no comigo este verão.
Vem de terras tristes. Terras
Onde dificilmente o girassol
Voltará a florir, o tordo a acasalar.
Apesar de fatigado, sonha
Com a ressurreição das cigarras.
Poucas coisas houve no mundo
Tão formosas como um rio. Agora
Nem já reflete a sombra das garças.
Em vez de morte, que teremos no paraíso?

Eugénio de Andrade, Ofício de Paciência – 1994

NOTA
A celebrar o nascimento do poeta...
(Fundão, 19.01.1923 — Porto, 13.06. 2005)

13 de janeiro de 2020

J. D. Salinger, uma história de loucos do apanhador à espera no centeio

“Anyway, I keep picturing all these little kids playing some game in this big field of rye and all. Thousands of little kids, and nobody’s around – nobody big, I mean – except me. And I’m standing on the edge of some crazy cliff. What I have to do, I have to catch everybody if they start to go over the cliff – I mean if they’re running and they don’t look where they’re going I have to come out from somewhere and catch them. That’s all I do all day. I’d just be the catcher in the rye and all. I know it’s crazy, but that’s the only thing I’d really like to be.” 
Chegou-me às mãos um velho romance norte-americano que toda a gente parece conhecer ou até tenha lido e que agora soube da sua existência. Alguém me falou nele numa conversa de almoço sem se lembrar do nome do autor ou do título completo. retivera as pala-vras espera e centeio que, com algum custo, me permitiu encontrar numa longa pesquisa internética. O assunto central da trama então avançado também me ajudou nessa pesquisa de uma agulha no palheiro. Curiosamente, terá sido o sentido idiomático desta expres-são popular que terá inspirado a opção escolhido na primeira tradu-ção do texto para português publicada entre nós. Foi todavia a edição brasileira de O apanhador no campo de centeio que me ajudou a achar a obra maior de J. D. Salinger, The Catcher in the Rye (1951), agora rebatizada de À espera no centeio.

A história começou por ser publicada parcialmente em fascículos entre 1945 e 1946, para depois ser dada ao prelo no formato integral e definitivo de romance de formação em 1951. É relatada retrospetivamente por Holden Caulfield, após ter sido expulso do Pencey de Argenstown no ano anterior, por ter reprovado a quatro das cinco disciplinas lecionadas esse período naquele reputado colégio da Pensilvânia. A ação deste bildungsroman principia num fim de semana de dezembro e termina na segunda-feira seguinte, nas vésperas do Natal de 1949. O leitmotiv estava encontrado pelo jovem protagonista: passar para o papel os factos ocorridos nesse curto período da sua existência. Completara o seu décimo sexto aniversário à data dos eventos narrados e tinha toda uma vida ainda por viver à sua frente. Fá-lo à boa maneira dum David Copperfield mas com toda uma rebeldia juvenil que Charles Dickens teria dificul-dade em reconhecer.

Internado ao que se depreende num sanatório a despistar um princí-pio de tuberculose, o convalescente é seguido por um psiquiatra, en-quanto recorda por escrito esses dois dias decisivos do seu devir indi-vidual, os tais que marcam a passagem irreversível da adolescência para a idade adulta. Revive, com todos os pormenores que a memória preservou, a visita ao velho professor de História, a conversa com o colega de quarto ao lado e a discussão com o parceiro do seu. Sai do colégio essa noite e apanha o comboio para Nova Iorque, instala-se num hotel, telefona a uma prostituta, entra num Nigth Club, regressa de táxi ao hotel, encontra-se com a prostituta e zaragateia com o chulo. E ao sábado segue-se o domingo. Logo de manhã, telefona a uma amiga, dá uma volta no Central Park, dialoga com duas freiras, visita o museu, encontra-se com a irmã e com um antigo professor, patina na pista de gelo da Radio City, assiste a um filme e a uma peça de teatro, entra no jardim zoológico, observa um carrossel, percorre a Quinta Avenida, compra um disco na Broadway, deixa escoar o dia e passa a noite num banco da sala de espera da Central Station. A confissão de duzentas e tantas de páginas estava prestes a findar.

O autorretrato desse anti-herói, propenso à mentira e farto de tudo e de todos, sempre pronto a criticar o mundo à sua volta, que fala de si com tanto à-vontade como de livros, filmes, teatro, poesia e discos, é ainda aquele rapaz muito estranho que se considera num campo de centeio à espera de apanhar quem comece a correr para um abismo e se arrisque a cair na infância. A ideia surgira-lhe quando ouvira um miúdo cantar uma velha canção popular musicada sobre um poema de Robert Burns, Comin thro' the Rye (1782). A chave do testemunho reside, pois, na confissão que H. Caulfield revela à irmã e J. D. Salinger confia aos leitores. O mistério da tal história louca duma agulha no palheiro à espera do apanhador no campo de centeio dos títulos alternativos estava também ele desvendado.

Traduções: brasileira de 1967 e portuguesas de 1983 e 2011   

6 de janeiro de 2020

O ouro, incenso e mirra dos Reis Magos

GREGÓRIO LOPES
«Adoração dos Reis Magos» (1539-1541)
[Museu Nacional de Arte Antiga - Lisboa]

Menino Jesus - Pai Natal - Reis Magos
No tempo em que o Menino Jesus descia pela chaminé para colocar os presentes no sapatinho ali posto, o Pai Natal ainda não trazia às mãos-cheias as prendas vindas diretamente dos centros comerciais e depositava na Árvore de Natal plantada na sala de estar a pouca distância da televisão.

Nos dias de hoje em que o Menino Jesus foi trocado pelo Pai Natal, as ofertas embrulhadas em papel colorido são abertas a toda a pres-sa logo a seguir à consoada, que o tempo urge e a curiosidade ex-perimentada por crianças e graúdos é incapaz de esperar pela manhã do dia seguinte.

Nesta tradição de inundar o Natal com os substitutos atuais ao ouro, incenso e mirra das eras bíblicas, falta as grandes superfícies pro-longarem estrategicamente a quadra com mais presentes, prendas e ofertas de todo o tamanho e feitio neste Dia de Reis, também ele vés-pera do Natal Ortodoxo...

1 de janeiro de 2020

When books speak of books



Isak Dinesen, Thomas Hardy, Somerset Maugham...
The book I was reading was this book I took out of the library by mistake. They gave me the wrong book, and I didn't notice it till I got back to my room. They gave me Out of Africa, by Isak Dinesen. I thought it was going to stink, but it didn't. It was a very good book. I'm quite illiterate, but I read a lot. My favorite author is my brother D.B., and my next favorite is Ring Lardner. My brother gave me a book by Ring Lardner for my birthday, just before I went to Pencey. It had these very funny, crazy plays in it, and then it had this one story about a traffic cop that falls in love with this very cute girl that's always speeding. Only, he's married, the cop, so be can't marry her or anything. Then this girl gets killed, because she's always speeding. That story just about killed me. What I like best is a book that's at least funny once in a while. I read a lot of classical books, like The Return of the Native and all, and I like them, and I read a lot of war books and mysteries and all, but they don't knock me out too much. What really knocks me out is a book that, when you're all done reading it, you wish the author that wrote it was a terrific friend of yours and you could call him up on the phone whenever you felt like it. That doesn't happen much, though. I wouldn't mind calling this Isak Dinesen up. And Ring Lardner, except that D.B. told me he's dead. You take that book Of Human Bondage, by Somerset Maugham, though. I read it last summer. It's a pretty good book and all, but I wouldn't want to call Somerset Maugham up. I don't know, He just isn't the kind of guy I'd want to call up, that's all. I'd rather call old Thomas Hardy up. I like that Eustacia Vye.
J. D. Salinger, The Catcher in the Rye (1951)