30 de agosto de 2016

A rentrée do telemóvel...

A recarga do telelé...

Não vá, telefone!...

O meu telemóvel de serviço está a acordar duma longa sesta de vinte e tantos dias. Começou a adormecer nos idus de julho e a ser resga-tado antes das kalendæ de setembro. O tempo do dolce far niente chegou ao fim. Agora são horas de pegar de novo no batente.

O meu telemóvel de serviço foi retirado da mesa de cabeceira onde dormiu o sono dos justos. Até à próxima Saturnalia ocupará um bolso livre das calças. Depois logo se vê. E os ciclos do negócios & ócio a renderem-se entre si. Rotinas  anuais a darem sentido à vida.

28 de agosto de 2016

Madame du Barry & Marie Antoinette, as duas rivais de Versailles...

«Je l’aime, Bécu»
Journal Epicurien

Quem viaja por França encontra na zona mais nobre e central de qualquer cidade, por muito pequena que seja, uma Boutique Com-tesse du Barry, especializada em fois gras, saumon & caviar, truffe, terrine, repas e épicerie fine, entre outras ofertas especiais de fazer salivar o palato mais exigente. A entrada neste antro de perdição pantagruélica é obrigatória. À saída somos sempre acompanhados duma provisão considerável de plaisirs exquis à prix réduits [sic] para recordar no regresso os bons sabores da gastronomia gaulesa com um cheirinho aristocrático do Ancien Régime.

A ligação do nome desta Maison gourmet ao da derradeira favorita de Louís XV, le Bien-Aimé, dever-se-á ao facto de ser bisneta de Jean Bécu, mestre charcuteiro reputado, e neta de Fabien Bécu, cozinheiro de Isabelle de Ludres, ex-amante de Louis XIII, le Juste. Jeanne Bécu, a futura Madame du Barry, era filha ilegítima de Anne Bécu e, dizem as más-línguas, do frade franciscano Jean-Baptiste Gormand de Vaubernier, le Frère Ange. Uma educação esmerada num convento a expensas dum protetor da mãe e uma vida de aventureira em Paris abriram-lhe com facilidade as portas de Versailles.

A sucessora de Madame de Pompadour no leito do bisneto do Roi Soleil em breve se cruzará com Marie-Antoinette, recentemente che-gada da corte imperial austríaca. A animosidade da delfina da França e Navarra pela concubina real do sogro foi imediata. Votou-a ao mais profundo ostracismo e ganhou o desagrado de Loulou, per-dido de amores pela sua Bécu querida. Instada pelas circunstâncias e antipatia geral granjeada na corte e no país, viu-se obrigada a dirigir-lhe a palavra uma única vez: Il y a bien du monde, aujourd'hui, à Versailles! Salvavam-se as aparências e serenavam-se os ânimos.

O reinado da cortesã finda com a morte do real amante. O reinado da rival inicia-se com a subida ao trono de Louis XVI. Separadas em vida, unir-se-ão pela morte: perderam ambas a cabeça na guilhotina du-rante a Revolução Francesa. Diz-se que terão dirigido as últimas pa-lavras ao carrasco de serviço. A rainha, por ter perdido um sapato nas escadas do cadafalso: Monsieur, je vous demande pardon, je ne l'ai pas fait exprès. A condessa, por achar que o seu tempo merecia durar um pouco mais: De grâce, monsieur le bourreau, encore un petit moment! Coisas do sangue azul ou azulado. Voilà !

25 de agosto de 2016

A mais sublime forma de arte

Pablo Picasso - Les demoiselles d'Avignon - 1907

[Museum of Modern Art - New York]


CULTURA & NATURA


Como um metteur en scène severo e caprichoso, Paulo Piconegro submete as suas putas a um rigoroso método de seleção, indiferente a qualquer escrúpulo. Nunca contrata uma mulher sem tê-la experimentado antes, mas procede ao exame com fastio e apenas depois de ter feito perguntas sobre a arte e o assombro, sobre a vertigem da arte, a sua minúcia esmagadora e os seus abismos. Instala a cadeira de roda de costas para Les demoiselles d'Avignon e faz com que as raparigas se sentem diante da enorme reprodução, do seu Picasso de fancaria, e fala-lhes de música e teatro, de pintura e dança, da literatura e do sublime do entardecer nas montanhas, do fragmento de explosão e de caos que há em todos os poentes. Diz-lhes que não tenham medo, que não há motivo nenhum para não terem medo, e pede-lhes que falem um pouco disso, de como é o crepúsculo e o rumor dos regatos no sítio de onde vêm, como são as histórias que lá se contam. A arte é a forma mais sublime da natureza, murmura. Ou vice-versa. A natureza é a mais sublime forma de arte, Repete. Paulo Piconegro num tom de voz apaziguador e quase cúmplice. Parece amistoso apesar do olhar frio que tem, de milhafre. Procura sossegar as mulheres e incita-as a expressarem-se à vontade. Como se eu fosse o teu pai, o teu avô, um tio de que gostes muito, diz-lhes. E esconde um sorriso gelado e sinistro - um sorriso de raposa.

Manuel Jorge Marmelo, Macaco infinito (2016: 25)

22 de agosto de 2016

Zafón & Falcones: sagas e sequelas da cidade condal

Portal da Basílica de Santa Maria del Mar de Barcelona


«Hay um libro que nunca olvidarás» y «la historia se hace novela»
(Zafón & Falcones)

O diário de bordo que guardo na memória regista uma visita ocasional de alguns dias à capital da Catalunha em junho de 2009. Um encontro académico levou-me a revelar ali a minha interpretação das metamor-foses portuguesas dum pícaro andaluz famoso. Em trânsito pelo aeroporto da Portela, descobri no escaparate da Relay um Guia da Barcelona de Carlos Ruiz Zafón (2008)preparado por Sergio Doria com prólogo de Sergio Vila-Sanjuán. Logo por baixo do título, os editores da Planeta informavam destinar-se a desvendar os segredos da cidade feiticeira através dos olhos do escritor e dos cenários dos seus romances Marina, La sombra del viento e o Juego del Ánjel. Achei a proposta interessante para ocupar as pausas previstas entre conferências e adicionei o roteiro literário à bagagem de mão. Explorei-o in loco até às últimas sugestões facultadas.

Em meados deste mês de agosto, a exposição de 5.º centenário de Bosch organizada pelo museu do Prado chamou-me a Madrid. Enquanto aguardava a ligação Ave ao meu destino final, respondi ao apelo que mais uma vez a Relay me fazia agora dum dos extremos da estação ferroviária de Santa Justa em Sevilha. Depois de ter folheado as revistas geralmente solicitadas por quem passa por estes compassos de espera e de ter recusado liminarmente as propostas de livros de consumo imediato expostas, deparei-me com um título familiar dum texto desconhecido. Lembrei-me de o ter visto de relance na Casa del Libro do Passeig de Gràcia em Barcelona. Tratava-se de La catedral del mar (2006), de Ildefonso Falcones. Na altura resisti ao seu chamamento. O impulso agora foi mais forte e agarrei-me com ambas as mãos à versão de bolso do romance.

Êxitos mundiais à escala global, os dois autores catalães têm sabido fazer render a fruta e criado nos leitores a dependência pelas histórias contadas em forma de saga, logo seguidas dum número crescente de sequelasCarlos Ruiz Zafón já compôs três painéis d' El cementerio de los libros olvidados, a que juntará em breve um quarto ainda no segredo dos deuses. Ildefonso Falcones só agora passou à primeira continuação da série. Sairá no final do mês com a designação promissora de Los herederos de la tierraOs milhões de exemplares vendidos pelos dois fabricantes de bestsellers não me deixaram indiferente. Fiquei rendido à obra inaugural do primeiro e estou entregue à do segundo. Tudo leva a crer que me manterei fiel tanto a um como a outro. ¿Por que no?. Assim me levem de novo às ruelas da cidade condal que os inspirou. A ver vamos...

19 de agosto de 2016

O fascínio inebriante do fogo

QUATRO CÍRCULOS ELEMENTARES

Günther Zainer, De responsione mundi et de astrorum ordinatione, 1472

[Biblioteki Książąt Czartoryskic]

O quarto elemento...

dezanove séculos e meio que Nero (37-68 EC) carrega o ónus de ter mandado incendiar Roma (64 EC) para depois construir um complexo palácio à sua medida e semelhança. Um dos grandes difusores deste ato tresloucado terá sido Suetónio, que o regista nas páginas d' As vidas dos doze Césares (121 EC). Calúnia do biógrafo que não morria de amores pelo imperador. As culpas foram atribuídas oficialmente aos Cristãos, muito embora se tenha devido com probabilidade a um infeliz acidente. O fogo terá começado num moradia de madeira que o vento terá feito alastrar às demais.

O fascínio pelas chamas é uma constante que tem acompanhado o percurso do homem ao longo da sua travessia milenar dos tempos. A descoberta dos mecanismos mecânicos para as produzir levou-o à tentação do fogo posto. Observá-lo de longe como o bisneto de Augusto terá feito enquanto tocava lira e declamava um dos seus poemas. As pinturas e romances têm propagado à exaustão esta recriação da realidade. O cinema tem-se aproveitado do filão para nos apresentar em tamanho gigante os grandes incêndios mais famosos e devastadores da história sempre com êxito de bilheteira.

Nos dias que correm, os jornais enchem-se de fotos de matas e casa-rios do país envoltos pelas labaredas infernais. As televisões abrem os noticiários com estas cenas dantescas repetidas todos os verões. As causas naturais rivalizam com as criminosas. Dos quatro círculos elementares descritos pelos filósofos pré-socráticos, as imagens destinadas à exposição mediática centram-se sempre no quarto. O mais divino. Nem as cinzas da terra queimada, nem a transparência da água derramada, nem a opacidade do ar irrespirável conseguem rivalizar com o vermelho devorador do fogo apocalíptico.

No rescaldo do grande incêndio de Roma, Nero reergueu a cidade imperial a expensas da sua fortuna pessoal. Segundo garante Tácito no Livro XIII dos Anais (c. 68 EC). Terá ainda aberto as portas do seu palácio aos desalojados e criado um fundo para custear os alimentos dos sobreviventes. Bom exemplo para ser seguido entre nós passados os dezanove século e meio referidos. Enviar os incendiários para avaliação psiquiátrica e reordenar uma vez por todas o território atingido pelo flagelo sazonal. Depois convencer os mass media à moderação informativa. Sairíamos todos a ganhar.

14 de agosto de 2016

Manuel Jorge Marmelo, teorema ficcionado do macaco infinito

«Quando dedilha a máquina de escrever, Wakaso está consciente de que deve evitar África. Se por acidente, coincidência ou acaso vier a ser realmente capaz de escrever, não é aceitável que produza alguma coisa que se assemelhe ao trabalho de um infinito macaco africano refletindo sobre a sua condição simiesca e infra-humana.»
Manuel Jorge Marmelo, Macaco infinito (2016)
Uma velha dicotomia convertida em lugar-comum inegável afirma que as ciências se repartiriam por duas áreas distintas: as humanas e as exatas. A dar crédito cego a esta linha estreita de pensamento, estaríamos aptos a inferir que as primeiras seriam forçosamente inexatas e as segundas fatalmente desumanas. Dedução absurda duma oposição inexistente entre saberes fundados ao longo dos milénios pelo homo sapiens sapiens para, desse modo, demarcar o seu território enquanto ser vivo diferenciado. É ao conjunto das vias contidas no trivium e no quadrivium que as sete artes liberais definidas por Afonso X, o Sábio, foram crescendo em torno das qualidades e quantidades de explicar o mundo em que vivemos. A interligação entre umas e outras é insubstituível. A própria matemática, tida como a mais precisa das linguagens criadas pelos primatas racionais, necessita como pão para a boca das letras para dar sentido à álgebra das contas-correntes quotidianas que a envolvem. Aquelas onde cabem os prodígios decifradores dos números imaginários, i.e., a pedra-de-toque da resolução imediata e infalível da raiz quadrada da unidade negativa, traçada na fórmula √-1 = i.

A ânsia desmedida e nunca saciada de rivalizar com a transcen-dência divina levou os descendentes remotos dos australopitecos a cogitar uma série de paradoxos labirínticos, baseados na habilidade de tornar possível o impossível, como será o caso, v.gr., do Teorema do Macaco Infinito. Afirmar categoricamente que se pusermos por um tempo ilimitado uma máquina de escrever à disposição dum símio, este acabará por reescrever, mais tarde ou mais cedo, uma obra-prima da literatura universal à altura dum Shakespeare ou dum Cervantes. Os peritos das probabilidades estatísticas pegaram nesta metáfora evolucionista atribuída a Darwin e provaram por A+B a verdade absoluta que conteria, através duma simples equação explicativa das incógnitas em presença. Os arquitetos de relatos inverosímeis ou pouco credíveis deixaram-se cativar pelo desafio e desenvolveram-no como só a ficção o sabe fazer. Mário de Carvalho consubstanciou-o em «O nó estatístico», um dos contos mais hilariantes do estranho-fantástico-maravilhoso gizados por Todorov, reunidos n’A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho (1983). Pôs o chimpanzé criança chamado Golo a transcrever a versão integral da Menina e moça (1554) de Bernardim Ribeiro, para espanto dos donos e sorriso dos leitores. Manuel Jorge Marmelo segue-lhe a peugada e compõe um insólito Macaco infinito (2016) em forma de prosa poética ou de poesia integral por versificar, cujos meandros discursivos convém sumariar nas suas coordenadas gerais.

A intriga é escassa e pode incluir-se nas três unidades de espaço-tempo-ação arroladas por Aristóteles na Poética para definir a tragédia ática. Tudo se passa no Bar Mitzvá, uma casa de alterna ou de prostituição clandestina, nas proximidades dum aeroporto. No espaço destinado ao público impera uma reprodução da tela de Picasso Les demoiselles d’Avignon e no privado uma outra do tríptico de Bosch O Jardim das delícias terrenas. Os dias são todos iguais entre si, como se tratasse dum único nascer e pôr de sol com as noites sem conta de permeio a darem continuidade ao imutável. A história que lhe dá corpo reduz-se a um conjunto de episódios e estásimos que se sucedem ao longo de quarenta fragmentos situados entre o párodo inicial e êxodo final, depois de executada a catarse exigida pelo cânone. As falas proferidas em registo direto ou relatado pertencem quase todas ao proprietário branco do prostíbulo e ao criado negro convertido em macaco infinito. As máscaras escolhidas para os dois antagonistas em cena e promotores da ironia trágica final. O coro formado pelas prostitutas residentes e clientes habituais preenchem a orquestra dramática regida pelo narrador no seu papel de corifeu. Um acidente ocorrido nos bastidores da guerra colonial reduzira o protagonista europeu a uma cadeira de rodas e à dependência total do coprotagonista africano. Incumbiu-o de concretizar o teorema de registar numa máquina de escrever um romance essencial e ilustrativo dos piores e mais autênticos impulsos da espécie humana. Arrogância intolerável para as divindades imortais que regem a mortalidade dos homens. O castigo surgirá no momento exato do clímax apaziguador de todas as discórdias.

Ao longo das duas centenas de páginas do relato, senti uma curiosidade insaciável por saber qual teria sido a obra que o acaso ditara a este macaco infinito feito de encomenda para datilografar na Corona 3 posta à sua disposição. O resultado é dececionante. As poucas frases reveladas andam muito longe de constituir uma peça-mestra da literatura universal. Se foram compostas por alguma celebridade digna desse nome disfarçam muito bem. Informa-nos a entidade promotora da fábula que o Million Monkey Project, concebido em 2011 por Jesse Anderson, terá reproduzido em mês e meio as obras completas do poeta e dramaturgo inglês. O processo é descrito com algum pormenor a que falta, todavia, elucidar se o software inventado pelo informático respeitou a sequência das palavras registadas nos textos ou se se limitou a transcrever palavras soltas que poderiam caber em qualquer obra conhecida ou desconhecida. Questão a todos os títulos indiferente que como se afirma no parágrafo terminal, Abdul Majeed Wakaso, o sobrevivente do ágon central do conflito, é apenas e somente um homem entre muitos outros, o mais infinito dos macacos.

8 de agosto de 2016

Citius, Altius, Fortius

TOCHA OLÍMPICA

(Jogos Olímpicos de Atenas 2004)

Tudo por uma coroa de azebuche...

Afirmam as lendas que os jogos pan-helénicos foram estabelecidos num local sagrado em memória dos feitos realizados por um deus ou por um herói. Estariam ligados às festividades religiosas rurais, simbolizados na coroa duma planta oferecida ao vencedor. De loureiro nos Píticos, criados por Apolo em Delfos, por ter vencido o dragão Píton; de pinheiro nos Ístmicos, fixados por Teseu ou Sísifo no ístmo de Corinto, junto à tumba de Melicertes-Palémon, afogado no mar; de aipo nos Nemeus, fundados em Nemeia por Adrasto, em honra de Ofeltes, morto pela mordedura duma serpente; e de oliveira silvestre ou azebuche nos Olímpicos, instituídos por Pélops em Olímpia, dedicados a Enomau.

Interessam-me em particular estes últimos, porque foram os únicos a sobreviver à voragem do tempo e à ortodoxia fundamentalista dos homens. São jogados hoje em dia por atletas dos cinco continentes e seguidos pelo olhar mediático dos espetadores da aldeia global. O objetivo passou agora a ser o de subir ao pódio da fama e ser medalhado de bronze, prata ou ouro, para glória imediata e duradou-ra. Os antigos começaram a registar-se a partir de 777 AEC. Foram extintos em 393 EC pelo imperador romano Teodósio I, quando mandou encerrar o templo de Zeus em Olímpia, escudado nos preceitos do Cristianismo triunfante na cidade eterna. Foram restau-rados em 1896 e celebrados em Atenas.

As 292 Olimpíadas da Era Antiga e as 31 da Era Moderna decorrem num ano bissexto, aquele em que a conjunção dos calendários lunar e solar exigia a introdução dum dia suplementar. Realizavam-se na primeira lua cheia depois do solstício de verão, entre 11 e 16 de julho aproximadamente. Estabelecia-se uma trégua olímpica entre todas as cidades do mundo helénico, para permitir aos participantes deslocarem-se tranquilamente ao recinto sagrado dos jogos e voltarem com toda a serenidade a casa. A chama olímpica era acesa e durava toda a competição, num máximo de 5 dias. Esta começou por ser constituída por uma corrida no estádio a que se acrescentaram depois outras provas.

Contam as lendas de que são feitos os mitos continuarem ainda hoje guardados no santuário de Pelóps os ossos gigantescos do filho de Tântalo e Dione, o rei do Poloponeso, onde foi erigida Olímpia, consagrada aos deuses do Olimpo. Segundo reza a tradição, os despojos do soberano terão estado no cerco de Troia para facilitar a sua conquista. Teriam naufragado na viagem de regresso e logo recuperados por um pescador. Um contínuo de prodígios que a arqueologia ameaça demolir. Ao que parece, trata-se dos restos dum mero dinossauro que a imaginação humana transformou nas ossadas do herói epónimo da maior península grega. Ilusões que dão sentido à vida tão carente de sentidos.

Os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro foram abertos com pompa e circunstância no início de agosto. A tocha olímpica foi acesa pelas sacerdotisas de Hera em Olímpia. A chama de fogo roubada por Prometeu a Zeus foi levada para o Maracanã. A bandeira branca com os cinco círculos de azul-amarelo-preto-verde-vermelho foi hasteada. O hino olímpico foi entoado. Fizeram-se os juramentos olímpicos. Os atletas entraram no estádio. Cantou-se o hino brasileiro. Aplaudiu-se com entusiasmo. O presidente interino reduziu o discurso de abertura a 10 segundos e foi vaiado. As vozes dissonantes vindas do exterior foram abafadas. Estranhos jogos estes em que a paz olímpica é imposta pela força das armas.

5 de agosto de 2016

Uma tisana com chave

Pablo Picasso, Puerta y llave (1919)
[Colección Marina Picasso]
TISANA 17

Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
Ana Hatherly, 351 Tisanas. Lisboa: Quimera (1997)

UMA TISANA BEM SERVIDA EM DIA DE ANIVERSÁRIO
(Ana Hatherly: Porto8 de maio de 1929 – Lisboa5 de agosto de 2015)