31 de julho de 2019

Mário Zambujal, a dama de espadas ou crónica dos loucos amantes

«As paixões arrebatadas são como o vinho das melhores castas: primeiro alegram, depois embriagam, um dia azedam.»
Mário Zambujal, Dama de Espadas. Crónica dos loucos amantes (2010)
Se me fosse pedido para assinalar uma constante da personalidade do povo português, apontaria de pronto, sem grandes rebuços ou receios de errar, a capacidade que a sabedoria dos séculos lhe tem outorgado de caldear as conjunturas mais cabeludas da vida com uma boa e sonora gargalhada de autocrítica bem-disposta e retempe-radora. Que o digam os escárnios e maldizeres das cantigas trovado-rescas, as farsas e comédias dos autos vicentinos, as ousadias satíri-cas de Bocage, as paródias naturalistas de Camilo, as ironias corro-sivas de Eça, as caricaturas desenhadas do Bordalo e um punhado bem-medido ainda de apodos e motejos sarcásticos, semeados a torto e a direito, um pouco ao deus-dará e ao sabor da maré, pelas mais diversas formas de expressão artística que a modernidade contemporânea tem ensaiado. O anedotário popular tem andado à rédea solta por aí, sem medos nem temores das repressões mais aciduladas, a marcar as balizas culturais com que os sucessivos pe-ríodos de apogeu e decadência têm marcado de modo inconfundível o nosso percurso multissecular pela história.

O humor à portuguesa só terá um rival à sua altura no amor à portuguesa. Por vezes associam-se tacitamente e dão corpo às mais saborosas diatribes literárias compostas em verso e prosa a essa castiça imagem de marca de ser o homo lusitanus um pinga-amor inveterado, sempre à procura de novas paixões arrebatadas que lhe preencham os dias e deem verdadeiro sabor à vida. A fama vem de longe, extravasou fronteiras e tem alimentado a verve dos mais des-tacados vultos da república das letras. Mário Zambujal compara-as aos vinhos das melhores castas nas páginas da Dama de Espadas (2010), que alegram, embriagam e azedam, numa cadência tão fatal como o próprio destino dos homens de nascerem, viverem e morre-rem. A sentença é proferida por uma personagem secundaríssima do romance e funciona um pouco como síntese de toda a fábula. Uma história de amores cruzados relatada pelo protagonista. Um entrecruzar de encontros e reencontros fortuitos que ficção tão bem sabe imitar da realidade. Um conjunto de cenas inesperadas e de comicidade permanente que a arte de contar do autor nos tem vindo a habituar de há três décadas a esta parte.

O argumento desta Crónica dos Loucos Amantes (assim reza o subtítulo) é fácil de traçar mas não enveredarei por essa via. Seria roubar aos potenciais leitores o prazer de o descobrirem por si sós, em primeiríssima instância. Limitar-me-ei a dizer que o herói central não deverá ser entendido como um caso perdido de marialvismo fadista irreversível, uma figura-tipo canónica que a tradição castiça tem registado profusamente ao longo dos tempos, tão ao agrado de uns e desagrado de outros. Filipe namora Rosália, apaixona-se por Eva e vive com Graziela. Simples. Puro equívoco. O baralho de cartas com que o intriga se vai tecendo elege a dama de espadas como agente máxima de todas as forças em jogo e põem-na a comandar os fios do destino que regem as relações humanas. O amor e a morte acabam por andar de mãos dadas, convertendo a quase novela passional em livro policial, com um arzinho canalha complementar de reportagem jornalística falhada. Mas como a viúva de serviço ao enredo assiste ao enterro do marido elegantemente vestida de amarelo, todo a ato fúnebre se transmuda em pantomina burlesca e o melodrama de faca e alguidar em tragicomédia de rir e chorar por mais, como convém nestes tempos conturbados em que vivemos os nossas próprias misérias e imaginamos as alheias.

A boa disposição de Mário Zambujal é contagiante. Conhecemo-la desde que nos brindou com essa hilariante Crónica dos Bons Malan-dros da palma da mão à ponta da unha (1980). Entrou de rompante pela porta grande da literatura e se tem mantido de pedra e cal como só ocorre com os grandes criadores. Mesmo daqueles que o fazem com palavras simples e sem artifícios discursivos na moda. A sobriedade compositiva ao serviço da escrita, bem à margem de subterfúgios estéticos e malabarismos estruturais. O público tem gostado e a crítica aplaudido. O segredo do sucesso editorial do romancista e dos romances está revelado.

NOTA
Texto divertido, ótimo para ser lido em tempo de férias. Participei no lançamento do livro no Pátio de Letras, onde publiquei o texto que agora trago para este espaço.

26 de julho de 2019

Uma história cantada em três tempos...

Marc Chagall, Le paysage bleu, 1949
Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora | E conta logo a tua mágoa toda para mim | Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora, | Que não vai embora | Porque gosta de mim. || Amor, eu quero o teu carinho, | porque eu vivo tão sozinho | Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora, | Se ela vai embora, se ela vai embora | Não sei se a saudade fica ou se ela vai embora, | Se ela vai embora, porque gosta de mim...
Paulo Jorge, Cabecinha no ombro (1958)
1. Cantores da Rádio
Nos meus verdes anos de menino e moço extrovertido, não me impor-tava de cantar em público, à capela e a solo. Fi-lo várias vezes na sala de aula da primeira classe nos dias de canto coral. Numa delas enveredei pela Cabecinha no ombro, o sucesso musical que a rádio passava então de manhã à noite sem parar. A melodia e as palavras escolhidas por Paulo Jorge entravam facilmente no ouvido e convi-davam a ser repetidas por quem as ouvia. O Duo Guarujá deu-lhe voz em 1958 num primeiro registo em disco, a que se seguiram muitas outras até hoje. Parece que desde essa altura ninguém se cansa de entoar no momento adequado o convidativo encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora...       

2. Novelas da Televisão
As modas vão e vêm ao sabor dos dias que se sucedem uns aos outros sem olhar para trás. Voltei a ouvir a velha guarânia da minha infância decorridas quatro décadas. Os folhetins radiofónicos da RR e do RCP foram substituídos pelas telenovelas da Rede Globo, transmitidas pela RTP e SIC. Desta feita, a interpretação esteve a cargo de Almir Sater e Sérgio Reis, que formavam o duo Pirilampo e Saracusa  n'O rei do gado de Benedito Ruy Barbosa, corria então o ano de 1997. O êxito televisivo foi imediato. A organização dos serões sertanejos começaram a repetir-se insistentemente episódio após episódio, findando sempre com a inevitável encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora...

3. Vídeos da Internet
As mágoas e choros, as saudades e carinhos, as juras e amores contados em forma de canto silenciaram-se pouco a pouco, quando os ecos novelescos se calaram e foram substituídos por outros de maior ou menor sucesso mediático. Voltei a entoar a cantiga vinte anos depois, como nos romances mosqueteiros publicados aos domingos nos jornais ou distribuídos em fascículos debaixo da porta. Inspirei-me nos muitos vídeos disponibilizados no universo internético do YouTube. O meu público resume-se agora ao meu neto de dois anos. Agarra-se-me ao pescoço, aconchega-se-me ao colo e trauteia comigo a melodia apaziguadora do encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora...

22 de julho de 2019

Dialéticas de lembrança e esquecimento

FERNANDO PESSOA
Carta Astral de Ricardo Reis
QUESTÕES DE EQUILÍBRIO
«Olham-se ambos com simpatia, vê-se que estão contentes por se terem reen-contrado depois da longa ausência, e é Fernando Pessoa quem primeiro fala, Soube que me foi visitar, eu não estava, mas disseram-me quando cheguei, e Ricardo Reis respondeu assim, Pensei que estivesse, pensei que nunca de lá saísse, Por enquanto saio, ainda tenho uns oito meses para circular à vontade, explicou Fernando Pessoa, Oito meses porquê, perguntou Ricardo Reis, e Fernando Pessoa esclareceu a informação, Contas certas, no geral e em média, são nove meses, tantos quantos os que andámos na barriga das nossas mães, acho que é por uma questão de equilíbrio, antes de nascermos ainda não nos podem ver mas todos os dias pensam em nós, depois de morrermos deixam de poder ver-nos e todos os dias nos vão esquecendo um pouco, salvo casos excecionais nove meses é quanto basta para o total olvido...»
José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis (Lisboa: Caminho, 1984, 80)
Fernando Pessoa ao traçar a biografia do heterónimo que escrevia poemas de índole pagã esqueceu-se de registar a data da sua passa-gem desta para melhor. José Saramago preencheu essa lacuna nas páginas d'O ano da morte de Ricardo Reis. Situou-a em 1936, nas antevésperas da Guerra Civil Espanhola, aquela que prepararia uma outra travada à escala mundial de dimensão nunca vista.

O ser feito de papel só existente na imaginação de quem o lê partiu lentamente com o fluir do tempo. Deixou de ser visto, à medida que a lembrança do seu criador se converteu em esquecimento. Nove meses depois de ter regressado do exílio brasileiro, Ricardo Reis apagou-se da memória coletiva das gentes e entregou-se por inteiro ao total olvido a que Fernando Pessoa já fora votado também.
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Reencontrei-me dias com a comunidade académica que durante três décadas foi minha. Oito meses após a retirada das atividades docentes, os meus colegas honraram-me com um almoço de convívio num espaço privilegiado da cidade. Gostámos de nos voltar a ver. Foi bom verificar que a lembrança superou o esquecimento. Comprovar que as histórias vividas são sempre superiores às imaginadas.

17 de julho de 2019

Luciano e as memórias do burro Lúcio

Παιδί και γάιδαρος (Séc. V EC) 
[Palácio Imperial de Constantinopla - Istambul ]
«Ὰπῄειν ποτὲ ἐς Θετταλίαν. ἦν δέ μοι πατρικόν τι σϑμβόλαιον ἐκεῖ πρὸς ἄνθωπον. ἐπιχώριον. ἵππος δέ με κατῆγε καὶ τὰ σκεύη καὶ θεράπων ήκολούει εῖς. ἐπορενόμην οὖν τὴν προκειμένιν ὀδόν. καὶ πως ἔτνχον καὶ ἄλλοι ἀπιόννες ἐς Ὕπατα πόλιν τῆς Θετταλίας, ἐκεῖθεν ὄντες. καὶ ἁλῶν ἐκοινωνοῦμεν, καὶ οὓτως ἐκείνη τὴν ἁργαλέαν ὀδόν ἀνύσαντες πληςίον ἤδη τῆς ηόλεως ἦμεν, πἀγὼ ἠρόμην τοὺς Θετταλοὺς εἴπερ ἐπίστανται ἄνδρα οἰκοῦνρα ἐς τὰ Ὕπατα, Ἳππαρχον τοὔνμα. γράματτα δὲ αὐτῷ ἐκόμιζον οἴκοθεν, ὤστε οἰκῆσαι παῤ αὐτῷ. oἰ δὲ εἰδέναι τὸν Ἳππαρχον τοῦσαι ἔλεγον καὶ ὅπῃ τῆς πόλεωϛ οἰκεῖ καὶ ὅτι ἀργύριον ἱκανòν ἔχελ καὶ ὅτι μίαν θεράπαιναν νρέφει καὶ τὴν αὑτοῦ γαμετὴν μóνας. ἔστι γὰρ φιλαργνρώτατος δεινῶς. ἐπεὶ δὲ πλησίον τῆς πóπεωϛ ἐγεγóνειμεν, νῆπóϛ τιϛ καὶ ἔνδον oἰκίδιον ἀνεκóν, ἔνθα ὁ Ἳππαρχος ᾤκει.»
Λουκιανὸς Σαμοσατεύς, Λούκιος ή Όνος (Séc. II EC)
A identificação imediata do romance à temática do amor ganhou foros de verdade axiomática que poucos se atrevem a contestar. A vulgari-zação do termo pode ser entendido como um procedimento redutor, dado excluir do seu corpus um conjunto de textos perfeitamente inseridos nesse paradigma, sem recorrer às relações sentimentais ou românticas dos protagonistas. Os criadores helénicos desse modo narrativo incluíram na sua tessitura a presença sistemática de figuras históricas conhecidas, para assim conferir uma verosimilhança indis-cutível ao percurso de vida do jovem casal de namorados que servem de fio condutor à diegese, também associada aos livros de viagens e de aventuras. Talvez tenha sido devido ao caráter compósito da nova modalidade literária, situada entre a epopeia e o drama, que as poéti-cas clássicas se dispensaram de lhe atribuir uma designação especí-fica e as modernas falharam na escolha duma etiqueta única.

A confirmar o ecletismo do género no mundo antigo, encontram-se as memórias proferidas na primeira pessoa por um jovem acaio, convertido temporariamente num burro. O conto, novela ou romance chegou até nós com o título de Metamorfoses, Lúcio ou Asno de Ouro, distribuído por três versões compostas em meados da segunda centúria da era comum em territórios imperiais de Roma. A variante atribuída a Luciano de Samósata terá sido antecedida por uma outra perdida escrita por Lúcio de Patras. Apuleio de Maudara aproveitou-se do sucesso alcançado pela obra grega e adaptou-a à sua maneira para latim. Ampliou a efabulação central e incluiu diversos episódios laterais, entre os quais se destaca o mito de Eros e Psique e uma breve iniciação aos mistérios de Ísis.

O sucesso da história deve-se em grande parte ao tom satírico e erótico como é contada ao público a que se destinava e ao que lhe sucederia nas gerações seguintes. Essa estrutura argumentativa eivada dum humor muito peculiar terá estado mesmo no advento da novela picaresca hispânica, inaugurada em castelhano pelo autor anónimo do Lazarilho de Tormes (1554). Os traços estruturais mais relevantes que as unem situam-se no âmbito da autobiografia fictícia de dois seres desprovidos de fortuna própria, ávidos de obter novas aprendizagens que lhes permitissem singrar no mundo hostil envolvente. Para tal, têm de superar grandes dificuldades impostas pelos múltiplos e diversificados amos que vão tendo, de suportar os maus tratos que lhes são infligidos e de desenvolver uma acabada arte e manha que os libertasse do destino nefasto a que tinham sido condenados. O anti-herói helenístico através da recuperação da natureza humana perdida e o peninsular através dum casamento de conveniência. A dimensão maravilhosa das confidências mais antigas contraria, todavia, a via realista preferida pelas mais recentes.

À distância de dezanove séculos, as desventuras de Lúcio-o-Burro continuam a cativar a atenção de todos aqueles que gostam dos livros e da leitura. O processo de amadurecimento do ator central da quase-fábula revelado de viva voz pelo próprio remete-nos para a passagem paulatina do seu estado de ingenuidade juvenil para o da maturidade adulta. Se a aplicação desastrada dum unguento mágico mal-escolhido lhe dá temporariamente a forma bestial de asno, a ingestão do antídoto acertado devolve-lhe de imediato a original perdida no início da metamorfose indesejada. Recorre ao efeito purificador da rosa, símbolo por excelência das águas primordiais, do renascimento místico e da perfeição acabada. Em última instância, representa a taça da vida, da alma, do coração e do amor. Lição duma exemplaridade modelar legada no final da Antiguidade greco-latina à medievalidade cristã, que um dia se converteria na modernidade europeia que chegou até nós e na qual estamos.
           

12 de julho de 2019

Os nós emblemáticos dos Bragança

Porta dos Nós - Vila Viçosa
     Depois de Vós, Nós    


Quando em 1498 D. Manuel I se deslocou a Toledo com D. Isabel, para assumirem conjuntamente o Principado das Astúrias e a sucessão dos Reis Católicos, o Afortunado nomeou o sobrinho D. Jaime herdeiro do trono. Em sinal de reconhecimento, o jovem duque escolheu para emblema da Sereníssima Casa de Bragança, reabilitada nesse mesmo ano, a figura do «Nó» e o lema do «Depois de Vós», como corpo e alma da divisa. A honraria seria de curta duração, dado que pouco depois nasceria em Saragoça o Príncipe D. Miguel da Paz, jurado pelas respetivas Cortes como futuro monarca das Coroas de Portugal, Castela e Aragão.

A emblemática criada pelo quarto titular da mais importante família nobre do reino seria ampliada pelo sexto, quando transformou a primitiva letra do mote em «Depois de Vós, Nós». Queria o Duque D. João I significar que logo a seguir aos Avis estavam os Bragança na linha de subida ao trono. O desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer Quibir e a crise dinástica que se seguiu, colocava a mulher, a Infanta D. Catarina, como principal candidata à coroa deixada vaga pelo Cardeal-Rei D. Henrique. A força da razão dos Bragança acabou por ser derrotada pela força das armas dos Áustria, representados por Filipe II de Castela e I de Portugal.   

A simbólica dos «Nós» adquiriu nova dimensão, quando o oitavo duque é aclamado rei como D. João IV de Portugal. O górdio frígio que unia a Monarquia Dual é desfeito com o advento da dinastia de Bragança, evento devidamente representado no cordame cortado, alegoricamente esculpido em pedra na Porta dos Nós, que o novo soberano manda erigir como padrão comemorativo nas muralhas de Vila Viçosa. Razão tinha o descendente do Mestre de Avis e do Condestável do Reino, qual outro Alexandre Magno dos tempos modernos, de se considerar liberto das amarras hispânicas e de partir à reconquista dum mundo que lhe pertencia de direito.

Doravante, o título ducal passou a ser atribuído exclusivamente ao herdeiro presuntivo do trono, continuando a dar sentido às palavras contidas na sentença escolhida várias gerações para caraterizar a família. Depois de «Vós» (o Rei), «Nós» (o Príncipe), garante da per-petuidade exigida pela legitimidade dinástica. Foi o que aconteceu com o Rei-Imperador D. Pedro IV de Portugal e I do Brasil, após a abdicação sucessiva da coroa real portuguesa e da imperial brasileira. Reassumiu-se como Duque de Bragança e colocou-se na cadeia sucessória imediata à da filha, a Rainha D. Maria II da Glória, menor de idade, solteira e sem descendência direta.

Ignoro qual o sentido dado pelos atuais pretendentes à dignidade de Rei de Portugal e Duque de Bragança, depois das leis da República terem abolido de vez a Monarquia e toda a titularia nobiliária de privilégios aristocráticos a ela associada. Curiosa será a interpretação que D. Manuel II lhe deu, ao conceber o seu ex-líbris pessoal de bibliófilo consagrado: as Armas Reais e a Esfera Armilar de D. Manuel I associadas às «cordas com nós» e ao «Depois de Vós, Nós». Isto é, após o Venturoso senhor de meio mundo, o Desventuroso senhor de nada e coisa nenhuma. Iguais no nome, diferentes no destino. Divisa-epitáfio dum rei deposto sem sucessor à vista.
Ex-líbris de D. Manuel II

8 de julho de 2019

Jean-Paul Didierlaurent, o leitor do comboio expresso regional das 6h27

« Pour tous les voyageurs présents dans la rame, il était le liseur, ce type étrange qui, tous les jours de la semaine, parcourait à haute et intelligi-ble voix les quelques pages tirées de sa serviette. Il s'agissait de frag-ments de livres sans aucun rapport les uns avec les autres. Un extrait de recette de cuisine pouvait côtoyer la page 48 du dernier Goncourt, un paragraphe de roman policier succéder à une page de livre d'histoire. Peu importait le fond pour Guylain. Seul l'acte de lire revêtait de l'impor-tance à ses yeux. Il débitait les textes avec une même application achar-née. Et à chaque fois, la magie opérait. Les mots en quittant ses lèvres emportaient avec eux un peu de cet écoeurement qui l'étouffait à l'approche de l'usine. »
Jean-Paul Didierlaurent, Le liseur du 6h27 (2014)
Uma criança assiste estupefacta ao cerimonial de abate, esfolamento e estripamento dum coelho; um grupo de lenhadores entrega-se à sua labuta imemorial, enquanto um deles se abraça ao tronco dum vidoeiro branco; uma cadela observa fascinada uma mosca a entrar e sair da boca aberta dum homem cadáver, rodeado do sangue que lhe escorrera por um buraco de bala; uma mulher confessa com toda a calma os pecados a um velho cura, que a ouve atentamente sem dar mostras dos protestos lançados pelo estômago esfomeado; um automobilista dá boleia a uma jovem insinuante e eficaz na arte duma sedução bem sucedida. Estes os argumentos dos cinco fragmentos lidos no RER das 6h27 pelo protagonista do primeiro romance de Jean-Paul Didierlaurent, o Leitor do comboio (2014).

Guylain Vignolles, de 36 anos de idade cumpridos por volta de 2012, trabalha a contragosto ou por inércia numa empresa encarregada de reduzir a pasta de papel reutilizável as edições de obras impressas não absorvidas pelo mercado. A eliminação desses volumes indese-jáveis é perpetrado numa Zerstor 500, a Coisa, uma monstruosidade de onze toneladas especializada no massacre sistemático e impie-doso de livros. É no interior dessa unidade de transformação que aquele a quem todos chamam por brincadeira ou pirraça Vilain Guignol lá vai conseguindo resgatar uma ou outra folha perdida do aniquilamento total, para depois lhes devolver por breves instantes a vida numa carruagem do comboio expresso parisiense. Todos os dias, à mesma hora, nos escassos vinte minutos de percurso até à STERN, a Sociedade de Tratamento e de Reciclagem Natural, para garantir os 1800€ de salário mensal.

O fluxo narrativo sofre uma inflexão radical, quando o salvador de pedaços de escrita impressa acha uma chave de memória USB no assento dobrável do metro suburbano. No seu interior, descobre uma pasta informática com setenta e dois ficheiros de texto numerados. Tratava-se duma espécie de diário pessoal digitalizado por uma misteriosa Julie, a trabalhar como dame-pipi num centro comercial não identificado. As particularidades das histórias ali reveladas desencadeiam no leitor indiscreto um coup de foudre virtual a exigir uma efetivação real urgente. Tece um bem urdido plano de localiza-ção da grande superfície descrita pela encarregada da limpeza dos sanitários. É nesse cenário insólito que conta cumprir o principal móbil da pesquisa, o encontro final com a jovem fabuladora desco-nhecida. Missão cumprida com sucesso e devidamente relatada pela ficção. Os pormenores que fiquem para quem os quiser conhecer sem resumos importunos de permeio.

Lido o livro que fala de livros, apercebemo-nos que todos eles estão ligados entre si como vasos comunicantes, por onde circulam as palavras que os compõem e as ideias que os alimentam. Os palcos onde o drama central se representa remetem-nos para outros espa-ços idênticos, onde a aversão à cultura literária conduz à sua supres-são completa. Assim o previram Aldous Huxley no Admirável mundo novo (1932), George Orwell no 1984 (1949) e Ray Bradbury no Fahrenheit 451 (1953), para só referir os mais conhecidos títulos de antecipação referidos a nível global. A mensagem transmitida por Jean-Paul Didierlaurent é de certo modo mitigada na sua versão dum mundo totalitário avesso à imaginação criativa, por se aplicar exclusivamente a exemplares excedentários de valor comercial nulo. Faltaria apurar até que ponto essa realidade se deve à qualidade intrínseca das obras sacrificadas ou ao desinteresse generalizado dos leitores. O ostracismo a que as humanidades têm ultimamente vindo a ser votadas talvez nos ajude a entender melhor esta aversão atual à leitura e aos livros, toda ela moldada na medida exata duma distopia consentida, defendida e aplaudida.