28 de julho de 2023

Lídia Jorge: tempo de parties, evenings e barbecues no cais das merendas

«Depois chegámos nós por ouvir falar do caso e procurámos alguém que ainda não tivesse perdido a memória. Encontrámos as testemunhas, mas Aldegundes, por exemplo, já não sabia como voava um pássaro.» 
Lídia Jorge, O cais das merendas (1982)

A ausência de espaços livres nas estantes de guardar livros de casa tem-me levado ultimamente a visitar os lidos e relidos noutras ocasiões. Vantagens de já os conhecer e saber de fonte segura o prazer renovado que advirá destes reencontros táticos com velhos amigos. Numa altura em que predominam no linguajar quotidiano vigente anglo-saxónico com pretensões globalizantes, apeteceu-me voltar à companhia da Lídia Jorge e d'O cais das merendas (1982), um clássico da literatura composta em português, com uma pitada dos falares algarvios e uma mão-cheia de modismos importados, papagueados a torto e a direito e por dá cá aquela palha pelos partícipes romanescos em francês e inglês, obtidos por um deles à la cannebière de marseille e pelos demais de as ouvirem aos turistas oriundos da verdadeira Europa e do grande mundo.

Seis décadas após as vivências retratadas na ficção e decorridas quatro sobre a sua publicação, a verbalização de termos oriundos doutras latitudes transfronteiriças pareceriam plenamente démodés, vocábulo que um franciano dos nossos dias teria logo sugerido aos seus colegas das lides hoteleiras de atualizar. Olvidaria os galicismos de emigrante bebidos no além-Pirenéus, render-se-ia sem tardar aos anglicismos passageiros que por aí pululam e proporia a substituição dos parties, evenings e barbecues de então, pelos coffeebreaks, brunchs e sunsets de agora, organizados num qualquer ressort, seafront ou rooftop adequado. Tudo muito mais cool nos dias que correm e publicáveis com muitos likes nas redes sociais.

A ação da segunda epopeia em prosa de Lídia Jorge decorre de modo algo indefinido entre a passagem da década de 50 para a de 60 e os finais da de 70, num imaginário Hotel Alguergue, erigido na não menos inventada Praia das Devícias. Tudo nos remete para o sul do país, sem que, todavia, o cenário bem conhecido da autora seja explicitado de forma clara. O surto do turismo no Algarve acabava de dar os primeiros passos e os atores-nativos na presença subalterna dos atores-visitantes ficam deslumbrados com tudo o que vestem, fazem e falam. Lembram-se das privações vividas no passado que desejam apagar a todo o custo da memória e iniciam um processo de recusa radical dessa época menos feliz das suas existências. Imitam os modelos estranhos vindos de fora e inauguram um tempo de mudança, que os colocaria numa esfera existencial idêntica à dos habitantes sazonais daquela vasta casa apalaçada de dez andares e trezentas e tantas janelas com nome de pedra de lagar de azeite. Ilusão pura, pois no final dar-se-ão conta que haviam perdido a sua identidade cultural e não tinham adquirido em momento algum aquela que pretendiam conquistar.     

Relido mais uma vez em período de férias de verão, num ambiente similar ao retratado no livro um extenso areal dourado junto ao mar sem vagas a espelhar o azul do céu e com um hotel dessa época pioneira em pano de fundo –, apercebo-me que, mutatis mutandis, a situação se mantém inalterável em variados aspetos, sobretudo nos linguísticos. O inglês, a suposta língua franca dos forasteiros, continua a sobrepor-se a todas as restantes, em ementas, etiquetas, avisos, marcas, rótulosplacas, letreiros, ignorando sistematicamente a dos nativos, como se, de facto, não existissem. A submissão ao outro é total neste utópico paraíso de devícias ilusórias em que o ancestral cais de merendas baratas se foi convertendo ao longo dos tempos. Então como agora: copiar para igualar, perder o que se tem e não receber nada em troca.

24 de julho de 2023

Epítetos Reais & Apodos Plebeus

O REI AZARADO & O IRMÃO GOLPISTA

Cognomes, apelidos & alcunhas

Todos os reis portugueses têm um cognome (o Povoador, o Lavrador, o Magnânimo, o Usurpador) ou vários (o Conquistador ou o Fundadoro Cruel ou o Justiceiro), por vezes contraditórios (o Grande / o Opressor) e a caírem no domínio da mera alcunha popular (o Gordo). O mesmo se diga das rainhas (a Piedosa ou a Louca, a Educadora ou a Parideira) e dos respetivos cônjuges (o Capacidócio, o Sacristão ou o Edificador e o Rei-Artista), bem como de algumas consortes (a Aleivosaa Desejada, a Excelente Senhoraa Princesa Perfeitíssima). Esta proliferação de epítetos reais deve-se ao facto de carecerem de verdadeiros apelidos e não posporem ao nome próprio a estirpe dinástica a que pertenciam: Borgonha, Avis, Habsburgo e Bragança.    

Falta essa tradição aos presidentes, por possuírem prenome(s) e sobrenome(s), conquanto os apodos plebeus atribuídos a alguns deles corram à boca pequena. Quase segredados nos tempos da outra senhora e pronunciados à tripa-forra nos nossos dias. o Cabeça-de-Abóbora ou Corta-Fitas será, quiçá, o mais conhecido de todos. Depois veio o trio armado (o Caco-de-Vidro, o Chico-Rolha, o Endireita) e o trio letrado (o Bochechaso Cenoura, a Múmia), a precederem o já crismado Senhor das selfies e dos afetos. E como não ofende quem quer, só ofende quem pode, ousemos chamar-lhe também o Tio Celito, o Cata-Vento, o Papagaio, o Comentador-Mor, o Egocêntrico, o Língua-de-Trapos, o Fala-Barato. É caso para dizer que o que a uns falta a outros sobeja.

Res publica, a caricatura ao serviço da tristeza pública, 2010

18 de julho de 2023

Gazpacho, Salmorejo & Picadillo

gazpacho andaluz rico 

Sopas frias de verão

Meia dúzia de tomates maduros, um pimento verde e outro vermelho, pepino, cebola e alho à unidade, pão rústico seco, torrado ou migado à vontade do freguês, azeite, vinagre e sal q.b. Tritura-se tudo muito bem, põe-se no frigorífico e obtém-se o saboroso gazpacho dito andaluz. Acrescenta-se pão ao preparado e entra-se no domínio do salmorejo, também ele com todo aquele salero hispânico das terras mouriscas. Pica-se tudo em cubos e perfuma-se com ervas de cheiro e passamos ao gaspacho alentejano, que do lado de lá da fronteira se chama picadillo. Junta-se-lhe água e vira arjamolho algarvio, primo chegado da salada montanheira, menos caldenta mas igualmente apetitosa e a saber a férias.

As ancestrais e obrigatórias rivalidades ibéricas reclamam a primazia e autenticidade das receitas, bem como das designações que devem ter. Questiúnculas e polémicas à parte, vazias de sentido, levam-nos a dizer que umas e outras são autónomas e convergentes. Ibéricas todas elas. Tudo depende dalguns pequenos pormenores. Guarnecer ou enriquecer a sopa fria estival com mais ou menos pão/pan aos pedaços ou esmigalhado, umas fatias de presunto/jamón, umas rodelas de ovo cozido/duro, umas pitadas a mais ou a menos de orégãos, coentros, manjerona e outras verduras de cheiro e já está. Receitas variadas a dar com um pau. E viva o verão e as férias! Bom proveito! & ¡Que os aproveche!

Rafael Obrero Guisado, Recetas dibujadas

12 de julho de 2023

Natsume Sōseki, Kokoro: as batidas do Coração ou o testamento do Mestre

『私だからここでもただ先。はその人を常に先生と呼んでいたこれは世間を憚。生と書くだけで本名は打ち明けない はば かる遠慮私はそ。その方が私にとって自然だからである、というよりも筆。といいたくなる」先生「すぐ、の人の記憶を呼び起すごとにを執 と よそよそしい頭文字。っても心持は同じ事である。ても使う気にならな。』

Li algures por aí ser Natsume Sōseki considerado um dos mais apreciados ficcionistas japoneses e ser Kokoro: o Testamento do Mestre (1914) o seu romance mais lido e conhecido em todo o mundo. Encontrei-o sem dificuldade no passado mês de abril na primeira livraria onde entrei, numa posição de destaque das obras mais vendidas à data da sua edição entre nós pela Presença. Peguei no último exemplar disponível e trouxe-o debaixo do braço para casa. Depois li-o muito lentamente, a fim de degustar à perfeição todas as suas potencialidades e aqui vão as minhas notas de leitura.

Publicado dois anos antes da morte do autor em forma de folhetim num jornal de grande circulação, encontra-se divido em três partes, a rondar as três centenas de páginas. Trata-se dum relato psicológico de primeira pessoa, confiada à pena dos protagonistas, o jovem narrador anónimo [I-II] e o enigmático ancião designado por mestre [III]A estrutura seguida pela entidade emissora externa remete-nos para duas histórias autónomas ligadas pelas cumplicidades tecidas entre si. O mais novo começa por descrever as casualidades que o levaram a conhecer aquele que elegerá como mentor, passando depois a desvelar as particularidades de silêncios e traições do seu entorno familiar, com especial incidência nos pais e tios. O mais idoso envia ao pupilo uma longa carta, onde lhe revela um segredo do seu passado sobre a morte inesperada dum amigo e que apresentará como um verdadeiro testamento de vida.

Ao longo dos 109 capítulos constitutivas da tessitura dramática, o testemunho pessoal das instâncias narrativas estabelece uma série de paralelismos simbólicos que nos conduzem para o final inexorável da Era Meiji (1868-1912), aquela que marcara a viragem definitiva do sistema feudal dos xoguns para o poder central do imperador. A morte anunciada do pai do Narrador por diagnóstico médico e o suicídio do Mestre por confissão epistolar apontam decididamente para esse momento crucial da história recente do País do Sol Nascente, a passagem dum tempo que já era para um tempo dum há de ser. Mas sobre esse período desconhecido das personagens intervenientes na urdidura discursiva nada transpira nem podia transpirar. Provavelmente nem o autor estaria ciente que a agitação bélica então iniciada acabaria por conduzir o Japão para Primeira Grande Guerra e à sua derrota completa na Segunda.  

Finda a leitura dum autor-obra que vi anunciado não sei muito bem onde, fica a fascinante sensação de estranheza ante as confissões postas a nu nas páginas dum livro confiado ao olhar exótico dum leitor ocidental, pouco habituado a decifrar as particularidades ancestrais da sensibilidade nipónica. Estranheza lhe chama Tanikawa Tettsuzō no Prefácio que dedica à história contada por um universitário sem nome de Tóquio e vivida por um conjunto de outros atores nomeados simplesmente por formas educadas de tratamento cerimonioso, com uma equivalência muito relativa entre nós: Sensei (mestre), Okusan (esposa) Ojosan (filha), ou K-san (senhor K). Obscuro também o título kokoro mantido na versão portuguesa, traduzível por coração, a par de afeição, espírito, coragem, determinação, sentimento e até cerne das coisas. Palavra-chave, em suma, para proceder à síntese de todo o texto, centrado nos mistérios do amor e do destino, sem esquecer o poder fundamental da amizade cultivada pelos seres humanos, por certo a experiência mais intensa da vida.

EPÍGRAFE 
Sempre lhe chamei Mestre: é por isso que neste livro também só lhe chamarei Mestre, sem revelar o seu verdadeiro nome. Não é tanto que aos olhos do mundo eu o receasse fazer. Mas este nome Mestre é para mim o mais natural. Sempre que me recordo dele, «Mestre» está nos meus lábios; assim como também quando escrevo, o mesmo nome está sob a minha pena. Nem me ocorre recorrer a frias iniciais.
Natsume Sōseki, Kokoro (1914)

6 de julho de 2023

Polegar para cima à beira da estrada

Philipp Kazak, Autostop (2018)

Филипп Казак / Artmajeur

A boleia em tempo de férias...
Nos anos 60, esticava o dedo polegar para cima à beira da estrada e, regra geral, os carros paravam ao pedido simbólico de boleia. Nos dias de hoje, não sei se o efeito internacional de autostop seria igual. Duvido. Pessoalmente deixei de executar esse ritual há muito tempo e também não me vejo a satisfazer o pedido a quem eventualmente mo possa vir a solicitar.

Em tempo de férias grandes, a boleia era solicitada para poupar uns trocados e chegar rapidamente à praia, a Foz do Arelho, junto ao chafariz da primeira Plêiade do Magnânimo. Que me lembre, só fiz a pé os 10km do percurso uma única vez e já no regresso a casa. Felizmente para as minhas magras economias da época, o gesto do dedo levantado foi sempre eficaz.

Nos tempos que correm, a autostopagem deixou de fazer parte do meu dia a dia há muito estabelecido. A boleiagem vai-me surgindo mesmo assim de quando em vez e sem recorrer a nenhum dos cinco dedos da mão. A companhia dos colegas e amigos é sempre bem-vinda, muito embora me vá impedindo de fazer uma ou outra caminhada a pé exigida pelo bom senso.   

Alamy - EMBY3B