31 de agosto de 2023

Somerset Maugham, o frágil significado da condição humana no fio da navalha

 

“I have never begun a novel with more misgiving. If I call it a novel it is only because I don't know what else to call it. I have little story to tell and I end nei-ther with a death nor a marriage. Death ends all things and so is the comprehen-sive conclusion of a story, but marriage finishes it very properly too and the so-phisticated are illadvised to sneer at what is by convention termed a happy en-ding. It is a sound instinct of the common people which persuades them that with this all that needs to be said is said. When male and female, after whatever vicissitudes you like, are at last brought together they have fulfilled their biolo-gical function and interest passes to the generation that is to come. But I leave my reader in the air. This book consists of my recollections of a man with whom I was thrown into close contact only at long intervals, and I have little knowled-ge of what happened to him in between. I suppose that by the exercise of inven-tion I could fill the gaps plausibly enough and so make my narrative more cohe-rent; but I have no wish to do that. I only want to set down what I know of my own knowledge.

Nos anos de aprendizagens académicas básicas recebidas na grande cidade, tinha o hábito de ampliar a minha biblioteca pessoal com um ou outro exemplar trazido da feira do livro, a imensa festa anual dos amantes da república das letras que então se realizava na avenida da Liberdade. A bolsa não dispunha de muitos fundos e a escolha foi sempre pacífica e fácil de satisfazer. Já levava os meus autores-títulos engatilhados e Somerset Maugham era um deles. Nesse distante mês de maio de 72, chegara o momento d'O fio da navalha (1944) entrar em cena. Mantém-se comigo desde então e acaba de ser revisitado mais uma vez, sempre com novas leituras a revelar.

A ação central decorre no período histórico compreendido entre as duas guerras mundiais nunca referidas com tal. A bem-dizer, a mais recente é aludida de raspão e a escassíssimos parágrafos do fim, muito embora a sintamos espreitar o horizonte com mais insistência após os efeitos devastadores provocados pela crise da bolsa de Nova York de 1929, sobretudo em algumas das personagens com maior visibilidade na tessitura narrativa sem ocuparem todavia o estatuto de protagonistas. Estes lograram escapar à grande depressão e avivar a atenção do narrador, também participante no relato como cronista ocasional e biógrafo parcelar de todos eles, com especial incidência no ex-aviador norte-americano Laurence Darrell, mergulhado numa vadiagem militante pelo mundo fora em busca dum significado para a existência humana. Este mesmo Larry, como era conhecido e tratado pelos amigos, partilha esse modo de vida errante com o snobismo ferino de Elliot Templeton e o cinismo mordaz de Somerset Maugham, formando com eles uma lídima estrutura triangular particularmente enriquecedora da urdidura efabulativa.

Durante muito tempo tenho resistido à tentação de compor uma top lista com os livros da minha vida. E já estou a considerar um número plural de textos, porque a eleição dum único deles seria uma tarefa perfeitamente impossível de concretizar para não dizer absurda. Ancorei-me sempre ao argumento do meu prazer de leitura continuar muito vivo no meu dia a dia e de acalentar a ideia de mais tarde ou mais cedo encontrar essa tal obra que supere todas aquelas que a haviam precedido. Prosseguindo o périplo pela estante guardiã das minhas viagens pelo universo dos livros efetuadas no início da década de 70, apercebi-me que alguns deles marcaram de facto a minha passagem da fase adolescente para a adulta de modo decisivo. As respostas dadas na Servidão humana, no Exame de consciência e n'O fio da navalha às questões que então me fazia seriam, só por si, suficientes para colocar estes títulos como os três mais significativos dos meus teenage years. Nunca mais, a partir de então, as noções de finito/infinito, de deus-eternidade-absoluto, ou mesmo de bem/mal me voltaram a incomodar do mesmo modo. Ultrapassei-os e com caráter definitivo até hoje. Razão mais do que suficiente para inaugurar essa listagem há tanto tempo adiada.

Lidos e relidos os livros muito depositados numa estante especial da biblioteca de casa, detenho-me na história de vida do andarilho retratado lacunarmente neste romance de seres reais com nomes de fantasia. Foi na Índia da Hatha Yoga que terá encontrado entre os swamis de Ramakrishna a chave que lhe abriria as portas para vislumbrar as três manifestações da Realidade Final, regidas por Brama, o Criador, Vixnu, o Conservador, e Xiva o Destruidor. É também nesse ambiente místico que o narrador-autor, ficionista e dramaturgo britânico se inspirou para dar um título adequado ao relato. Fá-lo a partir dum princípio registado no Katha-Upanisado livro sagrado do hinduísmo, que alerta para o quão difícil é andar sobre o aguçado fio duma navalha, o árduo caminho para atingir a Salvação. As caminhadas da figura maior da crónica chegou a bom porto. O mesmo se diga do cronista que lhe deu corpo e preservou voragem dos dias, meses e anos através da palavra escrita. Até o exemplar impresso que o trouxe até mim resistiu a esse desgaste. A efemeridade do suporte material a ser superada pela perenidade da obra gravada na memória das gentes.

25 de agosto de 2023

Olhares dos Avis-Áustria, olhados por Sánchez Coello e Cristóvão de Morais

Don Carlos (1564) & Dom Sebastião (1565)

Alonso Sánchez Coello e Cristóvão de Morais

Os dois primos de Avis-Áustria parece que se olham sem nunca se terem olhado olhos nos olhos. Nem na vida real nem na versão pintada. O olhar do Príncipe Don Carlos das Astúrias foi captado pelo olhar de Alonso Sánchez Coelho em Madrid. O olhar d'el-Rei Dom Sebastião de Portugal foi captado por Cristóvão de Morais em Lisboa. Os retratos dos netos de Carlos V e de Dom João III estão dispostos para quem os quer olhar a uma distância ainda maior. O filho de Filipe II e de Maria Manuel na capital austríaca e o filho de Juana de Áustria e de Dom João Manuel na capital espanhola.

Colocados lado a lado na disposição virtual de circunstância, num face a face evitado pelo olhar dos dois pintores régios quinhentistas das coroas ibéricas, os dois retratos são o produto das alianças matrimoniais multigeracionais estabelecidas entre primos e primas direitos e por partida dupla. O resultado está à vista de quem quiser olhar com olhar de quem olha estes dois bisnetos de Dom Manuel I de Portugal e Algarves e de Maria de Aragão e Castela. Um olhar atento não deixa escapar alguns dos traços fisionómicos que os retratistas não deixaram de fixar com o seu olhar de artistas.

Don Carlos (1545-1568) morreu encarcerado nos seus aposentos pessoais do Real Alcázar de Madrid, por insanidade mental, traição e tentativa de parricídio. Tinha então 23 anos e não chegou a lançar um olhar soberano sobre os domínios do pai, os tais onde o sol nunca se punha. Dom Sebastião (1554-1578), altivo, mimado e louco como o primo, morreu aos 24 anos no campo de batalha de Alcácer-Quibir, longe de poder olhar para o seu almejado império de além-mar em África. Triste fim para os herdeiros de príncipes, reis e imperadores das estirpes dos Habsburgo hispânicos e dos Avis lusitanos.

O Príncipe das Astúrias e o Rei de Portugal mais do que se olharem como primos-irmãos, bem podiam olhar-se como meios-irmãos, que detinham cerca de 50% de genes familiares em comum, fruto de fusões consanguíneas a perder de vista na árvore genealógica a que o seu olhar pudesse enxergar. Partiram os dois sem deixar descendência, assim como sucederia aos seus sobrinhos-netos, bisnetos, trinetos, tetranetos ou primos afastados de Carlos II de Espanha e Afonso VI de Portugal. Olhar distante duma parentalidade ancestral, há muito tempo malquista, malvista ou mal-olhada.

21 de agosto de 2023

As duas rodas da volta

Henri de Toulouse-Lautrec

The Simpson Chain - La Chaîne Simpson - 1896

Terminou pouco a 84.ª edição da Volta a Portugal em Bicicleta. Nos 1600,5kms da prova, disputados em 11 dias e 10 etapas entre Viseu e Viana do Castelo, nenhum deles aflorou o perímetro urbano de Faro. Aliás, não me lembro de alguma vez ter passado por esta capital de província, região, distrito e concelho desde que aqui vivo quase 50 anos. Distração minha, por certo. Mesmo a Volta ao Algarve passou sempre despercebida ao meu olhar pouco atento a essa competição ciclística com direito a alguma atenção dos canais televisivos de sinal aberto. O tempo de férias, de praia e de calor desculparão, em parte ou na totalidade, essa desatenção ciclopédica.

As poucas vezes que vi passar a Volta andaria ainda na Primária, nos derradeiros anos da década de 50 ou nos primeiros da de 60. Não sei precisar. Fazia-o empoleirado no muro alto da antiga Escola Agrícola que dava para a EN1. Os ciclistas vinham algures dum qualquer ponto de partida e dirigiam-se não sei para onde. Seria no sentido Lisboa-Porto sem chegar a tocar as duas cidades numa única tirada. Corrida efetuada por desportistas cujos nomes a memória não guardou registo. Nem dos vencedores, nem dos percursos das etapas, nem das equipas, nem dos países envolvidos, nem dos camisolas-amarelas nem dos varridos pelos carros-vassoura.

Na minha meninice estremenha, os dias da prova animavam o país. Hoje mal se fazem notar. Outros valores mais altos se foram levantando. A pioneira RTP passou a correr a contrarrelógio com as privadas que entretanto chegaram e as transmitidas por TV-Cabo. As vitórias diárias aos sprints televisivos obedecem agora a outros interesses mais rentáveis em termos publicitários. Das voltas de agora pouco sei ou nada e das doutros tempos pouco me ficou na memória. Só me recordo dos cartuchos de jornal repletos de amoras pretas e brancas colhidas pelo meu pai nas amoreiras do demolido miradouro por onde via passar as duas rodas da volta. 

15 de agosto de 2023

Os encontros nas ruas de Cesariny

Mário Cesariny, Relógio - 1994

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real 
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco

                       Mário Cesariny, Pena capital (1957)

9 de agosto de 2023

Ray Bradbury, Fahrenheit 451, a temperatura a que o papel do livro se incendeia e arde...

"It was a pleasure to burn. It was a special pleasure to see things eaten, to see things blackened and changed. With the brass nozzle in his fists, with this great python spitting its venomous kerosene upon the world, the blood pounded in his head, and his hands were the hands of some amazing conductor playing all the symphonies of blazing and burning to bring down the tatters and charcoal ruins of history. With his symbolic helmet numbered 451 on his stolid head, and his eyes all orange flame with the thought of what came next, he flicked the igniter and the house jumped up in a gorging fire that burned the evening sky red and yellow and black. He strode in a swarm of fireflies. He wanted above all, like the old joke, to shove a marshmallow on a stick in the furnace, while the flapping pigeon-winged books died on the porch and lawn of the house. While the books went up in sparkling whirls and blew away on a wind turned dark with burning."

Num destes dias agitados da invasão dum país soberano disfarçada de intervenção militar especial, um iraniano tresloucado queimou um exemplar do Alcorão perto duma mesquita em Estocolmo. Este ato islamofóbico foi aproveitado pela Turquia para vetar durante algum tempo a entrada da Suécia na Nato. A notícia deste ato ritual de contestação duma ideologia tida como totalitária, cometida por uma outra de sinal identicamente extremista, apanhou-me a caminho das férias de verão longe dos holofotes televisivos. Aproveitei este fait divers da aldeia global atual para encetar uma releitura do mais lido relato de Ray Bradbury, o Faherenheit 451 (1953), uma distopia atemporal, cujo título nos remete para a temperatura a que o papel dum livro se incendeia e arde, i.e., 232,8ºC, pouco mais ou menos.

Tudo se passa num espaço e num tempo antecipados pouco precisos, a configurar as habituais metatopias-metacronias exigidas por este tipo especial de ficção científica. Se as referências singulares a Los Angeles, St. Louis e Chicago nos remetem para a Califórnia, Missouri e Illinois, nada nos garante que estejamos ainda numa entidade política soberana atualmente conhecida por EUA. Os eventos relatados projetam-nos para uma realidade vivencial ainda distante da nossa, mas pontualmente concretizada em momentos menos felizes da história. O visionamento há cinquenta anos de filmes do foguetão V-2 (1942) e a alusão à vigência do padrão intelectual seguido nos últimos cinco séculos ou mais do Hamlet (1599-1601), de Shakespeare, remetem-nos para localizar a ação entre finais do Séc. XX e inícios do XXI, para todos os efeitos após 1990, ano/década em que a sociedade retratada no romance terá vencido duas guerras atómicas e reformulado toda a sua forma de agir.

Os bombeiros daquele país sem nome conhecido e sem data precisa de nascimento têm por missão vital a queima sistemática de livros e das casas que os abrigassem. Absurdo ilusório, imediatamente desfeito, se nos lembrarmos da alegada purificação pelo fogo de todos os textos contrários às ideologias religiosas e políticas então dominantes. A Inquisição e o Nazismo são exemplos perfeitamente ilustrativos em termos históricos a par da eliminação das bibliotecas do Don Quixote ou do mosteiro d'O nome da rosa, imaginados por Cervantes e Umberto Eco na esfera literária. O autor aponta a intolerância racial como causa inicial da censura às obras impressas, a que depois se acrescentaram outras num crescendo infindável. Se não se gosta queima-se e resolve-se o problema. A partir de dado momento já restava muito pouco a preservar e não se perdia grande coisa. Afinal os livros não diziam nada e ninguém passou a sentir a sua falta. E, depois, havia sempre a possibilidade de substituir as humanidades pelo desporto.

uma larga mão-cheia bem contada de anos, ouvi num congresso internacional de países lusófonos uma comunicação que mudou radicalmente a minha forma de encarar a transmissão verbal de tradição oral. Soube então que os arquivos ancestrais destruídos durante a guerra civil moçambicana haviam sido reconstruídos através da memória atenta dos anciãos sobreviventes ao conflito. Espantoso. Nesse momento compreendi melhor o processo de preservação das palavras emprestadas por Homero à Ilíada e à Odisseia, por volta de 800AEC, as tais que andaram de boca em boca até serem compiladas por Pisístrato, entre 545-527AEC. Um exercício coletivo multigeracional que os resistentes do mundo alienado plasmado nas páginas duma epopeia em prosa moderna tomam como modelo e replicam. Na tentativa de ultrapassar a Idade das Trevas então vigente e de derrotar os cães-mecânicos programados para perseguir e eliminar os amantes da leitura, de banir de vez as salamandras, fénix e demais símbolos da barbárie instituída, cada um dos resistentes clandestinos transforma-se num homem-livro. Adota-o, memoriza-o, eterniza-o. Oferece-o às novas gerações, para assim fazerem ressurgir das cinzas a humanidade que lhes havia sido sonegada em nome de coisa nenhuma.

3 de agosto de 2023

As fronteiras ilimitadas do infinito

“A handful of sand contains about 10,000 grains, more than the number of stars we can see with the naked eye on a clear night. But the number of stars we can see is only the tiniest fraction of the number of stars that are. What we see at night is the merest smattering of the nearest stars. Meanwhile the Cosmos is rich beyond measure: the total number of stars in the universe is greater than all the grains of sand on all the beaches of the planet Earth. [...] The idea that God is an oversized white male with a flowing beard, who sits in the sky and tallies the fall of every sparrow is ludicrous. But if by 'God' one means the set of physical laws that govern the universe, then clearly there is such a God. This God is emo-tionally unsatisfying... it does not make much sense to pray to the law of gravity.
Carl Sagan, Cosmos (1980)
O FINITO ENTRE INFINITOS

Perguntemo-nos mentalmente qual será a língua que dispõe do maior número de palavras para se expressar. As respostas são variáveis e dependem em grande parte do conhecimento aparente que tenhamos de cada uma delas, sobretudo daquela que colocámos no topo das vencedoras. A solução final, todavia, pode ser uma: estão todas empatadas, porque constituem sistemas abertos à admissão de novos vocábulos. Basta começar a contar e ir à procura do último elemento impossível de achar. Por mais que se avance, sempre lugar para mais um. Tudo se passa em termos da dupla articulação teorizada por André Martinet, quando nos lembra que com um número limitado de fonemas podemos formar um número ilimitado de monemas. As fronteiras do infinito, como se vê, não andam muito longe do universo das palavras.

Neste jogo de palavras e números o infinito nunca se atinge. Está sempre para além das nossas possibilidades finitas de seres humanos de decifrar os confins do transcendente, habitantes temporários dum ponto minúsculo no todo cósmico que nos abriga e absorve na sua incomensurável grandeza. A acreditar em Carl Sagan, haverá mais estrelas no céu do que grãos de areia em todas as praias do mundo. Uma asserção difícil de aceitar mas que os malabarismos matemáticos lá vão confirmando. Segundo os cálculos já efetuados, parece que existirão cerca de 5 a 10 vezes mais astros de plasma com luz própria em todas as galáxias do universo visível do que partículas de rochas degradadas arrastadas para as costas marítimas da terra. Só falta mesmo calcular o que fica para além do universo invisível desconhecido.

O antes do Big Bang e o depois do Big Crunch continuam um mistério para todos nós. Vivemos entre dois infinitos de sentido diferente e com a mesma grandezaÉ que como sublinha António José Saraiva, «Por detrás de toda a origem há uma outra origem que falta conhecer. Depois do fim, mais outro fim». A impossibilidade de os explicar com dados reais leva-nos a recorrer aos mitos e a fazê-lo em termos imaginativos. Juntemos meia dúzia deles e entramos no campo sagrado das religiões. Saímos da objetividade da ciência e penetramos na subjetividade da metafísica. A ideia da presença eterna dum Deus senhor de todas as leis físicas que regem o Universo surge no horizonte. que, como realça Carl Sagam, faria pouco sentido prestar culto devoto às leis da gravidade. Seria no mínimo frustrante e seguramente inoperante.