30 de setembro de 2020

Juliette Gréco, je suis comme je suis...

« Je ne veux pas qu’on me touche quand je serais morte » 
Juliette Greco, Jujube (1982)

   Une histoire racontée en trois mouvements   

1èr GRAVE
Belphégor, le fantôme du Louvre
Por volta dos meus 12/13 anos de idade, passou no único canal da RTP então existente uma minissérie francesa em quatro episódios de 70 minutos cada, produzida a preto e branco pela ORTF-1. Criada, escrita e dirigida por Claude Barma em 1965, segundo uma adaptação de Jacques Armand do romance policial de Arthur Bernède de 1927, dava pelo título algo exótico de Belphégor. Pouco ou nada me lembro do enredo intricado de Le fantôme du Louvre, como foi rebatizado pela Télévision de Radio-Canada. Só retive na memória o cromatismo sombrio dos cenários das filmagens e o acinzentado predominante do guarda-fatos escolhido para vestir devidamente os intervenientes que dão corpo ao drama. De toda essa vasta panóplia de heróis/heroínas ou de contra-heróis/contra-heroínas do bas-fond parisiense, só fixei o nome duma intérprete, o de Juliette Gréco, intimamente associada a Belfegor, o tal fantasma que andava a assombrar o mais carismático museu da Cidade Luz.
         
2ème ANDANTE
Jujube devient Juliette Gréco
Quando eu entrei na casa dos 30 anos de idade, voltei a encontrar-me com o nome de Juliette Gréco, agora gravado a negrito na capa dum livro a encimar uma Jujube inscrita a vermelho, a autobiografia redigida numa terceira pessoa e publicada nas Éditions Stock em 1982. Recorreu ao seu petit nom d'enfance, que a acompanha ao longo das cerca de três centenas de páginas para se recontar à perfeição de fio a pavio e fez-se fotografar com olhar fixo no infinito com a torre romântica da igreja abacial de Sainte-Croix et Saint-Vincent em pano de fundo. O percurso fulgurante de la muse de l'existentialisme, la fleur vénéneuse de Saint-Germain-des-Prés, la liane noir de nos nuits blanches, é esmiuçado ao sabor da pena os êxitos e fracassos da sua vida de artista, das suas tournées através do mundo, das suas aparições no cinema, no teatro, na rádio, na televisão, na música, na sua existência boémia da rive gauche do seu protagonismo no Flore e Deux Magots, no Rose Rouge e no Tabou, no Bobino e no Montana. Cafés, caves, clubes, n'importe où.

3ème➖ VIVACE
L'icône de la chanson française
Já não me recordo que idade teria quando descobri pela primeira vez a voz grave de Juliette Gréco. Sou incapaz de dizer qual terá sido a primeira canção que a ouvi interpretar. Tenho dificuldade de indicar a minha preferida entre todas aquelas a que deu vida. Ma belle-mère française disait qu’elle était très vulgaire. Moi, par contre, je dis qu’elle est sublime. Le dernier icône de la chanson française n’entendrait ni l’un ni l’autre et dirait tout simplement, avec les mots de Jacques Prévert et la musique de Joseph Kosma : « Je suis comme je suis, je plais à qui je plais, je suis faite comme ça, qu'est-ce que ça peut vous faire ? »Gréco surnommée Jujube est partie vers d’autres endroits à la rencontre des poètes et des musiciens qu’elle a chanté et lui ont donné rendez-vous au Parnasse des immor-telsElle a quitté ce monde il y a une semaine à peine, mais elle y restera dans nos cœurs à plus jamais. En fait, comme elle écrivait au bout de son bouquin : « Un piano joue quelque part. Encore. »

24 de setembro de 2020

O fascínio dos livros a cheirar a tinta


O SENTIDO DOS SENTIDOS: OLFATO

Gosto dos livros impressos a cheirar a tinta.  o disse muitas vezes e não me canso de repetir uma e outra vez. Gosto de cheirar os livros novos acabados de sair do prelo, expostos nos escaparates e bancadas das livrarias, cada vez mais em vias de extinção do nosso espaço urbano. De os folhear um a um antes de me resolver a pegar num deles e levá-lo para casa, para ir ter com os livros velhos que já lá tenho à sua espera. A minha aversão pelos livros digitais advém, precisamente, do facto de estar impedido de os cheirar, de tocar diretamente o texto com os dedos, de ouvir o lápis a sublinhar as palavras escritas com carateres perfumados, de acariciar com o olhar as particularidades do papel, sem poder saborear por inteiro o prazer dos sentidos em sinestesias apagadas. 

O gosto pelos livros a cheirar a tinta vem-me da infância, quando uma carrinha itinerante da Gulbenkian me oferecia leitura renovada em casa em cada visita que fazia. A biblioteca sobre rodas da meninice deu depois lugar às bibliotecas fixas da maturidade. Fi-lo sobretudo durante o período de formação académica. Os livros novos a cheirar a tinta fresca foram substituídos pelos livros velhos a cheirar à patine vetusta dos anos. As alergias que os odores sulfurosos das águas termais não curaram obrigaram-me ao uso duma máscara clínica protetora. Mudam-se os cheiros impressos, permanece o prazer da leitura. Com ou sem máscara. O que não se cheira com o olfato, cheira-se com os demais sentidos de serviço, imparáveis nessa dinâmica de criar sinestesias renovadas.

21 de setembro de 2020

As proposições épicas da «Eneida» de Virgílio e d'«Os Lusíadas» de Camões

Jean-Baptiste Wicar
Virgile lisant l'Énéide à Auguste, Octavie et Livie (1790-1793)
[Art Institute of Chicago]


PROPOSIÇÃO 1


Canto as armas e o guerreiro, o primeiro que de terras de Troia,
em fuga aos fados, alcançou Itália e as praias
de Lavínia, sem tréguas baldeado por terra e por mar,
por obra de deuses, em razão da fúria sempre viva da terrível Juno;
e que também muitas tormentas em guerras padeceu, até fundar a cidade
e introduzir os deuses no Lácio, de onde vêm a nação latina
e nossos pais albanos e as altas muralhas da grande Roma.

[Tradução: Carlos Ascenso André]


PROPOSIÇÃO 2


As armas e os barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram.



António Ramalho
Camões lendo Os Lusíadas a D. Sebastião (1893)

NOTA
No dia em que se cumprem 2038 anos sobre a ascensão de Virgílio ao Parnaso (15.10.70AEC-21.09.19AEC)

14 de setembro de 2020

Os olhares de D. João III e D. Catarina de Áustria olhados por Cristóvão Lopes

CRISTÓVÃO LOPES

D. João III com São João & D. Catarina de Áustria com Santa Catarina
Cópia atribuída a Cristóvão Lopes (c. 1552-1571), original de Antonio Moro

[Convento da Madre de Deus - Lisboa]

Dom João III de Avis-Beja e Dona Catarina de Áustria-Habsburgo, Reis de Portugal e Algarves, estão, há cerca de quatro centúrias e meia, voltados para o altar-mor da Igreja do Convento da Madre de Deus, a olhar desde o coro-alto para a talha dourada barroca que o reveste e a adorar a Sagrada Forma da Eucaristia, na companhia de São João Batista e Santa Catarina. Os dois esposos, cunhados e primos foram retratados em corpo inteiro por Cristóvão Lopes, ajoelhados e de mãos postas a orar, virados um para o outro, mas sem se olharem de frente. O mesmo se diga dos olhares diagonais dos padroeiros pessoais, dos anjos da guarda e do cordeiro divino. Nada de distrações nas devoções religiosas de corte.

Os netos dos Reis Católicos, Isabel e Fernando de Castela e Aragão, podem também ser olhados na versão simplificada do Museu de Arte Antiga, depois de terem sido levados a contragosto do Convento de Nossa Senhora da Esperança para as Janelas Verdes. Continuam em Lisboa, lado a lado, em posição simétrica, mas sem se olharem olhos nos olhos ou para os dois bem-aventurados pela Cúria de Roma que os protegem. Os visitantes olham-nos nos rostos régios fixados no duplo retrato individual contemplativo de aparato palatino, sem lhes encontram, por mais que o façam, o olhar majestático e distante de cada um deles fixado a óleo sobre tábua por Cristóvão Lopes ou por algum outro pintor anónimo da sua oficina.

Ao que se julga saber, este conjunto de Tableaux Vivants dos avós de Dom Sebastião, tal como os bustos do Museu de São Roque, terão sido inspirados em originais de António Moro, datados de 1552, atualmente em dois museus de Madrid, o da irmã de Carlos V no Prado e o do irmão de Isabel de Portugal no Lázaro Galdiano. Aí, ganharam coragem e atreveram-se a olhar de frente quem os olha, que o destino os afastou para espaços diferentes. O duplo olhar piedoso dos painéis portugueses, fruto de quem sobreviveu a nove filhos e à perda de algumas praças do Algarve de além-mar em África, não está espelhado no duplo olhar altivo fixado pelo mestre flamengo, apesar de nessa data os ter retratado de luto carregado.

OFICINA DE CRISTÓVÃO LOPES

D. João III com São João & D. Catarina com Santa Catarina
Cópia anónima, original de Antonio Moro

[Museu Nacional de Arte Antiga - Lisboa]

9 de setembro de 2020

Olga Tokarczuk: histórias filosóficas e mitológicas de Outrora e outros tempos

"Czas Prawieku Prawiek jest miejscem, które leży w środku wszechświata. Gdyby przejść szybkim krokiem Prawiek z północy na południe, zabrałoby to godzinę. I tak samo ze wschodu na zachód. A jeśliby kto chciał obejść Prawiek naokoło, wolnym krokiem, przyglądając się wszystkiemu dokładnie i z namysłem - zajmie mu to cały dzień. Od rana do wieczora."
O tempo do Primitivo Primordial (Prawieku Prawiek ⋍ Outrora) é um lugar que se encontra no centro do universo. Assim começa em tradução literal quase literária Olga Tokarczuk o Outrora e outros tempos (1992), imagem clássica para indicar que a Terra é redonda e que em qualquer ponto em que nos posicionarmos, estaremos em simultâneo no meio e na periferia de tudo o que existe ao alcance da nossa vista, incluindo a vastidão cósmica que nos envolve, foco de convergência equidistante das extremidades do princípio e do fim. Prawiek|Outrora é uma aldeia fictícia, perdida num ambiente rural verosímil recente, mas eivado até à medula de pequenas/grandes fantasias gizadas no imaginário coletivo ancestral do povo polaco.

Apesar de se tratar dum lugarejo de faz-de-conta romanesca, seria errado pensar achar-se totalmente perdido no meio do nada dum qualquer mapa. As coordenadas geográficas são dadas com todo o pormenor logo no capítulo inicial, «O tempo de Outrora». A estrada de Tasków a Kielce limita o palco a norte e a vila de Jeszkotle a sul, colocando de imediato no fulcro de toda a fábula no sudoeste da Polónia a poucos quilómetros da raia alemã. A oeste são referidos uns prados ribeirinhos, algumas florestas e um palácios; enquanto a leste corre o rio Branco que depois se une ao rio Preto para formar o rio Rio. Tudo minúcias de pouca monta que para o caso tanto faz. Mais pertinente será, porém, estar cada um dos quatro pontos cardeais defendido pelo seu arcanjo para proteger os habitantes e visitantes do risco de infringirem as regras de conduta estabelecidas. Rafael o perigo da ansiedade, Gabriel o desejo da posse, Miguel a tentação do orgulho e Uriel a exibição de conhecimentos e saberes.

Desde os primeiros parágrafos, são lançadas pistas simbólicas, onde se adivinha  o rumo que o tecido verbal lhe dará daí para a frente. Podemos arrolá-los na mitologia cristã e folclórica, tal como a crença em anjos e demónios, almas penadas e lobisomens; na filosofia baseada nas doutrinas transcendentes e imanentes de explicar a essência de Deus; na História recente da Polónia, ao longo de três gerações que sofreram duas Guerras Mundiais, a Ocupação Nazi, a Invasão Russa e muitas crises de permeio. Um texto do Estranho, para usar um termo consagrado por Todorov*, o que, por vezes, nos conduz a outros modos de hesitação do Fantástico e a perguntar-nos até que ponto não estaremos no domínio do Maravilhoso ou muito próximo de o atingir. A presença ainda que discreta do Realismo Mágico latino-americano, a sugerir que a morte e a vida podem ser encaradas como um sonho, e que só no pós-vida é que os mortos recuperam a lucidez e descobrem os mistérios da vida.

A reforçar esta estrutura do sumir/surgir a existência de pessoas, animais, objetos, ideias, memórias que habitam os outros tempos de Outrora, encontram-se os cruzamentos de fronteiras que definem o dia/noite a guerra/paz, o caos/ordem, o tudo/nada, o real/imaginário. Dicotomias que nos remetem para uma teoria mais obscura dos números, aquela que Pitágoras considerava a essência de todas as coisas, o começo de tudo, o primitivo primordial de Prawiek. Os 84 tempos do romance se podem decompor em 2²x3x7, tal como as 128 saídas do Ignis Fatuus, i.e., Jogo instrutivo para um jogador se podem reduzir a 2. Quer dizer, tudo números primos ou cabalísticos usados à exaustão ao longo de todo o relato para nos dar a visão dum microcosmos que cumpriu a sua missão de ser e de estar. São os 2 rios de cores antagónicas que se fundem e passam a 3, são a sucessão dos ciclos de 7 dias da criação desse falso universo como se fosse genuíno. É verdade que o grande labirinto circular do jogo aludido afirma que esse ato etiológico assenta em 8 mundos, mas em que um deles corresponde a um não-tempo/não-espaço onde Deus ainda não existe. Esta ampliação de uma etapa suplementar documenta também o esquema sistémico explicitado de ser o 2 o período de descanso do 4 e que a tétrada tem a tendência de se tornar dualidade, exemplificado na série de 31 coisas quádruplas arroladas, tantas quantos os dias dos 7 meses maiores do ano.

Muito mais haveria a dizer sobre a imaginação narrativa de Olga Tokarczuk, que lhe valeu em 2018 o mais ambicionado prémio literário a nível global, instituído por Alfred Nobel em 1895 e atribuído pela Academia Sueca desde 1901. A 15.ª mulher a receber a medalha de ouro num total de 116 laureados. Acedi a este texto pela cortesia da MB & do LC, amigos e colegas de sempre que mo ofereceram numa visita por altura do lançamento da tradução portuguesa entre nós. Uma forma singular de celebrar o cruzamento de fronteiras como forma de vida. 

NOTA
(*) Tzvetan Todorov, Introduction à la littérature fantastique, Paris: Le Seuil, 1970.

6 de setembro de 2020

Neurónios em contracorrente

Cérebro: mais vasto que o Céu

Cérebro: mais vasto que o Céu

[Fundação Calouste Gulbenkian - Lisboa (2019)]

A.NU.Á.RI.O

Quando as palavras começam a escapar-nos da fluência verbal falada, urge recuperá-las uma a uma por meio da cadeia gráfica das sonoridades escritas.

Quando a condição física começa a falhar-nos por complicações de saúde inesperadas, urge contrariá-las através do recurso firme à dimensão psíquica.

Quando as memórias teimam em desvanecer-se por diminuição da massa pensante, urge reanimá-la pondo os neurónios adormecidos a trabalhar a todo o gás.

Quando os planos de vida faltam e os tempos livres sobejam, urge contar umas historietas em contracorrente para colmatar os hiatos que os separam.

Quando um blogue cumpre os seis anos de idade, urge celebrar a data com um feliz aniversário e votos que se mantenha de pé por muitos e muitos mais... 

1 de setembro de 2020

Forêt de Brocéliande, le royaume des fées et des enchantements

    LA FORÊT DE BROCÉLIANDE    

   La légende du roi Arthur - L'esprit des lieux  

[Paris - Bibliothèque nacionale de France - Expositions virtuelles]

Breihz: Bro Armor hag Bro Argoat

Já perdi a noção das vezes que me deixei envolver pelos mistérios arturianos da floresta de Paimpont (Ille-et-Vilaine e Morbihan) e me entranhei por inteiro nas profundezas labirínticas da Brocéliande, na Pequena Bretanha Armoricana. Breihz para os nativos bretonantes, o Bro Armor hag Bro Argoat, que os francófonos convertem em Le pays de la mèr et des forêts, ou simplesmente o BZH duns e doutros.

A antiga Bréchéliant não chega hoje em dia até ao mar como nos tempos lendários e míticos do Roue Arzhur brezhon. Aquilo que as sucessivas gerações pouparam ao longo dum milénio e meio de devir histórico é hoje banhado exclusivamente pelas nascentes de água doce que brotam das fontes prodigiosas de Jouvence e de Barenton e correm pelo Val d'Aff até aos lagos encantados da floresta.

Quantos piqueniques fiz junto do Miroir aux Fées à entrada do Val sans Retour. Quantos trilhos sinuosos percorri em demanda do Palais de cristal de Viviane e do Tombeau de Merlin. Quantas aventuras vivi nos locais palmilhados pelos heróis e heroínas, deuses e gigantes, génios e monstros dos Romans de la Table Ronde du Roi Arthur. Sempre na boa companhia des copains-copines de toujours.

Há um bom par de anos que não passo por um dos locais mais embebidos de magia do país à beira-mar plantado e das florestas a perder de vista do interior bretão. Espero voltar em breve, assim que estes ares covídicos partam de vez para nunca mais volver. En fait, les fougères, les ajoncs, les genêts et les bruyères me manquent éperdument pour accomplir la metaphysique de l'amour courtois.